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O domicílio: um desafio para os cuidados

1. MANTER A CONTINUIDADE DOS CUIDADOS NO DOMICÍLIO : UM DESAFIO

1.3 O domicílio: um desafio para os cuidados

Cuidar no domicílio apresenta particularidades destacadas na Revisão Sistemática da Literatura (Anexo 1) enquanto fenómeno desde sempre presente nas práticas de cuidados dos enfermeiros, ainda que objecto de poucos trabalhos de investigação (Cabin, 2008). A inclusão da necessidade de manter a continuidade dos cuidados determina características adicionais.

O domicílio é o local onde acontece a relação entre a enfermeira e a pessoa/família, conferindo, por isso, contornos singulares à interacção. Local insulado de cuidados, a casa mantém-se como espaço preferencial e idealizado para os cuidados de saúde, na perspectiva de utentes e profissionais, ainda que, por vezes, seja um espaço de conflitos. Envolve ainda tomada de decisão e intervenção distintas, sendo também caracterizado pela incerteza do espaço, do tempo e do foco de cuidados.

Esta mudança na valorização da casa de cada um como o espaço desejável para os cuidados de saúde não foi acompanhada pela implementação, no terreno, de medidas que permitissem esta deslocalização dos cuidados. A legislação que aprova o estabelecimento da RNCCI data de 2006 com a perspectiva de, até 2016, o país se encontrar coberto pela acção daquela rede. Esta acção envolve a criação de programas de cuidados domiciliários provenientes dos centros de saúde. O panorama nacional não apresenta o desenvolvimento previsto, e da análise do mapa da Figura 4 de distribuição da implementação dos serviços que integram a Rede

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Nacional de Cuidados Continuados, é notória a quase inexistência de programas de cuidados continuados domiciliários.

FIGURA 4: DISTRIBUIÇÃO DOS SERVIÇOS DA RNCCI (FONTE RNCCI, MS, 2009)

O espaço domiciliário apresentado como o local ideal de cuidados está presente em vários documentos de saúde. De acordo com Nogueira (2009):12 oitenta por cento da população portuguesa preferia receber cuidados em casa, se estiver dependente, o que nos mostra que o desenvolvimento de respostas no domicílio, para além de condizer com estratégias internacionais, é o que corresponde às preferências dos portugueses.

No Projecto de Relatório Conjunto sobre Protecção Social e Inclusão Social, o Comité da Protecção Social da UE refere a premência do desenvolvimento dos cuidados domiciliários como garantia da equidade no acesso aos serviços de saúde: “Há consenso quanto à necessidade de dar prioridade aos serviços de cuidados no domicílio (…) para que as pessoas possam continuar a viver no domicílio o máximo de tempo possível” Conselho da União Europeia (2007):8.

O cuidado de doentes com variados níveis de dependência é reconhecido como fragmentado, dispendioso e baseado no contexto hospitalar, por conseguinte, o movimento que permite aos utentes serem cuidados de forma mais adequada, e próxima, do que desejam é referido na literatura como desejável. Os cuidados continuados domiciliários surgem como um contexto que permite este apoio, sendo apresentados como local ideal de cuidados e, ao mesmo tempo, um local potencial gerador de diversas formas de conflito (Brazil et al, 2005; Eddy et al, 2005; Mapanga & Mapanga, 2004; Muir-Cochrane, 2000; Kane, 1999).

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As referências apontam a particularidade do contexto domiciliário e as implicações deste no desenvolvimento da arte de pensar de forma criativa, de “aceitar sem julgar, uma vez que nem sempre se trabalha com pessoas fáceis mais aqui é a casa deles” Eddy et al (2005):14. Em particular, Muir-Cochrane (2000) considera que a visita domiciliária implica, da enfermeira e do cliente, a adopção, do papel de convidado e do papel de dono da casa, respectivamente, em que o controlo da situação de cuidados é exercido em circunstâncias específicas pelo utente.

