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1. MANTER A CONTINUIDADE DOS CUIDADOS NO DOMICÍLIO : UM DESAFIO

1.1 O Programa: ambiente e Caracterização Geral

1.2.4 O domicílio espaço de conflito

Ao tornar-se o novo local de cuidados, o domicílio tem duas vertentes: por um lado, é o espaço da pessoa e o seu mundo securizante; por outro corre-se o risco de deixar que o hospital e a doença invadam o espaço privado, com o consequente risco de descaracterização e de repercussão negativa no bem-estar da pessoa/família. É essencial adaptar o domicílio a um espaço de cuidados, integrando-o no processo cuidativo com as necessárias alterações da área e mesmo de alguns dos hábitos de vida diária, e, por outro lado, fugir à tentação de medicalizar o espaço privado, mantendo a rotina, afastando o pendor da doença (manifestado pelos equipamentos), além de trazer alegria para a casa, admitindo que a doença se enquadre no contínuo saúde/saúde. São estes os desafios a serem ultrapassados pela pessoa/família e pela enfermeira.

Há conflitos que resultam do fazer do lar o espaço de cuidados e de ter a preocupação em apoiar a família na manutenção do hospital fora da casa, da enfermeira ser a visitante polida e,

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concomitantemente, a profissional que conhece a habitação e se move nela com familiaridade, e ainda desta ter de respeitar a fronteira da privacidade da pessoa/família), a vontade da pessoa e, ao mesmo tempo, ter de capacitar a família, responsabilizando-a pelo cuidado.

A casa implica gestão de poder: do profissional e da pessoa/família (autores do seu processo de saúde que se desenvolve no seu espaço). Algumas situações comuns de aparente conflito acontecem entre os cuidadores e a enfermeira. O tempo de contacto é um factor de aprendizagem, para os cuidadores e, principalmente, para a mulher-cuidadora. Com frequência, esta demonstra o que assimilou e transformou em práticas de cuidados, filtradas pela sua própria artesania e perspectiva do que considera serem bons cuidados. A pessoa cuidada refere, igualmente, esta aprendizagem: ela (a esposa) ralha comigo como se fosse uma das enfermeiras.

Se este é um objectivo acarinhado pela equipa de enfermagem, por outro lado, o controlo que o cuidador quer manter sobre o familiar pode traduzir-se em discrepâncias entre o que a enfermeira considera ser uma intervenção adequada e a ideia do cuidador, obrigando a profissional a encontrar forma de contornar a situação, respeitando a pessoa:

É melhor dar a água pela seringa, assim devagar ele vai bebendo (enfermeira CM). Mas ele engasga-se mais, eu dou com o copo que ele gosta mais e assim não me molha tudo a tossir (esposa cuidadora). Dona M mas ele está a beber pouca água, a senhora tem que insistir e olhe como ele com a seringa está a conseguir beber! (enfermeira CM). O utente tosse e é com evidente tom triunfante que a esposa imediatamente diz: tá a ver?? A senhora enfermeira não vê que ele tosse a agua quando dá com a seringa? … Tem colocado o XX (espessante)? (Enfermeira CM) Não que ele não gosta! …

A enfermeira enumera as dificuldades da cuidadora e como é incansável junto do marido. Chama a atenção para umas braçadeiras almofadadas, utilizadas para imobilizar os membros: Foi a Dona M que fez! Espantoso, não é verdade? A cuidadora reflecte o orgulho que sente pelo seu desempenho. Quando lhe pergunto, responde, de imediato querer ter o marido em casa: veio tão magrinho, só pelinhas e olhe, pergunte ali à senhora enfermeira se ele não está mais gordinho!... [OP]

Outras formas de conflito envolvem a mediação entre os elementos da família, numa situação que pode assumir contornos diversos: a enfermeira é chamada a intervir como mediadora: senhora enfermeira o que faço? é uma frase recorrente neste contexto ou o pedido: fale com ele/ela, a si ouve, a mim não. Basta a senhora enfermeira dizer e parece que falou Deus! A enfermeira, por vezes, convoca reuniões familiares no sentido de, no seio da família, se encontrar a melhor solução, ainda que faça sempre questão de clarificar para a pessoa/família que: a última decisão é vossa, nós apenas estamos aqui para apoiar e aceitar.

