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A família recurso e alvo dos cuidados

3. C ONSEQUÊNCIA : TORNAR SE PARCEIRA DA FAMÍLIA

3.3 Incluir a família na equipa de saúde

3.3.2 A família recurso e alvo dos cuidados

A equipa considera a família o elemento indispensável para a manutenção do PCCD. O excerto da entrevista da enfermeira CM é elucidativo da importância atribuída à família, no sentido de assegurar a continuidade dos cuidados iniciados pela enfermeira e na valorização dos mesmos:

Grande parte do nosso trabalho é feito através deles, através e com eles e muitas vezes eu digo: vocês estão aqui 24 horas, eu venho cá um bocadinho, se não fizerem a vossa parte, o meu trabalho não valoriza, o trabalho é todo vosso.

Estimular o envolvimento do familiar, orientar para a independência, responsabilizar o familiar cuidador e dotá-lo de ferramentas para manter os cuidados ao longo do dia são tácticas utilizadas pelos enfermeiros, no sentido da continuidade dos cuidados. São frequentes as menções, no decorrer dos cuidados, ao papel preponderante do cuidador e o repisar de que é este que assegura a continuidade dos cuidados, numa clara menção ao significado comum do trabalho desenvolvido, a parceria enfermeiro/família, particularmente no discurso pautado pela primeira pessoa do plural nós temos que… e vamos conseguir… e na constante utilização de não lhe parece? Ou O que acha?.

O reconhecimento do papel da família no sucesso do Programa destina a forma como a mesma é abordada, o respeito pela sua dinâmica, ao reconhecer que são os cuidados mantidos ao longo das 24 horas que permitem que o utente se mantenha no seu domicílio, que diminuam os reinternamentos e a que a qualidade de vida da pessoa denote melhorias apreciáveis, principalmente na aquisição da independência. Frases como o papel principal é da família, nós devemos auxiliar a manter a independência, servir de apoio, de conselheiro, quando necessário são comuns, assim como o reforço de que A senhora é que vai ter que manter o seu marido a fazer o que puder, porque quem melhor que vocês para conhecerem o doente? Vocês sabem melhor que nós.

O cuidado familiar determina o estímulo à independência da família. Foi verbalizada a preocupação de não serem realizadas deslocações desnecessárias, devendo o enfermeiro auxiliar manter a independência, apoiando e aconselhando. Como deslocações desnecessárias são entendidas aquelas em que a enfermeira visita a família para proceder à avaliação de constantes vitais ou para a realização de intervenções que podem ser asseguradas pela família, após formação e avaliação da enfermeira: avaliação e registo da glicemia capilar e administração de terapêutica subcutânea ou penso em pequenas lesões. A enfermeira procura planear as

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deslocações de forma a assegurar à família a sua disponibilidade, a realizar a avaliação da situação e, sempre que possível, estimular o cuidador a manter o cuidado familiar, utilizando tácticas de reforço positivo (curiosamente mais frequentes quando o cuidador é do género masculino). As enfermeiras denominam este comportamento de dar espaço à família:

Nós temos que dar hipóteses deles se organizarem eles é que têm que arranjar a estratégia deles, não pode ser imposto, eles é que têm que se organizar. [EMV]

O que significa que o cuidado se mantém sob a responsabilidade directa do cuidador informal, situando-se a enfermeira como o recurso disponível através de um contacto telefónico.

Há um objectivo claro na forma como a família é envolvida nos cuidados. Ela é necessária para o processo de recuperação da pessoa, o que é considerado nos cuidados. Dessa forma, centra-se a atenção na família, numa perspectiva utilitária: a família como recurso.

O alvo dos nossos cuidados é a família. Se a família estiver bem, o doente está bem, a família é o nosso principal aliado nos cuidados. Bem preparados, vai-se reflectir no doente… se focar só no doente (…) deixo aquela família completamente desprotegida. Não há quem aguente ficar 24 horas sobre 24 horas a cuidar daquele doente, sem nos telefonar, sem ficar ansiosos… E o nosso objectivo é (…) que aquela família fique o mais independente possível… e os mais receptivos possíveis e sentir que está a fazer o possível e dar àquele membro tudo o que pode. Temos que nos centrar na família. [LM]

A família torna-se recurso no sentido de mobilizar o sistema de suporte natural da pessoa para aquisição e manutenção do bem-estar. Esta mobilização pressupõe a utilização daqueles que são importantes para o utente, principalmente os que lhe estão próximos, como a família.

