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4. O ENSINO PRIMÁRIO COMO DIREITO FUNDAMENTAL E A SUA

4.2. A imposição constitucional de assegurar o ensino primário (básico

A Constituição da República de Angola impõe ao Estado a tarefa da “promoç~o do acesso { alfabetizaç~o e ao ensino” – artigo 79.º, n.º 1. Sobre ele impende uma prestação positiva no sentido de criar as condições para que os cidadãos angolanos acedam à escola.

Esta norma é explícita em relação à alfabetização; ela não delimita nem define o acesso aos restantes níveis de ensino, tornando-a genérica e pouco pragmática.

O artigo 8.º da Lei n.º 13/01 – Lei de Bases do Sistema de Educação – instrumental à norma constitucional, vem tornar ainda mais confuso o conceito e os limites da obrigatoriedade do ensino, ao definir que “o ensino prim|rio é obrigatório para todos os indivíduos que frequentem o subsistema do ensino geral”.

305 A Carta Africana dos Direitos e do Bem-Estar da Criança foi adoptada em Adis Abeba, em 1990.

306 Machado e Oliveira, (2001) pp. 56-57, citados in “Da educação como direito humano aos direitos

humanos como princípio educativo” in Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico- metodológicos, de Adelaide Alves Dias (www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/br/fundamentos)

defendem que “a educaç~o enquanto um direito social proeminente, como um pressuposto para o exercício adequado dos demais direitos sociais, políticos e civis [...] é um pré-requisito para usufruir dos demais direitos civis, políticos e sociais, emergindo como um componente básico dos Direitos do Homem” em plena concord}ncia de valores e princípios j| defendidos no século XVII, aquando da Revolução Francesa, e enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, que por sua vez assegurava: “A instruç~o é necessidade de todos. A sociedade deve favorecer com todo o seu poder o progresso da inteligência pública e colocar a instrução ao alcance de todos os cidad~os.” – Artigo XXII.

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A regra jurídica referenciada não permitia, prima facie, o acesso daquele que pretenderia frequentar o ensino primário. Não constituía, em si, a atribuição de um direito subjectivo. Ela significava, per se, a obrigatoriedade de acesso ao ensino primário para todos, mas tão-somente como via de acesso ao nível imediatamente superior, ou seja, por um lado, que a obrigatoriedade recaía sobre os que já estavam inseridos no sistema de ensino, e, por outro, que a frequência de qualquer outro nível de ensino subsequente está condicionada à obrigatoriedade de frequência do ensino primário, condição sem a qual os candidatos não poderiam aceder aos outros níveis, nomeadamente do subsistema do ensino geral do nível secundário.

Parece haver, neste dispositivo legal, em certa medida, uma contradição com o preconizado no artigo 25.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que concebe que o ensino elementar é obrigatório, no caso, o ensino primário de seis classes.

O pressuposto legal inserido na Declaração Universal dos Direitos do Homem refere-se, sem dúvida, ao direito de acesso de todos à educação, e não só daqueles que, por via da primeira matrícula, tivessem assegurado o seu acesso. Logo, a enunciação do artigo 8.º da lei de Bases do Sistema de Educação abstraiu-se do Princípio da Universalidade, previsto quer no comando do dispositivo da Declaração Universal dos

Direitos do Homem, quer no do artigo 6.º da LBSE, denominado “Democraticidade”, que

afirma que todos os cidadãos angolanos, sem qualquer distinção, têm iguais direitos no acesso e na frequência aos diversos níveis de ensino, para além de poderem participar na resolução dos seus problemas, daí o seu carácter democrático. A redacção do artigo 8.º da LBSE impunha limites ao Princípio da Universalidade e da Igualdade, previstos no artigo 6.º, dessa mesma Lei.

Tal situação divergente, e outras constantes da LBSE, ditou a adequação das normas jurídicas, conformando-as com a CRA, tendo sido em seu lugar aprovada a LBSEE, através da Lei n.º 17/16, de 7 de Outubro, conferindo maior clareza ao conceito de obrigatoriedade, no seu artigo 12.º, e de democraticidade, no artigo 10.º da mesma Lei.

Conforme preconiza a alínea g), do artigo 21.º, cabe ao Estado a promoção de “políticas que assegurem o acesso universal ao ensino obrigatório gratuito, deixando para a Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino o estabelecimento do conceito e da estrutura da educaç~o b|sica, nos artigos 27.º e seguintes”.