Acabamos a encontrar-nos no meio deles e somos chamadas a arbitrar conflitos… conta-me uma situação em que uma nora queria os sogros no lar… falou-se com uma assistente social aqui da zona, entretanto conseguiu- se apoio de higiene, pediu-se uma reunião conjunta com os filhos, a nora, a assistente social, mas acabou por não ser necessário… por vezes só o facto de se pensar e convocar acaba por resolver… [ACEN]

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Nesta conjuntura, a enfermeira reconhece a sua limitação, o que faz com que a situação se torne particularmente tensa, implicando, amiúde, a equipa na discussão e na tomada de decisão.

Igualmente surgem situações que a enfermeira percebe como complexas, com suspeita de maus-tratos ou de abandono, ou com queixas dos utentes e dos cuidadores. A enfermeira pesquisa, então, uma forma de intervenção que salvaguarde o bem-estar da pessoa cuidada sem que o familiar enjeite o seu papel como cuidador. Procura ainda apoio para a sua decisão junto da equipa, particularmente nas assistentes sociais de instituições de idosos (para encontrar um espaço para um utente sem condições de permanecer no seu domicílio). Procura também formas de tornear os princípios do PCCD quando é o bem-estar da pessoa que está em causa assim, ensaia pretextos para manter a pessoa no programa, em oposição aos princípios norteadores, mas considerando, todavia, a indispensabilidade de conciliar as necessidades identificadas com aqueles princípios:

Vou fazer assim: quando for trabalhar, logo de manhã, como passo aqui eu dou-lhe a injecção. Levo o material comigo e depois passo. [ACEN]. (Referencia a uma idosa a viver sozinha, sem condições de se deslocar ao Centro de saúde, por fragilidade mas que não reunia os critérios para admissão. Necessita de uma injecção intramuscular, diária, devido a um herpes zoster. A enfermeira decide passar em casa da utente, imediatamente antes do inicio do seu trabalho no Centro de Saúde e administrar o injectável).

Estas áreas de conflito envolvem questões legais e éticas que motivam a opção de decisão da enfermeira para intervir ou não, recorrendo ao arbítrio individual, por vezes, no limiar da fronteira da transgressão, assim como a opção pelos princípios da beneficência e da não- maleficência, (escolhas essas relacionadas com a manutenção da pessoa em casa, e o apoio à decisão desta e/ou da família). Ainda em relação às áreas de conflito, é implicada a adopção de estratégias limítrofes do papel da enfermeira (dentro ou fora da sua esfera académica e legislativa, que são nomeadas áreas invisíveis do papel, ainda assim, fundamentais para a prossecução do cuidado.

O espaço domiciliário também é um desafio pessoal para a enfermeira: reconhecido como gerador de dificuldades e de conflitos, converte-se num estímulo para a aquisição e a consolidação de perícias cognitivas e tecnológicas capazes de a apoiar na sua prática. Todo o grupo é unânime em considerar o trabalho realizado como um teste constante aos conhecimentos, pelo que verbalizam a necessidade de se manterem informadas na área disciplinar da enfermagem e em áreas subsidiárias como a psicologia, a patologia e a farmacologia.

O conflito também advém das condições de trabalho. No decorrer deste, as enfermeiras debatem-se com falta de colaboração a vários níveis, o que gera situações de angústia e

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ansiedade. Esta dificuldade ou ausência de colaboração é sentida em três áreas: a profissional, a institucional e a familiar. Em qualquer uma delas foram visíveis a demonstração e a verbalização de sentimentos de angústia, e de impotência para contornar a dificuldade.

1. A falta de colaboração de outros profissionais pode estar relacionada com a ausência de atribuição de significado à filosofia do programa, principalmente a dos médicos de família, em situações em que há necessidade de alterar a medicação, de realizar uma visita em conjunto ou de decidir sobre o encaminhamento a dar em face da situação da pessoa (eu acho que deviam internar a senhora! Esta filha não está preparada para ver a mãe morrer-lhe nos braços). A dificuldade em encontrar rapidamente apoio e decisão levam a enfermeira a procurar alternativas de auxílio, como o recurso ao clínico do programa, ultrapassando, deste modo, o médico de família (uma medida reprovável na perspectiva deste), ou a adopção de estratégias para lidar com a situação: a exigência de uma visita conjunta ou outras formas de coação menos académicas (não saio do gabinete sem ele se comprometer a fazer a visita comigo). Outro aspecto é a dificuldade na gestão do tempo de cuidados para todos os envolvidos. Para isso contribui a inexistência de profissionais exclusivamente dedicados ao PCCD (o médico do programa ou a psicóloga), dificultando, assim, a intervenção em tempo útil.

