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A incidência na dinamicidade do processo civil contemporâneo:

PARTE I: PREMISSAS CONCEITUAIS E METODOLÓGICAS

1.5. APROVEITAMENTO DA TEORIA DE PONTES DE MIRANDA PARA O

3.8.7. A incidência na dinamicidade do processo civil contemporâneo:

Segundo Marcos Bernardes de Mello, com fundamento na teoria ponteana, “A errada aplicação da norma não altera a veracidade da incidência. Por isso, se a aplicação foi de norma que não incidiu, é necessário restabelecer-se a verdade aplicando-se a norma realmente incidente, corrigindo-se o erro.”548

Esse ensinamento, importado para o direito processual civil, revela a concepção de que, se o julgador aplicar ao caso concreto norma processual que não incidiu no mundo dos pensamentos, ele está a incorrer em erro, deixando de executar a justiça, provavelmente por uma falha interpretativa. Todavia, é preciso

547 Tradução nossa: “Esse dever jurídico se refere também à aplicação correta de normas morais

corretas”. (ALEXY, Robert; BULYGIN, Eugenio. La pretensión de corrección del derecho…, cit., p. 59).

que se acrescente: muito embora a aplicação de norma não incidente seja um erro, por outro lado, nem sempre que uma norma processual incidir, ela deverá necessariamente ser aplicada pelo magistrado.

Explica-se o sentido dessa afirmação.

O processo civil contemporâneo é marcado pela enorme dinamicidade. Uma visão puramente estática do procedimento – com fases demarcadas, com posições previamente bem delimitadas – só é cabível sob um ponto de vista didático. Malgrado o processo civil seja ordenado legalmente (“mundo abstrato”) com vistas à previsibilidade no caminhar procedimental, sendo previstos inclusive ritos específicos, tal certeza, própria desse ideal normativo, resta superada, quando da verificação do “mundo concreto”.

Iniciada uma demanda, a sequência de atos que dali se segue poderá levar a uma dança persistente de posições jurídicas. Não se pode surpreender se até o juiz passar a figurar no polo passivo, como ocorre em eventual incidente de impedimento. Não se pode ficar perplexo se o réu virar demandante, como ocorre no caso de uma reconvenção ou numa impugnação à gratuidade da justiça concedida ao autor. Não se pode ficar assustado, se um processo que se inicia com um autor e com um réu, receber a intervenção de vários outros sujeitos processuais, terminando com, até mesmo, dezenas de partes nos dois polos. É sinal dos tempos a possibilidade de alguém poder escolher ser réu, autor ou, mesmo, ficar inerte, como nos casos de intervenção móvel.549 Todas essas flutuações, nota-se, ocorre com

549 Segundo Mazzei, o art. 6º,§3º, da Lei nº 4.717/1965 contempla uma situação peculiar, a se aplicar

às ações populares e às ações de improbidade administrativa, denominada “intervenção móvel”. Esta consiste numa técnica processual que permite que a pessoa jurídica de direito público ou de direito privado que tenha ato seu impugnado nas demandas referidas possa adotar três posturas possíveis, alternativamente: “1ª Possibilidade: apresentar contestação, sustentando que não há mácula no ato impugnado judicialmente pelo autor da ação popular; 2ª Possibilidade: abster-se de contestar, sem qualquer manifestação, ou seja, sem pronunciamento algum sobre o ato impugnado pelo autor da ação popular; 3ª Possibilidade: não contestar e, verificando que a ação popular ajuizada é útil ao interesse público, deslocar-se da sua posição original do polo passivo, para o polo ativo da demanda, vindo a atuar ao lado do autor”. Mazzei demonstra que essa variabilidade de posições jurídicas leva à impossibilidade de se enquadrar a espécie aos modelos tradicionais de litisconsórcio necessário e facultativo. Destaca-se, ainda, que a intervenção móvel também se mostra aplicável a demandas individuais. Após debates em sala de aula com o professor Mazzei, chegou-se à conclusão de que na demanda de indignidade movida por um herdeiro contra outro dos herdeiros necessários do falecido, os demais herdeiros devem ser citados para se manifestar no processo. No caso, estes últimos poderão optar por se abster, ou por ficarem no polo ativo ou, ainda, por apoiarem o réu, situando-se no polo passivo. Com isso, fica caracterizada a mobilidade nos polos da demanda. Cf. MAZZEI, Rodrigo Reis. A intervenção móvel da pessoa jurídica na ação popular e a ação de improbidade administrativa (artigos 6º, 3º, da LAP, e 17, §3º, da LIA). In: Revista jurídica: órgão nacional de doutrina, jurisprudência, legislação e crítica judiciária. Ano nº 61, nº 425, p. 9-44, março de 2013.