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Inserida no Subsistema do Ensino Geral, que se estrutura em dois níveis (o Primário e o Secundário), o ensino prim|rio é considerado a “base do ensino geral”307 e é

desenvolvido em seis classes. O Decreto Presidencial n.º 16/11, de 11 de Janeiro, que aprova o Estatuto do Subsistema do Ensino Geral, nomeadamente os artigos 3.º e 8.º, retoma o conteúdo dos princípios pelos quais a educação se deve reger, deixando clara a desconformidade das normas internas com o previsto nos instrumentos internacionais, quer no artigo XXVI da Declaração Universal dos Direitos do Homem, quer no artigo 3.º, da Declaração Mundial Sobre a Educação para Todos, só indicando alguns a título exemplificativo.

Fazemos nossa a consideração articulada por Adelaide Alves Dias, ao questionar a omissão da universalidade do direito à educação ao pretender-se acolher a obrigatoriedade do ensino308. É inegável que só é possível falar-se de obrigatoriedade

quando se fala em universalidade. A obrigatoriedade só pode ser entendida quando dirigida “para todos", em igualdade de circunst}ncias e sem discriminaç~o.

Será, em suma, um dado adquirido à luz das normas de Direito Internacional que, por força da Constituição, integram as normas jurídicas da República de Angola, que o direito à educação básica regular e de adultos, em que se enquadra a alfabetização, em Angola, é obrigatório e universal e ora previsto no artigo 12.º da LBSEE, por interpretação extensiva. A Lei de Bases do Sistema de Educação deverá ser interpretada nesse universo legislativo: o direito à educação deverá ser assumido constitucionalmente como um “direito { liberdade pessoal fundamental de aprender”, cabendo ao Estado satisfazer e garantir esse direito como um “direito de igualdade de oportunidades no acesso e frequência { escola”.

O direito de igualdade de oportunidade no acesso e de frequência à escola estão indelevelmente ligados ao direito à não discriminação, à liberdade de escola e na escola,

307 O subsistema da educação pré-escolar constitui, de acordo com o artigo 21.º da LBSEE, “a base da

educaç~o” e n~o do sistema de educaç~o, estruturado em dois níveis, compreendendo a creche e o jardim infantil. Este nível de ensino não é regido pelos princípios que enformam o ensino primário, tais como a universalidade, obrigatoriedade e gratuitidade. A base (“fundamento” na enunciaç~o da lei) do “Sistema de Educaç~o” é constituída pelo subsistema do ensino geral. Vale aqui lembrar a distinç~o entre sistema educativo e efectivo exercício educativo, feita por Hans Füssel, no seu trabalho “A autonomia das escolas numa perspectiva institucional”, in Educaç~o e Direito, Revista da Associação

Portuguesa de Direito da Educação, Editora: AAFDL (Associação Académica da Faculdade de Direito de

Lisboa), n.º 1, 1.º Semestre de 1999, pp. 73 e ss.

308 Adelaide Alves Dias, “Da educação como direito humano aos direitos humanos como princípio educativo”

in Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos,

www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/br/fundamentos], p. 445: “Como é possível falarmos em direito { educaç~o e obrigatoriedade de ensino abstraindo sua pretens~o de universalidade”.

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ao direito dos pais e encarregados de educação de escolherem a educação dos seus filhos, direitos e liberdades estas que devem ser salvaguardadas.

A obrigatoriedade do ensino, tal como se apresentou no artigo 8.º da LBSE, revelou-se contrária à liberdade de acesso às escolas do ensino primário, resultando daí o desrespeito pelo preceito constitucional, previsto no artigo 21.º, alínea g), por implicar a falta de prestação positiva do Estado, que se consubstancia em criar as condições de acesso a esse nível de ensino. Falha nesse âmbito a garantia fáctica do Estado em criar as condições para a satisfação das necessidades individuais dos cidadãos, no capítulo dos direitos fundamentais.

Conferindo tal conteúdo ao artigo 8.º, da LBSE, promana que a gratuitidade do ensino só se evidenciaria para aqueles que, “por artes m|gicas”, acedessem { escola, restringindo por isso o acesso “de todos a esse direito”.

