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3. A FUNDAMENTALIDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO

3.2. Direito à educação: um direito de personalidade

A pessoa é o “ser humano considerado na sua individualidade física e espiritual”207. A personalidade será, então, a qualidade de ser pessoa.208

A personalidade jurídica, de acordo com o Código Civil, adquire-se com o nascimento completo e com vida e termina com a morte – artigos 66.º a 68.º, embora não afaste o direito dos concepturos e dos nascituros. A personalidade jurídica é reconhecida pelo direito de que goza toda a pessoa humana, conferindo-lhe a susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações. Nesta perspectiva, a pessoa jurídica constitui “o centro de imputações de situações jurídicas activas ou passivas, de direitos ou de obrigações”209. Do mesmo modo, o Código Civil Angolano impõe o respeito

dos direitos de personalidade e estabelece a sua tutela nos artigos 70.º e seguintes, que vão muito para além da sua qualidade de ser homem. Se o direito à vida, o direito à integridade física e o direito à dignidade, podemos, sem sombra de dúvidas (malgrado a falta de clareza do conceito de dignidade) assumi-los como intrínsecos e indissociáveis da qualidade de ser humano, já não o será tão líquido, por exemplo, a reserva das cartas missivas confidenciais por serem exteriores e independem da existência do ser humano, enquanto tal.

Pode-se inferir que a tutela da personalidade humana tem duas facetas: uma objectiva e outra subjectiva. Como nos esclarece Pedro Pais de Vasconcelos, “O direito objectivo de personalidade é indisponível e situa-se no campo da heteronomia; o direito subjectivo de personalidade diferentemente é disponível e situa-se no âmbito da autonomia privada. Naquilo que o direito de personalidade é objectivo, o titular não tem autonomia no seu exercício, não pode dele prescindir, não pode dispor dele; no que é

207 Dicionário da Língua Portuguesa, edição revista e Ampliada, Porto Editora, Porto, Março 2014, p. 1230. 208 Cabral de Moncada, Lições de Direito Civil, 4.ª edição, Edições Almedina, Coimbra, 1995, p. 250.

209 Pedro Pais Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 8.ª edição, Edições Almedina, Coimbra, Outubro

2015, p. 33; José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, Vol. I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2000, pp. 45 e ss.

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apenas subjectivo, já o titular pode livremente tolerar as ofensas, prescindir da sua defesa ou mesmo dispor dele gratuitamente ou onerosamente”210. Eis uma segunda

distinção, assaz importante, na comparação entre personalidade jurídica e direito subjectivo. Os direitos de personalidade são pois, em regra, irrenunciáveis por estarem indissociados da pessoa humana, enquanto, que os direitos subjectivos, porque conferidos pela ordem jurídica, implicam a vontade e o interesse do seu titular para o seu exercício.

É no princípio do respeito da pessoa humana que se funda o princípio da dignidade da pessoa humana que dá corpo e substância aos direitos humanos, tal como é entendido nos tempos modernos.

É preciso, contudo, sublinhar que os direitos fundamentais se referem à atribuição de posições jurídicas pela Constituição, ou por ela reconhecidos, como o caso do direito à vida, posição igualmente sustentada por José de Melo Alexandrino211 e José

Gomes Canotilho212. Oliveira Ascens~o chama a atenç~o que o facto de os “direitos

especiais de personalidade terem fundamento comum na protecção constitucional da personalidade não significa que a sua definição e regime estejam rigidamente constitucionalizados”213, na medida em que o regime estabelecido no Código Civil não

coincide com o regime previsto na Constituição. Lembra, ainda, que os direitos fundamentais vão mais além, ao atribuir direitos a organizações, que não são pessoas, e atribuem garantias aos direitos sociais, económicos e culturais, que não constituem direitos de personalidade, enquanto que no “centro do direito de personalidade deve

