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3. A FUNDAMENTALIDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO

3.4. Conceito e conteúdo do direito fundamental de instrução versus

Angola, ao aprovar a sua primeira Constituição, em Novembro de 1975, com a proclamação da independência em relação ao território português, declarou expressamente, no seu artigo 3.º, o combate enérgico ao analfabetismo e o obscurantismo e a promoção do desenvolvimento de uma educação ao serviço do Povo e de uma verdadeira cultura nacional, enriquecida pelas conquistas culturais revolucionárias dos outros povos.

Não se trata aqui de considerar o direito à educação, na República de Angola, como:

 Uma norma fundamental, por estar colocada no grau superior da Ordem Jurídica (artigo 13.º da Lei Constitucional, de 1975, e nas sucessivas revisões

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constitucionais precedentes, até aos nossos dias – última revisão em 2010); e, como tal:

 Norma esta submetida a normas especiais de revisão e vinculativas do poder público, além de tutelada por um sistema de garantias, pela “fundamentalidade do interesse ou carência protegida”, de que nos fala Nina Ranieri229.

O que aqui se consagra é a afirmação de um dever do Estado de combater o analfabetismo e o obscurantismo. Não prescreve um direito individual do cidadão à educação e não reconhece, expressamente, a educação como um direito do homem.

Refere-se esta norma ao conteúdo da educação a ser ministrada nas instituições de ensino da República Popular de Angola, instituições estas pertencentes ao poder público, ao Estado, como: “promoç~o do desenvolvimento de uma educaç~o ao serviço do Povo e de uma verdadeira cultura nacional, enriquecida pelas conquistas culturais revolucion|rias dos outros povos”230. Em consequência, embora a norma constitucional

prescreva o exercício de uma prestação positiva por parte do Estado, os titulares aparecem desprovidos dos meios para exigir essa mesma prestação.

229 O direito à educação, destarde, inserido no nicho dos direitos fundamentais, apresenta-se revestido das

qualidades que a este são próprias. Estes caracteres, aliás, consagram a postura dos direitos fundamentais como elementos da essência de uma Constituição. Já proclamava a Declaração Francesa

dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de Agosto de 1789, que preconizava no seu artigo 16.º:

“Toda a sociedade em que a garantia dos direitos n~o estiver assegurada [...] não tem Constituição”,

revelando, como anota Robert Alexy:

A natureza de direitos morais, porquanto contam com a “universalidade” na sua estrutura, assumindo a postura de direitos contra todos;

 A qualidade de direitos preferenciais, porquanto fundamentam, exactamente, o direito dos homens à sua tutela pelo Direito Positivo;

 A “fundamentalidade do interesse ou carência protegida” que exige e implica na “necessidade de respeito, sua protecç~o ou o seu fomento pelo Direito” (“Direitos Fundamentais in Estado Constitucional Democr|tico” Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v.16, 199, p.203) in Nina Beatriz Stocco Ranieri (Coord.), Direito à Educação, Aspectos Constitucionais, EDUSP, São Paulo, 2009 – Fundamentalidade do direito à educação – Monica Herman S. Caggiano – p. 17 e ss.

230 Designa-se por constitucionalização a incorporação de direitos subjectivos do Homem em normas

formalmente básicas, subtraindo-se o seu reconhecimento e garantia à disponibilidade do legislador ordinário (Stourz). A constitucionalização tem como consequência mais notória a protecção dos direitos fundamentais mediante controlo jurisdicional da constitucionalidade dos actos normativos reguladores destes direitos. Por isso, e para isso, os direitos fundamentais devem ser compreendidos, interpretados e aplicados como normas jurídicas vinculativas e não como trechos ostentórios ao jeito das grandes “declarações de direitos” – in “Constitucionalizaç~o”, ponto 2, do cap. 1 – Constitucionalização e Fundamentalidade – José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e

Teoria da Constituição, 7.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2003, p. 378.

A categoria de “fundamentalidade” (Alexy) aponta para a especial dignidade de protecç~o dos direitos num sentido formal e num sentido material.

