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1. MANTER A CONTINUIDADE DOS CUIDADOS NO DOMICÍLIO : UM DESAFIO

1.1 O Programa: ambiente e Caracterização Geral

1.1.1 Os actores

O programa criou raízes à volta de um conjunto de princípios que a equipa integra. A mesma questão colocada a cada profissional obterá a mesma resposta: a finalidade do PCCD é manter o utente na sua própria casa. É este o objectivo que move a equipa, confere unicidade e permite que cada profissional desempenhe o papel que lhe foi atribuído.

A equipa multidisciplinar de Cuidados Continuados é composta por dois tipos de equipas técnicas: a equipa coordenadora e a equipa prestadora.

A equipa coordenadora é constituída por Enfermeiro, Médico e Técnico de Serviço Social e articula-se com os parceiros da comunidade (Hospital, Segurança Social local, Autarquia, IPSS,

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grupos de voluntariado); compete-lhe globalizar e avaliar as actividades (com auxílio de indicadores preestabelecidos), potenciar e optimizar a articulação da rede de parcerias, proceder ao levantamento das dificuldades e apresentar propostas de solução e de gestão de recursos.

As intervenções no terreno são prestadas pela equipa prestadora (com composição definida), em cada uma das quatro áreas, em função de utentes inscritos, índice de envelhecimento e de dependência, padrões de morbilidade, recursos disponíveis e de acessibilidade. A equipa é constituída por: enfermeiras, uma auxiliar de acção médica (em regime de exclusividade no programa), um médico, um fisioterapeuta, um terapeuta ocupacional e um psicólogo (a desempenhar outras actividades no centro de saúde).

Assim, a equipa prestadora funciona como gestora de cuidados no domicílio. A visita domiciliária é o instrumento para a prestação de cuidados de saúde e enquadra-se em três vertentes complementares: a) visitas de tratamento/prevenção (acompanhamento e solução para situações agudas de saúde), que podem ocorrer diariamente (ou mais do que uma vez por dia); b) visitas de promoção da saúde, realizadas a intervalos definidos em função do diagnóstico da enfermeira; e c) visitas de reabilitação, de periodicidade definida localmente, que podem envolver, além da enfermeira com a especialidade de reabilitação, a fisioterapeuta e/ou a terapeuta ocupacional.

A equipa interdisciplinar da unidade de Cuidados Continuados tem a sua base nos enfermeiros e no médico de família de cada utente integrado, sendo referidas por estes intervenientes carências dificilmente colmatadas a este nível. De acordo com dados locais, o ratio enfermeiro/utente era, em 2003, de 0,7/1000 habitantes, o que tem causado a reestruturação das equipas, que passaram de quatro para duas equipas prestadoras.

As orientações específicas do programa, as indicações da RNCCI e o espaço de ocorrência dos cuidados determinam que a equipa que se move em torno da pessoa cuidada assuma aspectos peculiares: é uma equipa interdisciplinar, que inclui a equipa de saúde, organizações, autarcas locais e toda a rede que a enfermeira identifica como indispensável à pessoa (os vizinhos ou os donos de estabelecimentos locais que interagem com a pessoa cuidada).

Antes de chegarmos já existe uma rede… nem que seja um vizinho que nos vai abrir a porta… depois a outra parte da rede somos nós, levamos a assistente social, a fisioterapeuta etc. [EM].

Aqui acaba a haver uma rede de vizinhança de famílias que vivem próximas (…) levá-los para a rua e há sempre um vizinho que ajuda, que a passa para a sombra… tentamos negociar com as instituições, a ver se passam uma segunda vez a deitá-los (…) [ACEN]

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Esta equipa aponta simultaneamente uma dificuldade acrescida ao desempenho do papel da enfermeira e um potencial para conflitos de papel, pelo que uma das preocupações é a integração do grupo através de reuniões pontuais com as assistentes sociais das IPSS ou com outras entidades (como o núcleo das Vicentinas); outra preocupação diz respeito ao ensino oportuno das ajudantes de família, à necessidade de as cooptar para a equipa e de salientar a sua responsabilidade como prestadoras assíduas dos cuidados e potenciais instrumentos de observação do utente na ausência da enfermeira:

… Elas são os nossos olhos, nos doentes onde elas vão todos os dias, os doentes são vigiados (…), o senhor não está a urinar ou está a fazer uma ferida… elas informam imediatamente. Ele deixou de comer ou está mais prostrado… elas vigiam. [LM]

A equipa de cuidados do PCCD assume um papel fundamental, ao permitir que as decisões sejam, quando possível, discutidas no seu seio, o que dá segurança à enfermeira, bem como uma forma de gerir a tensão emocional decorrente das condições de trabalho solitário:

Acho que a equipa também devia ser unida e passar de uns para os outros… e dizer… olha eu agora estou cansada, ficas agora tu com mais responsabilidade ou assim… partilhar responsabilidades dentro da equipa… hoje em dia sinto-me mais segura e sou capaz de ir para casa e esquecer mas a equipa continua a ser o bom apoio que precisamos [TM]

As enfermeiras referem o trabalho neste contexto como trabalho de equipa, considerando a existência de muita autonomia, reconhecimento do papel de cada um, trabalho em complementaridade e intervenções por delegação de competências. Nesta última situação, por exemplo, a psicóloga intervém por intermédio da enfermeira, proporcionando indicações que são objecto de discussão em conjunto, a par da avaliação que a enfermeira vai realizando.

A equipa assume o objectivo comum de manter o doente em casa, logo, as decisões são abalizadas por este princípio. A sensação de partilha de objectivos é importante para a enfermeira, porque envolvem os profissionais de outras especialidades mas que não invadem as áreas alheias, reconhecendo o papel de cada um, além de que a equipa confia na decisão da enfermeira, o que motiva a sensação de segurança e de apoio nas resoluções e intervenções: como as situações são referenciadas para as enfermeiras, uma vez que são estas que acabam por aplicar os critérios de inclusão no programa e a decidir para quem encaminhar as pessoas.

A população-alvo do Programa é constituída por pessoas portadoras de dependência, com doenças crónicas ou em convalescença de doença aguda incapacitante. Assim, são condições clínicas prevalentes:

• Pessoas com sequelas de AVC

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• Pessoas acamadas com úlceras de pressão • Pessoas com patologia vascular periférica

• Pessoas com doença oncológica em fase avançada

• Pessoas com doenças neurológicas incapacitantes, com demência • Pessoas com insuficiências orgânicas (respiratório, cardíaco, renal…) • Pessoas com SIDA.

(Fonte: Equipa de Cuidados Continuados, 2001-2007)

Adicionalmente, são critérios de inclusão no Programa a inscrição e residência na área de abrangência do Centro de Saúde e a situação de dependência, transitória ou permanente, com valor superior a sete na escala de MDA (Mini Dependence Assessment). Ainda são abrangidos os utentes que, com valores inferiores a sete na mesma escala, apresentem dificuldade ou incapacidade na actividade locomotora, considerando-se, igualmente, incluída no programa toda a pessoa com “valor superior a 2 ou somente a actividade locomotora limitada ao domicílio”(Dias et al, 2006).

De acordo com dados do Programa de Cuidados Continuados, 84% dos doentes atendidos tem idade acima dos 65 anos, ainda que encontremos crianças e adolescentes.

Os utentes podem ser referenciados ao Programa por profissionais de saúde, IPSS, familiares ou vizinhos, directamente junto da equipa ou via telefone. Sempre que possível, a visita ocorre no dia da referenciação. A equipa prestadora de cuidados avalia o caso, presta os cuidados necessários ao utente e integra-o no Programa, agendando, seguidamente, a visita seguinte em função da avaliação da condição de saúde. Esta visita pode ser realizada juntamente com outros profissionais (médico, fisioterapeuta, assistente social). Nas situações em que a pessoa necessite de apoio domiciliário para as Actividades de Vida Diária, a equipa pode solicitar os Serviços de Apoio Domiciliário das Instituições de Solidariedade Social (Dias, et al., 2006).