Esta perspectiva acarreta ganhos em saúde para o utente e para a família: ao ser envolvida como alvo e recurso de cuidados é realizado um investimento intencional na família considerando que o processo de interacção criado pela proximidade do doente/família promove um relacionamento terapêutico que alivia o sofrimento. A família favorece o doente para enfrentar a doença e beneficia emocionalmente ao estar com o doente e com a noção de ter feito tudo o que estava ao seu alcance, especialmente ao respeitar a vontade daquele em permanecer em casa. Isto é evidente no apoio dado a pessoas em situação terminal e no apoio à família antes e durante o processo, como ocorre nas situações de luto. Assim, a família é apoiada, é objecto de estímulo e o seu envolvimento é valorizado pela equipa de enfermagem.

A família enquanto recurso nos cuidados implica que a enfermeira centralize algumas das deslocações na necessidade de partilhar informação com os cuidadores e, ao mesmo tempo, avaliar os resultados do ensino efectivado. Nesta partilha incluem-se cuidados que a enfermeira identifica que a família pode prestar, para os quais necessita de apoio adicional. Como exemplo comum, a enfermeira ensina a família a mobilizar a pessoa em situação de dependência total ou

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parcial com o objectivo de prevenir úlceras de decúbito, pneumonia hipostática e outros problemas decorrentes da imobilidade enquanto o seu ensino incide na forma de o cuidador prevenir sequelas para si próprio, nomeadamente as resultantes do esforço excessivo e inadequado.

Neste componente dos cuidados partilhados, é importante a demonstração da competência da enfermeira, principalmente quando o utente veio transferido de uma unidade hospitalar. É comum que a família interiorize algumas normas fornecidas no momento da alta e que, posteriormente, venha a confrontá-las com as indicações da enfermeira do PCCD.

Um exemplo desta situação ocorreu com uma cuidadora idosa cujo marido (em sequência de AVC) ficou confinado ao leito e dependente na necessidade de se mobilizar. Sobrevieram úlceras de decúbito e a alta ocorreu com as lesões em fase de cicatrização. Na primeira deslocação, a enfermeira percebeu que a cuidadora cumpria, religiosamente, a indicação de alternar o decúbito a cada 4 horas, de dia e de noite. Era evidente a exaustão da senhora, até porque era a idosa que mobilizava o marido durante a noite. A enfermeira iniciou um processo de partilha de informação com a cuidadora e com as filhas, no sentido de implementar medidas sobre técnicas de mobilização, prevenindo, assim, o risco de lesão para a cuidadora. A enfermeira procurou demonstrar competências técnicas e cientificas e as suas indicações foram sendo reconhecidas como valiosas e imprescindíveis para o bem-estar da pessoa. A modificação de atitude foi evidente (tive a oportunidade de acompanhar as primeiras visitas e, após um período de interregno, contactei com a mesma família). Era notória a modificação entre o primeiro contacto (mas elas lá no hospital disseram que tinha que ser assim por via das feridas) para uma atitude mais confiante nos cuidados que prestava ao marido, baseada nas indicações da equipa de enfermeiras do programa.

Ao englobar a família nos cuidados, surge a oportunidade desta se aproximar da equipa de saúde, com evidentes melhorias na saúde global das pessoas. Como exemplo, as doenças crónico degenerativas são modelos claros da necessidade de educação em saúde pois a manutenção da qualidade de vida do utente dependerá da medicação e, principalmente, das mudanças de hábitos de vida. Modificar hábitos, alcançar estilos de vida saudáveis, só se consegue na parceria e na confiança entre população e os profissionais de saúde, no respeito mútuo pelos saberes de cada parte e os cuidados de proximidade, desenvolvidos no domicílio e em conjunto com uma família são um bom motor da mudança. Neste contexto, a comunicação assume aspectos precisos, em

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que, para além das expressões e dos simbolismos utilizados, se torna essencial avaliar a adequação do conteúdo, bem como a sua oportunidade temporal.