2. A falta de colaboração das instituições provém da ausência de resposta institucional. Cuidados Continuados é um trabalho que envolve parcerias eficazes com instituições que se movem nas áreas da saúde e da acção social, sendo do fluir constante de informação e inter-ajuda que resulta a prestação oportuna dos cuidados, com ganhos em saúde para os clientes e níveis elevados de satisfação para os profissionais. No espaço domiciliário, ainda que exista trabalho de parceria com várias instituições, com diversos níveis de eficácia interventora, verifica-se uma ausência de colaboração entre instituições fundamentais para a prossecução dos objectivos de um programa deste teor, como o hospital central. Estas dificuldades traduzem-se em sofrimento para as enfermeiras, devido à falta de colaboração e das repercussões no utente, e passam pela ausência de informação sobre o utente (da instituição onde o mesmo esteve internado), pela falta de comunicação sobre a alta e em encontrar internamento temporário ou permanente, (nomeadamente em lares de idosos,).

3. A família pode constituir um factor de mal-estar para a enfermeira ao não desejar colaborar no processo de cuidados. Ainda que referidas como colaborantes, há situações em que, por factores não identificados, a colaboração não acontece: a pessoa dependente é conduzida ao hospital sem que a equipa seja informada ou há recusa em manter a ligação ao programa. Ainda

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que esporádicas, estas situações conduzem à revisão das estratégias, a um pedido de intervenção de outros profissionais (o médico do programa) e, em situação extrema, à alta:

ACEN: Acha mesmo que não se consegue fazer nada?

OPS: não vejo mais o quê… isto é para as pessoas que querem colaborar e temos que aceitar que há casos em que não dá. É a única possibilidade quando não querem, não querem mesmo e só temos que respeitar [OP]

Outro factor de conflito advém da localização dos cuidados. Cuidar no domicílio acarreta o estabelecimento de vínculos entre o doente, a família e os profissionais. Implica ligação, e a pessoa torna-se significativa para o profissional. Entrar na casa é penetrar no íntimo da pessoa, encontrá- la desnuda, o que se traduz numa relação particular, com a partilha de vivências, experiências e emoções que estruturam a relação de cuidados e conduzem a uma relação de afectividade que pode ultrapassar os limites da relação profissional. Mesmo que tal não ocorra, a exposição mútua causa a criação de laços que, quando acontece o agravamento e a morte, geram situações de sofrimento intenso no profissional.

Além disso, a família pode, por si só, ser geradora de sofrimento adicional pela pressão que exerce devido à sua própria ansiedade, conduzindo a sentimentos de ambivalência causadores de angústia acrescida na enfermeira: o decidir implementar, ou não, tecnologias invasivas na pessoa. Os utentes com necessidades de cuidados paliativos constituem um exemplo característico destas intervenções, como a aspiração de secreções, iniciar uma perfusão de soro porque deixaram de comer, ao mesmo tempo que a enfermeira é confrontada com a dificuldade de explicar à família que a situação não está a causar dor ou aflição ao doente, que é mesmo assim. Desta forma, reconhecem que a intervenção vai traumatizar o doente para que aquela família sinta que se está a fazer alguma coisa.

O cuidador pode vir a ser, ainda, fonte de preocupação, pela sua situação de doença ou debilidade, obrigando a que cada caso seja avaliado de forma exaustiva, com recurso a outros profissionais, procurando soluções locais ou outros, em função do diagnóstico da situação.

Assim, as condições de trabalho são, por vezes, identificadas como penosas para as enfermeiras. A pessoa é cuidada no seu ambiente e a enfermeira utiliza os recursos disponíveis, adoptando posturas diversas e geradoras de sofrimento físico. É comum ver a enfermeira a realizar um penso de joelhos, de cócoras ou em posição de Sims (estas condições tornam-se penosas principalmente para as mais altas, pela dificuldade em encontrar uma posição confortável).

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O meio social das pessoas cuidadas e o local de habitação é variado, pelo que é comum encontrar condições árduas de falta de higiene ou com condições de periculosidade acrescida pela constante presença dos cães (desde o cão de regaço até aos rafeiros que a custo ainda ladram ou a enormes Grand Danois que os familiares se esquecem de prender). O facto de terem ocorrido situações de ataque a profissionais da equipa, leva à recusa, por parte das enfermeiras, em entrar em casas nas quais os animais não estejam devidamente presos.