Os cuidadores informais são maioritariamente do sexo feminino, cuidadores dos ascendentes e do cônjuge. Começa a ser frequente (tendo sido encontrado neste contexto) o género masculino surgir como cuidador principal: homens a cuidarem da esposa, dos ascendentes e de filhos (neste último caso em parceria com a esposa). Muitos são idosos, seja a pessoa cuidada o cônjuge ou o ascendente. Em muitas das situações, os cuidadores necessitam, também eles, de cuidados de saúde frequentes, ainda que não apresentem dependência.

Ao longo do segundo capítulo serão salientadas algumas condições que se traduzem em circunstâncias específicas para o desenvolvimento de estratégias apropriadas. Particularizando, encontrei esposas muito cansadas em nítida situação de sofrimento, dado o tempo de

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permanência na situação de cuidadora. Estas demonstravam, na expressão facial, no tom de voz e, sobretudo, no olhar, o tempo e a dificuldade que sentiam pela sua situação, além da resignação perante um papel para o que o PCCD se constituía alívio, ainda que a necessidade de apoio fosse, manifestamente, maior.

Durante os dois anos em que o trabalho de campo decorreu, a única forma de minorar o cansaço dos cuidadores era o internamento hospitalar da pessoa, de uma forma geral recusado pelos cuidadores, ainda que, em algumas situações pontuais, as enfermeiras apresentassem a hipótese como uma solução temporária. Com a entrada do PCCD na RNCCI e a construção, no concelho, de uma unidade de internamento também destinada a cuidados continuados, estas situações tenderão a ser apoiadas, uma vez que tornam possíveis os internamentos temporários, permitindo assim aos cuidadores retomar forças.

As enfermeiras do programa são maioritariamente do sexo feminino, mas como na equipa há apenas um enfermeiro do género masculino, optei por utilizar o género feminino nas alusões a estes profissionais. Do total das catorze enfermeiras, treze são licenciadas e oito realizaram ou estão em processo de pós-licenciatura. Apenas uma das enfermeiras tem mais de 40 anos.

Algumas acumulam o serviço no PCCD com o exercício de funções num hospital próximo ou em outras instituições de saúde. Todas (com excepção de duas recém-formadas) tiveram experiência hospitalar que trazem para a prática de cuidados, estabelecendo uma forma de agir e de perspectivar as pessoas cuidadas, bem como os cuidados e a enfermagem que reflectem no terreno e incutem nas recém-formadas. Todas tiveram experiências em unidades ditas altamente diferenciadas como os cuidados intensivos e as urgências, e são unânimes em referir que essa experiência é uma mais-valia na sua prática profissional, por facilitar uma maior destreza intelectual na prática diária dos cuidados.

A equipa mostra interesse pela realização de formação contínua, sob a forma de formação académica ou através da participação em acções formativas. A formação posterior engloba cursos de especialização (Enfermagem de Reabilitação, Comunitária e de Saúde Mental), Cursos de Pós-Graduação e Cursos de Mestrado, nomeadamente em Gerontologia e em Cuidados Paliativos. Ainda referiram encontrar na Direcção do Centro o estímulo necessário à formação contínua, talvez como forma de compensar o “tempo de prevenção” gratuito.

Neste programa a enfermeira conhece a situação de saúde da pessoa, identifica as suas necessidades e os recursos, colocando-os ao dispor da pessoa cuidada/família. Como elemento

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primordial da equipa prestadora, a enfermeira desempenha o papel de pivot da equipa, sendo mencionada por todos como aquela que melhor conhece o utente dos cuidados, até porque:

(…) Temos a capacidade de comunicar com a maioria das pessoas… pelo tempo que passamos junto do utente(…), pelas competências relacionais que desenvolvemos somos capazes de apreender o todo… conseguimos observar o utente numa vertente mais abrangente do que os outros profissionais de saúde e pedir ajuda, ou solicitar a intervenção de outros que vão completar o nosso cuidado. (…) a nossa profissão tem essa capacidade: avaliar um conjunto de necessidades, responder a parte delas (…) Pela presença mais constante conseguimos perceber a diferença (…) pela proximidade (…). [FG1]