A inclusão da família na equipa de saúde pode implicar que os familiares sejam fonte de dificuldade, ou preocupação, para as enfermeiras, obrigando à adopção de estratégias globalmente denominadas de jogo de cintura, pela necessidade de estar atento às características da relação entre os elementos da família, a sua influência sobre a pessoa cuidada, os cuidados prestados e a forma como os enfermeiros são recebidos no contexto domiciliar. O cuidador pode constituir-se fonte de preocupação pela sua situação de doença ou debilidade, obrigando a que cada caso seja avaliado de forma exaustiva e que sejam procuradas soluções, que passem pela mobilização da rede de apoio à pessoa e ao cuidador, o recurso a outros profissionais da equipa do PCCD, e a procura de apoio comunitário, nomeadamente centros de dia e autarquias.

Eu não estou a dizer para aceitarem ou não mas têm que ver que isto é hoje, é amanhã… e vocês aguentam? Eu acho q era importante mas vocês é que têm de ver… assim ficam com o resto das horas todas para lhe darem apoio… (sobre a necessidade de apoio domiciliário) (OP)

Cuidar de um familiar é uma decisão complexa, por vezes entendida como uma obrigação moral, e que pode estender-se por muito tempo, causando sequelas na família. Definir quem será o cuidador familiar é uma situação em que, na maioria das vezes, a família necessita de se organizar e negociar possibilidades, que incluem identificar quem poderá assumir essa tarefa, conforme o parentesco, a disponibilidade de tempo e o desejo pessoal. Se a situação de doença desperta na família o sentimento de responsabilidade de cuidar de pessoas unidas por laços de afectividade pode igualmente desencadear o receio de ser incompetente e a recusa em assumir- se o papel de cuidador.

A enfermeira pode percepcionar esta recusa como desresponsabilização da família ou a tentativa de abdicar do cuidado ao familiar colocando-o, integralmente, sob a alçada das enfermeiras. Esta atitude é identificada como uma necessidade de intervenções da equipa que passam pela informação, por assegurar que a informação é percebida e que o significado dos cuidados é partilhado. A família é elucidada sobre os cuidados que são da sua responsabilidade, competindo-lhe, então, implementar estratégias que considere apropriadas, enquanto a enfermeira se mantém como apoio nas decisões e mediadora entre as necessidades e os recursos. Esta intervenção é vista como indispensável para que a família assuma o seu papel como cuidadora. É uma intervenção aprendida no percurso experiencial da enfermeira e difícil de ser implementada (é mais fácil fazer por eles) ou

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Integrar a família nos cuidados não é fácil, e depende das famílias (…) É preciso muito jogo de cintura que eu não aprendi com ninguém, aprendi comigo própria e com os erros que a gente comete… tive que aprender (…) chamadas de atenção, de muito ponderar: se calhar eu não estou a responsabilizar esta família, se calhar eles estão a dar-me a volta é a mim… o que eu aprendi e a formação, acho q a formação serve para reflectires naquilo que fazes e acho q a gente cresce… aprende… e foi assim q eu aprendi… mas cada caso é um caso, cada família é única e muitas vezes vou além do que a minha competência e a minha responsabilidade. A culpa não é só deles, também é nossa. [LM].

A co-responsabilização das famílias pode ser considerada uma tarefa importante até para a aquisição do equilíbrio familiar e da independência nos cuidados à pessoa, e o papel da enfermeira ganha corpo também nesta tarefa.

Mesmo tornando-se cuidador familiar, em algumas situações, as famílias parecem não querer aceitar o apoio da enfermeira. No caso de famílias não cooperantes, a perspectiva comum dos enfermeiros é reformular a intervenção: a enfermeira convoca e conduz reuniões familiares, recorre à equipa, na tentativa de reequacionar as intervenções e de manter a parceria de cuidados com a família. Nestas situações, expressões como as da enfermeira ACEN são comuns:

… Onde é que a gente falhou? O que é que poderíamos ter feito mais, onde é que a gente poderia ter batalhado para que aquela família aguentasse esta situação… eu sinto uma frustração minha… (E1)

A não-aceitação da parceria com a enfermeira pode ser explícita em comportamentos de não adesão às indicações (raramente) e em comportamentos que as enfermeiras consideram colocar em risco a evolução do estado de saúde para a independência, como comportamentos de agressividade para com os familiares dependentes (ainda que excepcionais, durante os dois anos e meio de trabalho de campo, fui informada de três situações), comportamentos de não inclusão das indicações das enfermeiras nas práticas de cuidados (prevenção das úlceras de decúbito, cuidados com a alimentação) e de não adesão à terapêutica. A enfermeira procura rever as intervenções que implementa, nomeadamente o reforço da informação:

Temos que ter o máximo cuidado não ferir susceptibilidades e fazer ver àquela cuidadora que se o doente não está bem aquela agressividade não o leva a lado nenhum… (EM)

Se eles se interpõem entre nós e o utente é porque há qualquer coisa da nossa parte que falhou. Temos que descobrir o que é que falhou. Quando há dificuldade entre o doente e o enfermeiro é porque existe qualquer coisa ou que se quer esconder ou porque a nossa abordagem não foi correcta… e nós temos que arranjar uma solução. (LM)

Uma situação particular é aquela em que a intervenção directa no utente advém não da necessidade real da pessoa mas da imposição da família, para assegurar o bem-estar desta, em situação de doença terminal, por exemplo. Este tipo de decisão insere-se no processo de Tomada de Decisão da enfermeira. Em função da situação e com base nos conhecimentos, experiência e na mobilização de competências éticas, a enfermeira decide agir, podendo esta acção tomar a

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forma de uma infusão intravenosa que coloca em curso, a aspiração de secreções ou a introdução de uma sonda nasogástrica. A enfermeira sabe que, para a família, é fundamental a constatação de que estão a realizar uma intervenção para assegurar a manutenção da vida ou a diminuição do sofrimento do utente, não bastando as medidas de conforto que estão implementadas.

As medidas paliativas ainda não fazem parte do saber difundido e a família veicula esta ausência de informação. A enfermeira procura, através da informação e das práticas partilhadas de cuidados, implementar a ideia da importância dos cuidados paliativos para a pessoa em situação terminal de vida, valorizando as medidas conducentes ao bem-estar: higiene e conforto, ausência de dor, hidratação, como demonstração de que “ainda há muito a fazer por aquela pessoa”, exercendo assim o papel de cuidadora, com a inerente componente educativa:

Muitas vezes eu tenho que entrar, traumatizar o doente, aspirando ou pondo um soro, para que aquela família sinta que se está a fazer alguma coisa… aliás está-se sempre a fazer alguma coisa, no conforto ou no controlo da dor (…) mas não é fácil transmitir isto à família. Como é que eu lhes explico que eles não precisam de comer, precisam de ser hidratados a nível oral, uma boa higiene que isso muitas vezes é suficiente… nós temos que apoiar, cuidar daquela família para que percebam e acabamos por pôr o soro… pelo menos na cabeça da família está-se a fazer alguma coisa. (LM).

Enfermeira e família estabelecem um contrato terapêutico que visa demarcar fronteiras de intervenção e negociar um espaço de confiança. Cada interveniente estabelece o seu espaço e até onde pode intervir num processo de negociação de competências e actividades como cuidador. Além de cimentar a confiança na praxis da enfermeira, este contrato auxilia a família cuidadora a aumentar, gradualmente, a sua intervenção junto do utente com confiança acrescida, procurando estabelecer objectivos realistas: assegurar os cuidados à vida, adquirir competências na escolha e preparação dos alimentos mais adequados (e apetecíveis para a pessoa doente) ou apoiar o familiar nos últimos momentos e resolver uma situação de luto. A relação que a enfermeira estabelece com a família é, assim, intencional, e a finalidade que a define auxilia ambas as partes a negociar as intervenções, as responsabilidades e, ao mesmo tempo, a prevenir a eventualidade do excessivo envolvimento emocional da enfermeira (e da família).

Tornar a família alvo de cuidados mobiliza uma equipa de saúde, sendo que a enfermeira intervém como mediadora entre os diversos elementos da equipa e a pessoa/família. Esta partilha dos cuidados determina uma gestão próxima das intervenções, para fazer face à multiplicidade de pessoas envolvidas, algumas das quais não pertencem à área da saúde. Ao intervir como mediadora, a enfermeira partilha o significado dos cuidados com estes profissionais, nomeadamente os autarcas que são envolvidos nas medidas de apoio, o que permite que o

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programa crie raízes na comunidade e seja sustentado por um vasto leque da população, incluindo sobretudo, a rede de vizinhança que apoia a pessoa.

A nossa equipa de saúde? São tantos: somos nós, claro, mas é a família, é a câmara, é o padre, os vizinhos… todos os que podem apoiar a pessoa. [CM]

A partilha do significado dos cuidados determina o reconhecimento do programa pela comunidade, o que constitui uma forma de aumentar as possibilidades de recrutar apoio para a pessoa e a família e, ao mesmo tempo, assegurar a manutenção do programa activo.