Este entendimento teve duas consequências imediatas e indissociáveis:

1 – A primeira e imediata é que não existia a obrigação efectiva do Estado em criar escolas para todos;

Neste caso, o Estado não seria obrigado a satisfazer a pretensão de todos os indivíduos que pretendiam a frequentar a escola, logo, ao exercício da sua liberdade de aprender, o que colocava em causa o exercício do direito fundamental do indivíduo. Fica subjacente a ideia de que “este serviço público do Estado tem uma outra valência, para além de servir os direitos fundamentais”309. Nesse caso, é notório que estaremos a

especular no quadro de uma Constituição que advoga que a lei da maioria, o interesse público, se sobrepõe às liberdades individuais. É evidente que os direitos individuais incluem os direitos sociais, decorrentes da garantia das condições fácticas do seu exercício para todos.

No âmbito dos direitos sociais, no qual se insere o direito à educação, resta líquido que ao Estado compete criar as condições fácticas (direitos funcionais) para o exercício das liberdades individuais.

2 – A segunda prende-se com o direito de acesso à escola.

309 Mário Fernando dos Campos Pinto, Sobre os Direitos Fundamentais de Educação – Crítica ao Monopólio

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As liberdades de aprender e ensinar reclamam o direito de acesso à escola, o que implica o direito de escolha da escola mais adequada à formação académica, moral ou cívica pretendida. E esta satisfação da necessidade educativa pode ser desenvolvida em escolas públicas ou privadas.

Conforme a lei prescrevia, no artigo 7.º da LBSE, o ensino prim|rio “para os que o frequentam” é gratuito. Mas só o poder| ser gratuito, de facto, em escolas públicas, situação que veio a ser corrigida no âmbito da LBSEE, designadamente no n.º 1, do artigo 11.º, ao restringir, especificamente, a gratuitidade do ensino {s “Instituições Públicas de Ensino.

Como vimos, a escola pública, interpretando a redacção do artigo 8.º da LBSE, não garantia, desse modo, a efectivação dos direitos individuais formalmente acolhidos.

Nos termos da Constituição e da Lei de Bases do Sistema de Educação, a fundamentalidade da “obrigatoriedade” do ensino estava relacionada com a base, ponto de partida para aquisição de conhecimentos no nível seguinte, e não, propriamente, como corolário do direito à educação, situação como atrás referimos, conceptualmente sanada pela integração das normas de Direito Internacional e, num certo sentido, no plano interno, ora acolhida pelo artigo 12.º da LBSEE.

Nos termos do artigo 8.º, n.º 1, do Decreto Presidencial n.º 16/11, que aprova o Estatuto do Subsistema do Ensino Geral, a obrigatoriedade constitui uma “particularidade” do ensino primário para, logo a seguir, afirmar no n.º 2 que esta particularidade resulta da aplicação do princípio da obrigatoriedade, já prevista no artigo 8.º da Lei de Bases do Sistema de Educação.

Afastando a falta de rigor na abordagem deste tema, a obrigatoriedade de acesso ao ensino primário é garantida no Direito Interno pela recepção no ordenamento jurídico das normas de Direito Internacional constantes da Declaração Universal dos

Direitos do Homem, da Carta Africana dos Direitos dos Homens e dos Povos e, ainda, no

compromisso n.º 5 dos 11 Compromissos da Criança e do seu Plano de Acção.

En passant, a falta de rigor no tratamento das situações jurídicas, ou a

substituição da linguagem jurídica por outros tipos de linguagem técnica, não cabível em diplomas jurídicos, conduzem a que a análise de tais disposições enfermem da falta de padrão ou da imprecisão dogmático-jurídica.

A coincidência de sentido de determinados termos, em diplomas legais e documentos oficiais, nem sempre se faz sentir. Quando nos referimos, por exemplo, à

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educação ou ao ensino, pode assumir o mesmo significado, ou não, independentemente do contexto em que se insiram, tomando como exemplo o caso vertente em que se usa, indiscriminadamente, os conceitos de “direito”, “princípio” ou, simplesmente, “particularidade”.

Conforme ficou dito, o artigo 12.º da LBSEE procurou corrigir o sentido da obrigatoriedade da educação, antes prevista no artigo 8.º da LBSE, mas não o conseguiu de forma satisfatória de modo a encontrar-se a eficácia a sua aplicação.