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O direito à educação surge, nesse âmbito, mais como uma declaração de princípios do que como um direito subjectivo efectivo.231

A Declaração Mundial sobre a Educação para Todos, aprovada pela Conferência Mundial sobre a Educaç~o para Todos: “Satisfaç~o das Necessidades B|sicas de Aprendizagem” realizada em Jomtien, Tail}ndia, de 5 a 9 de Março de 1990, definiu dez objectivos a atingir pelos Estados Parte no que concerne à educação básica:

 Satisfação das necessidades básicas de aprendizagem;

 Expansão do enfoque;

 Universalização do acesso à educação e promoção da equidade;

 Concentração da atenção na aprendizagem;

 Ampliação dos meios e do raio de acção da educação básica;

 Propiciamento de um ambiente adequado à aprendizagem;

 Fortalecimento das alianças;

 Desenvolvimento de uma política contextualizada de apoio;

 Mobilização de recursos;

 Fortalecimento da solidariedade Internacional.

O direito à educação surge-nos, não como uma prerrogativa inerente à qualidade humana232, mas pela assumpção das normas de Direito Internacional, que a Constituição

da República de Angola de 2010, no artigo 13.º, consagra, acolhe, recebe e integra no seu ordenamento jurídico, nomeadamente os Tratados e Acordos Internacionais aprovados ou ratificados. Deste modo, o respeito e a garantia da efectivação do direito à educação

231 É opini~o generalizada que “A trajectória histórica da doutrina dos Direitos Humanos é indicador

preciso da clara preocupação do Homem – ou dos mais conscientes dos homens – com a sua instrução. Já desde a edição da declaração francesa de 1789, avulta a ideia da impositiva necessidade de se assegurar o acesso à educação e aos meios direccionados na emancipação intelectual e política do ser humano, integrante da comunidade social.” No seu pre}mbulo emerge evidente a hostilidade em relação à ignorância, registando-se neste documento, já nas suas primeiras linhas: “que a ignor}ncia, o esquecimento e o desprezo pelos direitos humanos são as únicas causas dos males públicos e da corrupç~o dos Governos” (in Textos Básicos sobre Derechos Humanos, Madrid, Universidad Complutense, 1973, p. 87).

232 De acordo com M|rio Pinto: “As prestações dos direitos sociais s~o condições materiais ou sociais,

constituídas por bens ou serviços, exteriores mas necessários para que as autonomias ou liberdades

pessoais fundamentais possam ser efectivamente exercitadas, em igualdade de oportunidades, por

todos e cada um. Neste sentido, os chamados direitos sociais não são autonomias pessoais, como os direitos de liberdade; de certo modo pressupõem o inverso, isto é, dependências pessoais, por isso mesmo originando expectativas jurídicas, “pretensões jurídicas” ou direitos “prima facie”, cujo objecto s~o prestações ou serviços sociais a satisfazer por outrem, a Sociedade Civil ou o Estado”. – Mário Fernando dos Campos Pinto, Sobre os Direitos Fundamentais de Educação – Crítica ao Monopólio Estatal

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estariam assegurados, conforme dispõe o artigo 2.º, n.º 2, da lei matriz, que, deste modo, materializa o princípio in dubio pro libertate e o “princípio da presunç~o da conformidade dos direitos fundamentais com o direito internacional dos direitos humanos, o qual implica uma interpretação harmonizadora das normas constitucionais e jurídico-internacionais consagradoras dos direitos humanos, o que supõe a obrigatoriedade, por parte dos operadores jurídicos nacionais”, por serem “dotados de aplicabilidade directa quando da resoluç~o de questões de direito constitucional”, a que o direito à educação integra.233, 234 Mesmo assim, tais normas de direito internacional

estão sujeitas a fiscalização da constitucionalidade235, contrariando a teoria da

superioridade do direito internacional prosseguida por Galvão Teles.236

Apesar das inúmeras possibilidades teóricas que se nos apresentam, é certo, por incontestável, que a interpretação dos direitos fundamentais237 deve ser feita de acordo

com a Constituição, assim como qualquer norma jurídica o deve ser, de acordo com o que dispõe o artigo 9.º do Código Civil e tendo em vista a harmonização do sistema jurídico. E porque estes direitos estão na base do Estado e das relações entre o Estado e os cidadãos, a sua compreensão é decisiva para se perceber acerca do Estado e de toda a vida jurídica, senão até política. Daí que a teoria interpretativa não deve ser arbitrária, não se desviando quer da letra constitucional, quer dos diplomas avulsos que a suportam e complementam, quer do conteúdo dos instrumentos internacionais que a conformam.

233 Yuval Shany, “How Supreme is the Supreme Law of the Land? Comparative Analysis of the Influence of

International Human Rights Treaties Upon the Interpretation of Constitutional Texts by Domestic Courts”, 31 Brooklyn Journal of international Law, 2006, 314 ss, apud Jónatas Machado e outros,

Direito Constitucional Angolano, 2.ª edição Coimbra Editora, Coimbra, Janeiro 2013, pp. 176 e 177.