210 Idem, pp. 35-40.

211 De acordo com Melo Alexandrino “… os direitos do homem vieram a ser objecto de duas grandes

metamorfoses, acarretando as inerentes mutações quanto aos fundamentos, à titularidade e à natureza das novas realidades: (i) na primeira dessas metamorfoses, os direitos do homem foram transformados em direitos constitucionais da pessoa (de onde veio a emergir o conceito moderno de direitos fundamentais); (ii) na segunda, foram transformados em direitos internacionais da pessoa (de onde veio a emergir o conceito moderno de direitos humanos); num caso ocorreu um fenómeno de constitucionalizaç~o […] no outro um fenómeno de internacionalizaç~o”, José de Melo Alexandrino, A Natureza Variável dos Direitos Humanos: Uma Perspectiva da Dogmática jurídica, in Do Direito Natural

e aos Direitos Humanos, António Pedro Barbas Homem e Cláudio Brandão (Organizadores), Edições

Almedina, Coimbra, Janeiro, 2015, pp. 120-121.

212 Por seu turno, Gomes Canotilho resume, desta forma, a sua posiç~o: “… a positivaç~o dos direitos

fundamentais significa a incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos considerados naturais e inalien|veis do Indivíduo”. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra, 2003, p. 377, apud, Melo Alexandrino, Ibidem.

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estar a defesa da pessoa humana”, tomada como sujeito, fundamento e fim do Direito, sem a qual esta “categoria seria supérflua”214 e n~o na sua “individuaç~o”215.

No plano internacional, Oliveira Ascens~o acredita “numa distorç~o dos direitos fundamentais”, pela “instrumentalizaç~o ao serviço de objectivos outros que nada têm que ver com a protecç~o da pessoa”, ao abandonar “a vis~o da pessoa que est| na origem das Declarações de Direitos do Homem”216. Tal critério de apreciação, por si só não

sustenta a diferença de qualificação entre direitos fundamentais e direitos de personalidade face a argumentação de Diogo Campos, a propósito do exercício do direito de personalidade, que pretende demonstrar que também nessa esfera vigora a prevalência do “poder do mais forte”.217

Como nota, e bem, Rabindranath Sousa, as soluções teoréticas têm de assentar em dados do ordenamento jurídico em análise, a fim de se encontrar a construção jurídica que melhor se ajuste218, sem, no entanto, perder de vista que o direito tem,

indubitavelmente, um fim prático que consiste em encontrar soluções normativas para situações da vida real, juridicamente relevantes num quadro coerente e compatível com a sociedade na qual se insere.219

Sem a pretensão de encerrar, neste trabalho, a discussão em torno da eficácia jurídica e da efectividade social dos direitos humanos, da “vigência imediata dos direitos fundamentais nas relações inter privatos”220, ou da qualificação da natureza jurídica do

direito geral de personalidade como direito subjectivo, como direito pessoal absoluto ou como direito fundamental materialmente constitucional, resulta claro que a intervenção

214 José de Oliveira Ascens~o, “Pessoa, Direitos Fundamentais e Direito da Personalidade”, in Revista da

Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vols I e II, Coimbra Editora, 2009, pp. 9 a 17.

215 Desde os tempos primitivos que o conceito de individualismo era estranho às culturas da época por se

entender que a pessoa, o sujeito, era determinada pelas situações concretas em que se integrava, ou ainda numa ordem universal, no cosmos. O Cristianismo, de base metafísica, colocou o homem,

persona, no centro das questões filosóficas, éticas, jurídicas e sociais, dando substância e conteúdo ao

conceito de personalidade jurídica. Diogo Leite de Campos, NÓS – Estudos sobre o Direito das Pessoas, Livraria Almedina, Coimbra, Março de 2004, pp. 13 a 21; 23 a 33 e 139.

216 Ibidem

217 De acordo com este autor, “qualquer direito de personalidade é considerado superior a qualquer outro.

Basta que o que o invoca esteja em posição de vantagem, seja o mais forte. [...] O Direito, enquanto ética, justiça, abandona perante o direito/relaç~o de poder, o direito do mais forte”, Diogo Leite de Campos, NÓS, Estudos sobre o Direito das Pessoas, Livraria Almedina, Coimbra, Março de 2004, pp 153 a 163.

218 Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Wolkers Kluwer Portugal sob a

marca Coimbra Editora, 1.ª edição (Reimpressão), Lisboa, Janeiro 2011, p. 605.

