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1. MANTER A CONTINUIDADE DOS CUIDADOS NO DOMICÍLIO : UM DESAFIO

1.1 O Programa: ambiente e Caracterização Geral

1.2.2 O domicílio como lugar insulado

Ao longo da colheita de informação instalou-se a sensação de isolamento da casa, da pessoa/família e da enfermeira. Por um lado, o isolamento da pessoa e da família relaciona-se com o desconhecimento sobre como lidar com situações agudas da doença ou as manifestações da mesma (o que faço se volta a ferir-se?). Na casa não há um profissional de saúde a quem recorrer para lidar com os sintomas, sendo circunstâncias frequentes em condições de doenças crónico- degenerativas ou em doentes em cuidados paliativos. Também para a enfermeira a casa é um local de trabalho isolado: da equipa de saúde, do recurso a um conselho ou apoio na decisão, e, geograficamente, já que muitas delas estão situadas em locais isolados de outras habitações. Em consequência, foi identificada a condição contextual do domicílio como lugar insulado.

A opção pelo termo insulamento, e não isolamento, resulta da imagem que se pretende transmitir – de acordo com o Dicionário Houaiss, insulado tem a sua raiz etimológica em ínsula (ilha) – é “isolada” por condições exógenas, que advêm do seu posicionamento geográfico. É possível, com a implementação de estratégias, colmatar esse “afastamento” e ultrapassar as dificuldades inerentes. O isolamento tem um carácter impositivo, obedece a uma situação e a um

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objectivo: indicia espaço ermo, ausência de capacidade de reprodução e falta de contacto com os restantes elementos da equipa.

Assim, o insulamento também é de informação. Uma das queixas verbalizadas pelas enfermeiras e pelo médico é justamente a ausência de informação sobre o utente, que dificulta a identificação atempada das necessidades de cuidados e a continuidade dos mesmos, com sequelas na condição de saúde da pessoa e a manifesta quebra da confiança nos profissionais de saúde. Foram múltiplas as situações em que os utentes foram referenciados após alguns dias sem cuidados de saúde, ou que regressaram a casa com informação escassa ou inexistente. Verificaram-se igualmente situações de alta hospitalar de utentes previamente inscritos no PCCD sem contacto com a equipa. Nestas, a informação era dada por um familiar ou vizinha.

É a primeira visita (…) no quarto ao fundo do corredor, um homem está deitado numa cama revolta… tem fixadores na região trocantérica. A enfermeira cumprimenta com afabilidade, apresenta-se, apresenta-me. Explica o objectivo do programa de CCD, pede autorização para fazer perguntas e para ver os papéis que trouxe do hospital. “Então e do hospital XX não mandaram nada para nós?” Espanta-se, mostra-me a única informação (…): uma carta referindo a intervenção cirúrgica a que foi submetido e o pedido de devolução dos fixadores quando forem removidos (sic). Não há menção ao decurso do internamento. “… e onde é que vai tirar os fixadores?” A custo, o utente tenta lembrar datas, tempo, o que aconteceu, foi um acidente, foi operado e esteve três semanas no hospital. “Quando lá for à seguradora, eles que escrevam MESMO uma cartinha que é para nós sabermos (…)” No decurso da entrevista, o utente refere dificuldade na eliminação intestinal “lá no hospital davam um líquido, mas agora…” A enfermeira toma notas rápidas, identifica os medicamentos na mesa-de-cabeceira: “e este? Ah tem a tensão alta? E não toma nada para o estômago? Como é que toma este? e quem lhe dá as injecções? Dá a si mesmo? Foi lá no hospital que ensinaram? Muito bem”. Toda a informação agora disponível no processo do utente é obtida através do próprio. [OP]

O insulamento faz com que as enfermeiras temam pela continuidade do programa, sendo uma apreensão partilhada por outros profissionais. Algumas referiram o receio de ver o programa terminado, salientando que o enfoque da política de saúde se direcciona para a criação de instituições de internamento, esquecendo a importância dos cuidados domiciliários e a vontade de as pessoas permanecerem nas suas casas. Esta preocupação leva à percepção de que o programa deve ser objecto de maior divulgação junto da população do concelho:

… as famílias sabem de nós, o que fazemos, há um trabalho feito que os leva a compreender… e se houver um trabalho de qualidade, as pessoas entendem a necessidade… se não tivermos qualidade, se a nossa presença não for sentida como necessária vamos ter problemas… [OPS]

É de salientar que este temor me foi, igualmente, transmitido por alguns cuidadores que constataram a quase inexistência de programas semelhantes no país.

Não há disto em C.? Vamos lá a ver se um dia não se lembram também de nos tirar. Tudo o que é bom eles levam e sem pensar no povo, nos humildes. Depois, não sei, voltamos ao mesmo! Se não tivesse as enfermeiras a virem, como é que cuidava da minha mãe? [M55F]

O insulamento do domicílio como espaço de cuidados também é notório na forma como o trabalho das enfermeiras é organizado. A enfermeira desloca-se sozinha a casa dos utentes

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(exceptuando em duas das extensões em que a deslocação é acompanhada, nos casos mais complexos, por uma auxiliar de acção médica). Esta forma de trabalhar, como veremos, vai destinar uma forma de fazer e de ser, característica deste contexto.

O isolamento do domicílio e a sua localização também podem ocasionar riscos para as enfermeiras, pela deslocação a habitações sitas em locais ermos, o que as levava a dizer, com algum humor sarcástico: quem nos encontraria nestas paragens se nos acontecesse alguma coisa? Assisti a situações em que as enfermeiras eram ameaçadas pelos sempre presentes cães da casa, pelo que fui confrontada com a necessidade de realizar um trajecto sinuoso para contornar o espaço de manobra disponibilizado pela corrente de um cão, entre outras situações semelhantes.

Havendo apenas uma carrinha para o programa para cada extensão (com excepção de uma que não dispõe de nenhum transporte), a enfermeira utiliza o seu carro nas deslocações. Em alguns casos, as enfermeiras conduzem até casas isoladas entre pinhais e com acessos muito difíceis, alguns abertos recentemente, apenas permitindo a passagem cuidadosa do automóvel, o que as levava a expressões como ai o meu carrinho; eram ainda deslocações a habitações com condições de higiene deploráveis, com acessos entre poças enlameadas e esgotos a “céu aberto”, e localizadas em alguns núcleos populacionais mais escusos, ainda que, aparentemente, o concelho não apresente situações sociais de risco.

A enfermeira percorre vários quilómetros de deslocação em deslocação, implicando, portanto, uma gestão cuidadosa do tempo da sua parte e da ordem de atendimento dos utentes. A necessidade de atender várias pessoas num espaço limitado de tempo provocava, em algumas das viagens que acompanhei, a condução no limiar da transgressão, por vezes ultrapassando os limites da lei e constituindo a deslocação um factor de risco.

Muitas vezes, a pessoa cuidada vive em solidão, apenas com a visita das ajudantes de família, com raras visitas de algum familiar ou alguma visita esporádica de uma vizinha isto porque, habitando com familiares, a actividade profissional destes causa a sua solidão diurna, colmatada por vezes, com ajudantes de família. A constatação destas condições gera, obviamente, preocupação nas enfermeiras, sendo usualmente discutidas em equipa, levando, posteriormente, a tomadas de decisão peculiares.

O insulamento acompanha, assim, a evolução da sociedade ocidental para a solidão do indivíduo, principalmente a dos idosos, que tendem a percepcionar o PCCD como o contacto com o mundo em redor. Foram diversas as deslocações em que, perante a proposta de alta do programa, as pessoas suplicavam não nos deixem, uma expressão característica de quem habita

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sozinho, enquanto pessoa ou casal que não tem mais recursos sociais, e que integra as enfermeiras na sua rede de pessoas de referência, considerando-as a família ou os amigos de que não dispõem.