234 Jónatas Machado e outros, Direito Constitucional Angolano, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra,

Janeiro 2013, pp. 177. Acrescentam, ainda, os autores que “este entendimento (da recepç~o da norma de direito internacional no direito nacional) não implica a total permeabilidade territorial e constitucional da soberania estatal, de acordo com o universalismo sem fronteiras, antes acolhe e considera as dimensões pré-, supra- e trans-estaduais inerentes aos direitos humanos”.

235 Albino de Azevedo Soares, Lições de Direito Internacional Público, 4.ª edição, reimpressão, Coimbra

Editora, Coimbra, 1996, pp. 100-101.

236 Cfr. Acórdãos do STA, citados por Galvão Telles, em Eficácia dos Tratados na Ordem Jurídica Portuguesa,

p. 55, nota 53, e pp. 107-109 e nota 1034, apud Albino de Azevedo Soares, Lições de Direito

Internacional Público, 4.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, pp. 97-101.

237 Como nos ensina o Professor Doutor Pedro Barbas Homem, a "norma legal comanda que a

interpretação deve reconstituir o pensamento legislativo a partir dos textos, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que foi elaborada e as condições em que é aplicada, e que na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o pensamento em termos adequados. Mas esta reconstituição do pensamento legislativo deve ter presente as ideias de Direito e de Justiça, em especial aquelas que se encontram acolhidas na Lei Constitucional e nos textos do Direito Internacional vinculativos do Estado”. Pedro Barbas Homem, Introdução ao Estudo do Direito na República de Angola [no prelo].

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A Constituição de Angola, ao aderir à Declaração Universal dos Direitos Humanos e ao prescrever, no artigo 26.º, que os direitos fundamentais nela inseridos não afastam outros direitos que, embora não expressamente tipificados, façam parte dos direitos proclamados e das leis e regulamentos de Direito Internacional, assumiu inteiramente a integração das suas normas jurídicas no seu ordenamento jurídico, uma vez que não o fez com reservas, nomeadamente a do artigo 26.º, que enuncia que “Toda a pessoa tem direito { educaç~o…” e que essa educaç~o deve “visar a plena expans~o da personalidade humana e ao reforço dos Direitos do Homem e das liberdades fundamentais”.

No mesmo sentido, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, também chamada como “Carta de Banjul”, adoptada pela Organizaç~o da Uni~o Africana (OUA), em Nairobi (1981), dispõe no artigo 17.º, n.º 1, que “Todas as pessoas têm direito { educaç~o”, enquanto o artigo 13.º, n.º 2, afirma que “Todos os cidad~os têm igualmente direito de usar bens e serviços públicos em estrita igualdade de todos perante a lei”.

Este preceito da Constituição (Artigo 26.º) sujeitou também, de modo expresso e inequívoco, que a interpretação dos preceitos constitucionais e legais fosse feita de acordo com a Constituição e outros instrumentos internacionais, nomeadamente da já citada Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), da Carta Africana dos Direitos

do Homem e dos Povos e demais instrumentos jurídicos internacionais ratificados, tais

como a Declaração Mundial sobre a Educação para Todos e o Plano de Acção para

Satisfazer as Necessidades Básicas de Aprendizagem (II), também chamada de Declaração de Jomtien (1990), e ainda a Declaração de Salamanca, sobre a Igualdade de

Oportunidades para as Pessoas com Deficiência, datada de 1994, só para citar alguns exemplos. Destarte, a Constituição da República de Angola consagra, por via da integração das normas de Direito Internacional, o direito à educação238.

Assim, o indivíduo, à luz da Constituição de Angola, pode livremente exigir do Estado a satisfação do seu direito a frequentar uma escola. Contudo, o direito à educação como um direito social reclama do Estado uma determinada conduta, no caso, uma prestação positiva, sem a qual o indivíduo não poderá satisfazer a sua pretensão de ter acesso à educação.

238 “A compreens~o do conteúdo do direito { educaç~o n~o pode ser dissociado de uma perspectiva

teleológica, expressa nos textos internacionais. A educação visa a expansão da personalidade humana, o respeito dos direitos do homem e liberdades fundamentais, a compreensão e a tolerância entre as nações e grupos raciais ou religiosos” Pedro Barbas HOMEM, Pedro, “Direitos e Deveres Fundamentais

de Pais, Professores e Alunos perante a Autonomia das Escolas” in Revista Educação e Direito, nº 1, 1.º Semestre, 1999, p. 112.