219 António Castanheira Neves, Introdução ao Estudo e Direito, Coimbra Editora, Coimbra, 1989-90, pp. 89

ss; João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, editora Almedina, Coimbra, 2014, pp. 11 e ss e José Dias Marques, Introdução ao estudo de direito, Petrony, Lisboa, 1968, p. 26 e ss.

220 Claus-Wilhelm Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Edições Almedina, Agosto 2016, pp. 19

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do poder público, mormente do controlo da constitucionalidade, deve ser feita, quer no âmbito da protecção dos direitos fundamentais, quer na tutela das relações privadas relevantes para o direito, conferindo-lhe certeza e previsibilidade.221, 222

Nasce daqui a questão de saber em que medida o legislador de direito privado está vinculado às disposições de direitos fundamentais, qual a natureza dessa vinculação e a sua eficácia no ordenamento jurídico em causa.

A este propósito, Claus-Wilhem Canaris, na sua obra “Direitos Fundamentais e Direito Privado”, trouxe a lume em especial duas decisões. Uma delas foi proferida pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, em 1990, sobre o representante comercial, em que o referido Tribunal declarou a inconstitucionalidade do parágrafo 90º, n.º 2, 2.ª frase, do Código Comercial, por ofensa ao artigo 12.º, da Lei Fundamental. A outra refere-se à decisão de 1993, sobre fianças prestadas por familiares do devedor principal, de reduzido património.223 Esses acórdãos retratam, sem dúvida, a vinculação

imediata do direito civil ao direito fundamental e dos seus efeitos jurídicos, em respeito ao princípio da hierarquia das normas jurídicas em que a norma constitucional se posiciona no topo, à qual as restantes normas ordinárias lhe são submissas, isto é, colocam-se num plano sob a Constituição, no sentido de uma lex superior224. Deste

modo, o direito civil seria como que um “desenvolvimento extensional” do direito constitucional, através da tutela dos direitos de personalidade.

Muitas questões são levantadas em torno da relação entre direito constitucional e direito civil que, indubitavelmente, se reflecte na dificuldade de se posicionar ou tratar o direito da educação como ramo específico do direito público ou de direito privado. Por outro lado, como bem refere José de Oliveira Ascens~o, “n~o existe equivalência entre

221 Eugénio Facchini Neto, Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado,

in Ingo Wolfgang Sarlet (Organizador), Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, pp. 48-53.

222 A propósito da aplicação imediata dos direitos fundamentais ao direito civil, José Carlos Vieira de

Andrade refere que “Admitir-se-ia que os sujeitos dos direitos fundamentais se auto-restringissem, desde que não fosse posto em causa o conteúdo essencial dos direitos: tal como se admite a restrição heterónoma pelo legislador, deveria aceitar-se a restrição autónoma e com os mesmos limites. Por sua vez, o princípio da igualdade valeria também para as relações entre particulares, mas não poderia prejudicar intoleravelmente a liberdade (por exemplo, a liberdade de testar ou de contratar)”. José Andrade, Os Direitos, Liberdades e garantias no âmbito das relações entre particulares, in Ingo Wolfgang Sarlet (Organizador), Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, pp. 271 e 279.

223 Claus-Wilhelm Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Edições Almedina, Coimbra, Agosto

2016, pp. 19 e 20.

224 Canaris chama a atenção para a distinção entre Constituição e lei e recorda que os direitos

fundamentais são imanentes ao direito ordinário, e que a Constituição em sentido material [...] hoje em dia também se revela na lei ordinária em sentido formal, Idem, pp. 27 e 129.

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direitos fundamentais e direitos de personalidade”, merecendo uma abordagem distinta, conforme se lê a seguir: “A categoria básica em confronto com os direitos de personalidade é hoje a de direitos fundamentais, porque eles se referem às constituições políticas: As Constituições visam a posição do indivíduo face ao Estado enquanto que os direitos de personalidade atendem a emanações da personalidade humana em si, prévias valorativamente a preocupações de estruturação jurídica, sem desprimor da sua consagraç~o constitucional”225.