Quanto às intervenções, são de carácter técnico-científico (pensos e administração de terapêutica invasiva), sob prescrição clínica, ainda que os cuidados a feridas se situem na sua esfera de responsabilidade. Compete igualmente à enfermeira avaliar a adequação dos cuidados de manutenção da vida prestados pelos cuidadores informais ou por outros profissionais, como as ajudantes de família. Se, durante a prestação dos cuidados de higiene, as ajudantes identificarem alguma alteração da coloração da pele e mucosas, contactam a enfermeira, pois sabem que não devem realizar qualquer intervenção sem este procedimento prévio.

A enfermeira decide a manutenção da pessoa no programa, ocasionando situações dúbias, especialmente com os médicos de família, que indicam a necessidade de cuidados domiciliários baseados em pressupostos anteriores (por exemplo, a dificuldade no acesso ao centro de saúde), o que obriga a enfermeira a explicar à família os motivos de não serem integrados no programa apesar da indicação do clínico. Também a decisão sobre a periodicidade das visitas a realizar é da responsabilidade da enfermeira, ainda que esta decisão possa ser discutida em equipa de pares.

Nas reuniões de equipa pluridisciplinar e nas deslocações em conjunto com outro profissional, a enfermeira assume a liderança da visita, apresenta a pessoa, as suas necessidades em matéria de cuidados e qual o objectivo da solicitação do apoio.

É a enfermeira que identifica, portanto, as necessidades de intervenção de outros profissionais. A identificação pode colidir com a disponibilidade do profissional, conduzindo a algumas situações de conflito ou à tomada de medidas no limiar da transgressão, que serão sujeitas a discussão posterior. Este reconhecimento da necessidade de intervenção de outros profissionais é, usualmente, acatado, ainda que, em equipa, possa ser objecto de discussão, nomeadamente sobre a opção pelo profissional mais adequado.

Claro que aceitamos (a referenciação profissional da enfermeira), é a ela que compete, se fosse outro profissional também aceitaríamos mas acho que as enfermeiras conseguem melhor ver as diferentes áreas, eu da área delas pouco fazia mas ela percebem o que referenciar para mim e confio. [FG2]

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Em suma, compete à enfermeira identificar as necessidades de saúde da pessoa e os recursos e sistemas de suporte disponíveis no sistema de saúde e na comunidade; estimular e manter o envolvimento do cliente/família no cuidado, a mediação e o envolvimento no processo de coordenação, o acompanhamento e a avaliação do processo de cuidados implementado.

1.2 0 DOMICÍLIO COMO O ESPAÇO DE OCORRÊNCIA DOS CUIDADOS

Os cuidados acontecem no lar, e acarretam, por conseguinte, contornos peculiares na relação. O domicílio como espaço de relação entre a enfermeira e a pessoa/família, implica formas de agir e de interagir que serão determinantes para as estratégias adoptadas pelos intervenientes no processo de cuidados. Por outro lado, a casa constitui um local isolado para os prestadores e para as pessoas cuidadas, com a consequente dificuldade na gestão dos cuidados, pelo que o domicílio como lugar insulado envolve o isolamento do trabalho da enfermeira e da pessoa/família.

A habitação é considerada a solução mais aprazível para a permanência da pessoa. A proximidade da vida diária e objectos familiares ocasiona conforto e comportamentos propícios ao desenvolvimento favorável do processo de transição da pessoa e da família.

Assim, o domicílio é, para a enfermeira, a família e a pessoa, um espaço gerador de tensão e de múltiplas escolhas, de necessidade de prevenir a entropia familiar e de não hospitalizar a casa apesar das intervenções tecnológicas, e, por fim, um espaço com condições de trabalho penosas, sendo, por isso, reconhecido o domicílio como um espaço de conflito. Da constatação da dificuldade em definir, com precisão, o espaço onde os cuidados ocorrem (e o seu tempo de duração), surge a incerteza do local, do tempo e do foco dos cuidados como condição contextual.

Cada uma destas categorias será desenvolvida e objecto de discussão enquanto condições contextuais do domicílio.