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É neste sentido que devem ser interpretadas as normas do artigo 21.º da Constituição, que impõem ao Estado a promoção de políticas que assegurem o acesso universal ao ensino obrigatório e gratuito em termos a definir; do artigo 79.º “Direito ao Ensino, cultura e desporto”, a obrigaç~o da promoç~o de acesso de todos à alfabetização e ao ensino, do artigo 80º, sobre a protecção à infância, cobrando da família, em primeira linha o dever-poder de assegurar a “ampla protecç~o” de todas as crianças, sem discriminação, ao que se segue a sociedade e, por fim, ao Estado, do artigo 81.º sobre a protecção à juventude, conferindo a estes destinatários protecção especial para efectivação dos seus direitos sociais de ensino e de formação profissional e do artigo 83.º sobre a protecção especial à pessoa portadora de deficiência, conferindo-lhes o gozo do exercício pleno de todos os direitos consagrados nesse magno texto, e de protecção especial.

O direito à instrução, decorrente do direito à educação, tem como corolário o dever de aprender. Não só ao poder público compete uma prestação positiva, também da parte do beneficiário dessa acção, o outro sujeito da relação, se obriga a cumprir com os objectivos dessa formação. Incide, pois, sobre o indivíduo, não só o direito de acesso e frequência às aulas, mas também, e sobretudo, o dever de aprender as matérias que lhe são ministradas, principalmente naquelas instituições de ensino sujeitas à obrigatoriedade e à gratuitidade do ensino, definidos nos termos do artigo 11.º, n.º 2, da LBSEE, nomeadamente nas instituições de ensino públicas.

A restrição da gratuitidade do ensino às instituições de ensino público, previsto na LBSEE, constitui um retrocesso em termos de acesso no direito à educação e fere o princípio da universalidade, segundo o qual “todos os indivíduos têm iguais direitos no acesso, frequência e no sucesso escolar”, prescritos no artigo 9.º, dessa Lei, porque discrimina os alunos que nas condições de Angola s~o “obrigados” a recorrer ao ensino privado por falta de vagas no ensino público. Situação esta que não era observada no âmbito da lei anterior, a LBSE, em que a obrigatoriedade e a gratuitidade se estendiam a todos, independentemente de frequentarem o ensino público ou o privado, conforme ditames do artigo 7.º, dessa lei.

Tal situação poderá ser sanada com o alargamento da rede escolar pública de modo a atingir-se a universalidade do ensino, e em que o ensino privado seria uma verdadeira opção, de acordo com o melhor interesse dos pais na escolha da educação a dar aos seus filhos.

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Por outro lado, do cumprimento do dever de aprender depende o sucesso escolar individual e colectivo, correspondente ao direito de serem ministrados conhecimentos de elevados padrões científicos, técnicos tecnológicos e culturais”, satisfazendo ao pretendido no artigo 14.º da LBSEE, por professores com igual perfil e os meios adequados.

O direito à instrução coloca, em cada um dos lados da relação jurídica, sujeitos com direitos e deveres distintos numa relação de imparidade: por um lado, encontra-se o Estado, pessoa jurídica que tem o poder de regulamentação, supervisão, fiscalização, controlo e avaliação do sistema educativo, no seu todo, e também do aluno; do outro, encontra-se o indivíduo que deverá submeter-se às normas de acesso, frequência e avaliação prescritas por aquele, sem poder real de este as alterar. Existe uma relação de supra-infra ordenação, de sujeição às normas prescritas e, nesse contexto, não existe igualdade entre os sujeitos, nem um acordo negociado nos termos entendidos pelo artigo 232.º do CC: acordo sobre as cláusulas de acesso, frequência e avaliação. A igualdade consiste no dever de ambos os sujeitos cumprirem com a prescrição da lei, sob pena de responsabilidade civil.

O poder público não se relaciona com os particulares numa situação de paridade, mas investido de autoridade, através de órgãos, que exprimem a vontade estatal e cuja actividade se processa através de serviços: a Administração Pública. Compete ao Estado aferir do mérito do direito reclamado pelo particular. É esta situação a que Marcello Caetano chama de “definiç~o de situações jurídicas da pessoa cujo órg~o se pronunciou ou de outra que com ela est|, ou pretende estar, em relaç~o administrativa”239.

