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A Incerteza do Espaço, do Tempo e do foco de Cuidados

1. MANTER A CONTINUIDADE DOS CUIDADOS NO DOMICÍLIO : UM DESAFIO

1.1 O Programa: ambiente e Caracterização Geral

1.2.5 A Incerteza do Espaço, do Tempo e do foco de Cuidados

O contexto domiciliário apresenta algumas particularidades dificilmente encontradas numa instituição. Nesta, o espaço de prestação de cuidados pode ser arquitectónico e temporalmente limitado. Os cuidados decorrem na enfermaria onde a pessoa está internada, e podem estender-se a alguns serviços para a realização de exames complementares de diagnóstico ou intervenções particulares. O foco dos cuidados é, assumidamente, a pessoa, até porque, em regra, se trata de instituições para cuidados em situação aguda de doença, no caso dos hospitais. É igualmente possível, com alguma precisão, determinar o tempo de cuidados, sendo comum, em vários hospitais, a adopção de um sistema que permite identificar o tempo cronológico que cada utente consome em matéria de cuidados de enfermagem.

Numa das primeiras deslocações a casa de um utente, acompanhando a enfermeira, um episódio fez com que ponderasse a questão do tempo, do espaço e do foco de cuidados, decidindo, pois, a construção de uma categoria que englobou todas as dimensões e propriedades inerentes a este espaço sem local específico, com tempo indefinido e um objecto em constante mutação.

São 10,30 da manha e está frio. A enfermeira é recebida pela cuidadora da IPSS local que lhe diz: olhe que ainda está deitado! A enfermeira sorri e chama: Sr M. Posso entrar? (…) O quadro é sui generis: na penumbra distingo dois idosos deitados na cama de casal, aconchegados, a esposa de olhos semicerrados, ele desperto. A enfermeira brinca: os dois pombinhos ainda na cama? - Estávamos à espera da senhora enfermeira! É o nosso despertador! A enfermeira desculpa-se por vir tão cedo numa manhã tão fria… [OP]

De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a incerteza ou o imponderável significa “que ou aquilo que não pode ser calculado, nem previsto, mas cujo efeito pode ser determinante”. Ora, em contexto domiciliário, o espaço, o tempo e o foco de cuidados oferecem precisamente estas características de incerteza. Quando questionadas sobre o espaço de cuidados de uma pessoa, as respostas são similares às da enfermeira EM

Essencialmente onde encontramos as pessoas. Já encontrámos familiares na rua e ficámos ali meia hora. O espaço de cuidados foi ali… Porque aquela pessoa precisava de conversar e proporcionou-se ali, não é só a casa

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do utente que é o espaço, é o local que arranjámos e que foi o adequado. O espaço de cuidados vai desde a cama do doente até á casa de banho se for preciso. Muitas vezes termina fora de casa. A gente não fecha a porta e termina ali… continua para fora de casa, levamos muitas coisas para resolver. É um contínuo… situações que a gente tem que dar a volta. (…). Muitas vezes tem que se ir pedir qualquer coisa ao médico, é uma receita ou uma credencial…

O espaço ultrapassa o domicílio. Os cuidados são planeados no Centro de Saúde, prestados no domicílio ou estendidos à Junta de Freguesia (quando a profissional vai solicitar algo para a pessoa/família) e até ao carro da enfermeira (quando ali discute um assunto relativo à pessoa, identifica estratégias de intervenção ou pede apoio). Relativamente à casa, os cuidados directos usualmente acontecem no local onde a pessoa se encontra: o quarto, mas também pode ser a sala, a varanda, o jardim, a garagem.

O tempo está relacionado com o espaço. Em média, há 50 utentes activos, semanalmente e por extensão, no PCCD. Nem todos são objecto de deslocação diária, nem o tempo dispendido com todos é o mesmo. Percebi ainda que o tempo de cuidados apresenta particularidades: o tempo de cuidados de cada pessoa é o tempo de que esta necessita, sem que haja cortes na continuidade. É possível calcular com alguma precisão o momento de início dos primeiros cuidados, mas o mesmo não acontece com as etapas subsequentes. Mesmo a necessidade de alargar o espaço de cuidados ocasiona a dificuldade de precisar o tempo dispendido com cada pessoa.

Para alguns utentes, o tempo de cuidados é delimitado ao tempo de permanência da enfermeira em sua casa:

Não força o final da visita, a enfermeira ouve, estimula, não termina a conversa… atenta, ouvinte, sempre perto da senhora… senta-se na cama, segura na mão, ouve… esta vai contando (pelo que entendi, reconta) a história do diagnóstico. Verifica se está confortável, volta a explicar como deve ser mobilizada… [OP]

Para outros, as deslocações ocorrem diariamente, duas ou mais vezes ao dia, durante a noite e no fim-de-semana; são utentes cuja situação de dependência é acompanhada pela enfermeira, num continuum de 24 horas, entre a casa e o centro de saúde, ou mesmo a casa da própria enfermeira.

Com o telemóvel todas sabemos que vir para os cuidados continuados era assim, e desta forma não custa tanto, divide-se por todas… fica cada uma de nós com ele. Costumamos dizer que os nossos doentes têm bom senso, eles só telefonam mesmo em caso de necessidade (…) por vezes temos mesmo que ir, faz parte do nosso trabalho! Os doentes esperam muito de nós e sabemos que é assim [CEN]

Não há tempo de cuidados. Não vou dizer que não haja situações em que nós não tenhamos que apressar um bocadinho as coisas. (…) Podemos ir a casa de uma pessoa, achávamos que íamos demorar cinco minutos e acabamos a demorar uma hora. Foi o tempo de cuidados necessário para aquela pessoa. [CM]

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O tempo de cuidados obedece, ainda, ao tempo da pessoa e, principalmente, ao tempo da família. É frequente a enfermeira gerir as deslocações com o horário dos cuidadores, quando necessita de informações adicionais ou de esclarecer algum assunto.

Por último, se é a pessoa o motor da deslocação da enfermeira, nem sempre esta é o objecto directo do cuidado: os cuidados são direccionados para o cuidador principal, sob a forma de um conselho, de escuta activa ou cuidados directos, como intervenções técnico-científicas (injecções, pensos, avaliação de constantes vitais). Frequentemente, a rede alargada de apoio da pessoa torna-se objecto de cuidados, veja-se o caso dos vizinhos que se aproximam à chegada da enfermeira e solicitam um conselho ou uma informação. O foco da deslocação pode ainda ser encarado pela necessidade de intervir na casa, sendo que a visita decorre à volta das modificações que é necessário incluir na habitação.