O artigo 12.º da LBSEE “traduz-se”, no dizer da lei, “no dever de Estado, das famílias e das empresas em assegurar e promover a frequência ao Sistema da Educação e Ensino a todos os indivíduos”, deferindo a responsabilidade a esses sujeitos activos a quem cabe prestar o serviço da educação, mas não submete os sujeitos beneficiários dessa prestação o dever de frequentar a escola”. N~o exprime a correspondência necessária entre o dever de ensinar e o dever de aprender.

Embora as diferentes Constituições da República Popular de Angola e da República de Angola não estabeleçam, expressamente, a educação como um direito, os avanços em termos quantitativos são evidentes, como nos mostra a tabela seguinte, (tomando-se em linha de conta que Angola herdou, em 1975, uma taxa de 85% de analfabetos, conforme afirma o documento Mesa Redonda sobre Educação para todos

1991, na página 32), malgrado a sua universalização estar longe de ser alcançada.

Observemos a tabela demonstrativa abaixo:

Tabela de dados comparativos de matrículas, de1977 a 2010 (de cinco em cinco anos), nos ensinos primário e alfabetização:

Nível de ensino 1977 1985 1990 2009 2011 Ensino Primário (4 classes) 12.972 14.917* **** 989.682 76%** 3.967.886**** 76,3*** 4.875.868**** Alfabetização* 46.404 39.891 32.492 532.491**** 561.424**** * Fonte: Mesa Redonda sobre Educação para todos 1991

** Taxa real de escolarização 51%

*** Taxa líquida do ensino primário: Fonte IIBEP, 2008-2009, Relatório Analítico, Vol. 1 **** Fonte: GEPE, MED310

310 De acordo com o GEPE, MED, nas campanhas de alfabetização de 2008 a 2012 foram alfabetizados

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Apesar do facto de, formalmente, não se ter proclamado o Direito à Educação como um direito fundamental, a verdade é que a grande adesão das pessoas à escola se deveu ao facto de, nos “discursos do Presidente da República”, se impor a alfabetizaç~o e a massificaç~o escolar como um “dever revolucion|rio”, o que ocasionou o fenómeno da “explos~o escolar”, devido ao facto de as solicitações serem de tal monta que as estruturas educacionais da época, não preparadas para a nova realidade, não conseguiram suportar.

A falta de acesso esteve directamente ligada à situação de guerra que eclodiu mesmo antes da proclamação da independência, que gerou a deslocação das populações das suas zonas de origem e sobrecarregou as infra-estruturas existentes. Deste modo, a exiguidade de estruturas físicas e de recursos humanos capacitados contribuiu para o deficiente cumprimento da prestação positiva a que o Estado se obrigava. Como resultado, o exercício da educação ficou retraído por força de factores sociais e económicos que impediram a sua plena realização, não se consubstanciando na preterição dos direitos humanos do cidadão, mas na falta de condições subjectivas e objectivas para o seu exercício, quer por parte do cidadão, quer por parte do próprio Estado. Daqui se pode extrair a conclusão de que, em condições extraordinárias, é concedida ao poder público a faculdade de não cumprir com as prestações positivas, mesmo que constitucionalmente obrigatórias. Nesses casos, há que determinar-se, com clareza, o que significa “situações extraordin|rias”, que esta express~o peca por ser abstracta, por poder ter a possibilidade de ser aplicada a uma multiplicidade de situações de facto, dando uma larga margem de arbitrariedade ao Estado de enquadrar o seu incumprimento no “saco das situações extraordin|rias”.

Por outro lado, a obrigatoriedade de ensino não deverá exprimir-se, unicamente, no dever do Estado em prover as condições para que as pessoas possam exercer a sua faculdade de aceder e frequentar a escola, conforme se dispõe constitucionalmente no artigo 21.º ou, de modo funcional, no artigo 12.º da LBSEE. A efectividade desta obrigação positiva do Estado deverá, necessariamente, corresponder ao dever dos pais e encarregados de educação das crianças em idade escolar, no ensino primário, de conduzir os seus filhos à escola. A obrigatoriedade deverá ser entendida nos dois sentidos: do Estado, na criação de condições para que o direito à educação se realize, e

período de 2004/2008. De acordo ainda com a mesma fonte, o Ensino Primário registou, no mesmo período, um crescimento de 30,4%.

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dos destinat|rios, em “usar bem” esses recursos. Para o efeito, h| que estabelecer-se medidas punitivas para os responsáveis que tenham a seu cargo crianças em idade escolar e não cumpram com os seus deveres.

4.3. O Posicionamento institucional da escola e a sua contribuição na formação