Entre o Estado e o particular estabelecer-se-á uma relação administrativa, fundada num contrato administrativo. Este deverá ter as características gerais do contrato civil, nomeadamente, a manifestação de vontade, a bilateralidade ou a plurilateralidade e realização de um objectivo comum, mas não a mesma capacidade das partes para regular, modificar ou extinguir as relações compostas entre si. Para ser considerado um contrato administrativo e integrar o direito administrativo deverá ter um quid que o diferencia do direito comum, este elemento de diferenciação é, precisamente, o poder de intervenção, que reveste a autoridade pública.

239 Marcello Caetano, Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, reimpressão da edição Brasileira

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A especificidade dessa relação jurídica consiste no facto de um dos sujeitos estar investido do poder de imperium, o que se revela incompatível com a noção de contrato, por ser difícil dissociar o Estado-Administração da entidade soberana, a que Marcello Caetano denominou de “Estado-global”240.

Na doutrina duas correntes opostas sobressaem: a) A tese Negativista;

b) A tese do Contrato Específico do Direito Público.

A primeira, a tese negativista, não concebe a compatibilidade da figura do contrato com a essência do Direito Público, em que o Estado se situa, pela impossibilidade deste poder desonerar-se da sua autoridade. Tal coloca-o numa posição de superioridade em relaç~o ao particular, que se traduz “em imposições unilaterais no decurso da execuç~o do pseudocontrato”, o que perverteria a essência do próprio contrato, ou seja, a igualdade jurídica dos contraentes. Em sentido contrário, a tese do Contrato Específico do Direito Público sustenta a compatibilidade da figura do contrato com a disciplina do Direito Público, mas afastada da noção proposta pelo direito privado. Esta corrente doutrinária reconhece a supremacia do Estado sobre o particular, admite a submiss~o do particular { vontade do Estado “numa relaç~o de subordinaç~o”, sem afastar a existência de um acordo, em que o Estado se obriga a prestar apoio e protecção jurídica e em, alguns casos, remuneração. Os seguidores dessa doutrina defendem que, embora “a relaç~o jurídica estabelecida entre o Estado (entidade pública) e o particular (ente privado), trata-se de criar uma relação de subordinação cuja sequência depende da vontade preponderante de um dos sujeitos, o qual pode modificar substancialmente o respectivo objecto, e não uma relação de cooperação, como característica do contrato privado”241.

Uma terceira via é defendida por Marcelo Caetano, como crítica às duas alternativas já enunciadas, invocando que nenhuma das teses apresentadas se afastava, de facto, do conteúdo do direito privado e apresenta as seguintes razões:

a) O Estado-Administração desenvolve a sua actividade “derivada” do Estado- Global, que detém a soberania e nos termos por este limitados e regulados; b) O Estado-Administração, ao constituir-se em órgão do Estado-Global, está

sujeito, tal como o sujeito privado, às normas impostas pelo Estado-Global,

240 Idem, p. 179. 241 Idem, pp. 178 e 179.

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colocando os titulares em situação de compromisso do cumprimento das obrigações, das quais derivam direitos imodificáveis por leis futuras, salvo excepções;

c) As vontades tanto podem ser vinculadas por contratos, como por actos unilaterais da autoridade pública;

d) No estabelecimento do contrato entre o Estado e o particular, este não se torna efectivo enquanto não se verificar o mútuo consenso entre as partes, n~o existindo nesse contexto uma “submiss~o” do particular ao Estado. Resulta daí um acordo livre sobre um objecto determinado.

Sendo assim, o contrato celebrado pela administração integra-se no género a que pertence o contrato civil e define os mesmos elementos essenciais: a capacidade dos contraentes, mútuo consenso, objecto possível. “N~o deve haver confus~o entre a determinação do objecto com a prévia fixação da quantidade e das modalidades das prestações em que se resolver~o as obrigações contraídas”. A inserç~o dessas relações (públicas e privadas) no âmbito do direito administrativo justificar-se-| “pela circunstância de por ele (direito administrativo) ser associada a uma relação duradoura”242 e no prosseguimento de um interesse público.

Tais características encontramo-las no contrato celebrado entre o Estado e os pais e encarregados de educação, ou mesmo entre o Estado e o aluno, cujo objecto é o de ministrar o ensino, sujeito a normas estabelecidas pelo Estado, em leis e regulamentos, de cumprimento obrigatório para ambos os sujeitos. Ao Estado competirá prestar um serviço público universal e de qualidade e ao particular o dever de frequentar as aulas e