Objecto de referência é, igualmente, a especificidade da relação que é estabelecida em face do contexto, sendo este objecto considerado propício ao desenvolvimento de relações terapêuticas, dada a durabilidade da relação e a necessidade de suporte social dos utentes a exemplo dos achados de vários autores (DePalma, 2006; Vivian & Wilcox, 2000; Pesznecker et al, 1990). No contexto em estudo, este achado é, também, encontrado.

Tradicionalmente, os objectivos dos cuidados domiciliários são a diminuição da dependência das instituições hospitalares e os internamentos frequentes. É de salientar a importância de programas que visam assegurar a continuidade dos cuidados, manifestamente diferenciados dos programas de visitação domiciliária com ênfase em intervenções curativas. A continuidade dos cuidados é assegurada desde a instituição de origem do utente, através da sinergia de esforços e paralelismo da informação a fornecer à pessoa, família e profissionais. Quando ocorrem interrupções no processo de transmissão da informação, a continuidade dos cuidados é colocada em risco. A ausência de troca de informação agrava ainda mais o isolamento decorrente da localização dos cuidados fora do espaço institucional, assim como no campo em estudo. A preocupação com a circulação da informação é manifestada por alguns autores (Silva- Smith, 2007; Case & Seigal, 1996) que a consideram de uma importância fundamental, especialmente por assegurar uma transição tranquila entre a instituição e o domicílio, para a pessoa e cuidadores. De facto, no programa estudado, uma das queixas verbalizadas e geradoras de conflito para a enfermeira é a ausência de transmissão de informação institucional, originando as situações de solução da continuidade referidas.

Igualmente importante neste contexto é a constatação da necessidade de incluir nas práticas de cuidados as concepções de saúde e doença da pessoa/família. De acordo com DiCicco- Bloom & Cohen (2003):26, “os enfermeiros constituem o maior grupo populacional que pode prestar cuidados culturalmente competentes a grandes grupos populacionais”. Em cuidados domiciliários, a enfermeira desenvolve a sua prática em locais de grande diversidade de formas de viver dos utentes, constituindo-se “as guardiãs e organizadoras dos cuidados de saúde”ibd:26. Ao

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trazer os cuidados para a casa, são confrontadas com o desafio e a oportunidade de prestar cuidados culturalmente competentes, tendo em conta que os resultados pretendidos não serão assegurados se se quebrar a comunicação, podendo ocorrer, daí, interrupções do processo de construção da continuidade dos cuidados.

Assim, o domicílio é também um espaço gerador de dificuldades e de bem-estar para a enfermeira e para os utentes, do qual surgem manifestações de sensações com o programa e com os cuidados: a satisfação, o sentir-se bem, a felicidade, a infelicidade, o mal-estar, a realização pessoal, entre outras (Duarte & Costa, 2009), próximas do conceito de bem-estar subjectivo que, em Galinha & Ribeiro (2005) integra uma dimensão cognitiva e uma dimensão afectiva relacionando satisfação e felicidade.

Duarte & Costa, 2009 identificaram causas de bem-estar para a pessoa e família: Manter o Controlo, Sensação de Auto-eficácia e de Auto-estima da pessoa/família, Proximidade e Manutenção da Esperança Realista, Suporte Social proporcionado pela enfermeira e Securização (Anexo 2). Para as enfermeiras, e ainda de acordo com as mesmas autoras, a sensação de bem- estar oriundo da especificidade do contexto assenta na Reciprocidade da Relação, no Compromisso Social, na Relação com a equipa pluridisciplinar, no Aceitar um Desafio e no Reconhecimento/gratidão do contributo dos enfermeiros por parte da família.

Na globalidade, as características do contexto formam um conjunto de condições desafiantes, para as quais a enfermeira procura estratégias de acção/interacção. Neste capítulo foram identificadas as primeiras. No próximo serão descritas as estratégias implementadas pelas enfermeiras.