uma frenética alteração de situações jurídicas, conferindo a uns e a outros ônus, poderes, direitos, faculdades, deveres processuais.

Essa dinamicidade é própria de um mundo “pós-moderno”. A vida agitada do dia-a-dia – em que muito se trabalha, em que rapidamente se comunica, em que num átimo se movimenta, em que num impulso tudo se altera550 – também pode ser observada no palco do processo.551 No caso, o desafio de aplicar o direito acaba se tornando ainda maior, em especial porque ao longo do procedimento também opera, com enorme dinamismo e numa constância frenética, a múltipla incidência de normas jurídicas. Sobre um mesmo suporte fático, mostra-se comum que um sem- número de normas processuais incida, sejam elas regras ou princípios.

Com o tal conglomerado normativo incidente, o juiz deverá, não aplicar todas as normas, mas, dentre as possibilidades que lhe são postas, poderá escolher a solução que entende, após debate, mais alinhada com a justiça para aquele caso concreto. Deveras, não se defende aqui a existência de uma única solução correta para cada situação posta em julgamento.552 A justificativa é bem simples: o juiz não pode aplicar norma que não incidiu, mas, tendo em conta a incidência múltipla de normas, poderá fazer escolhas legitimadas pelo direito (dentre as opções que se apresentam), com pretensão de correção.

É preciso lembrar que, no processo civil contemporâneo, o procedimento se mostra muito mais “suave”, até porque o instrumento se destina à boa realização do

550 Essa ideia se alinha com a noção de “sociedade líquido-moderna”, de Bauman: “Numa sociedade

líquido-moderna, as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se tornam passivos, e as capacidades em incapacidades. As condições de ação e as estratégias de reação envelhecem rapidamente e se tornam obsoletas antes de os atores terem uma chance de aprendê-las efetivamente. Por essa razão, aprender com a experiência a fim de se basear em estratégias e movimentos fáticos empregados com sucesso no passado é pouco recomendável: testes anteriores não podem dar conta das rápidas e quase sempre imprevistas (talvez imprevisíveis) mudanças de circunstâncias. Prever tendências futuras a partir de eventos passados torna-se cada dia mais arriscado e, frequentemente, enganoso. É cada vez mais difícil fazer cálculos exatos, uma vez que os prognósticos seguros são inimagináveis: a maioria das variáveis das equações (se não todas) é desconhecida, e nenhuma estimativa de suas possíveis tendências pode ser considerada plena e verdadeiramente confiável.” (BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 7-8.)

551 A respeito da influência da “pós-modernidade” no direito: “A sociedade ocidental parece ter sido

um mundo estável até mais ou menos o século dezenove, sendo hoje caracterizadamente instável. Isso tem reflexos diretos na ‘função do direito’, que se vê obrigado a assumir novas formas, para atender a necessidades distintas, que as mudanças sociais criam. [...] Fala-se, então, em ‘pós- modernidade’, ‘pós-história’, ‘desaparecimento do mundo’. São, evidentemente, exageros céticos, mas que dizem alguma coisa sobre a complexidade de nossa época, e da perplexidade do homem diante dela.” (BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos civis. 2ª edição revista, atualizada e ampliada. Salvador: Juspodivm, 2014. p. 40).

552 Em sentido diverso, cf. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Ogni caso comporta un’única soluzione

corretta? In: Revista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Dicembre, anno LXVIII, nº4, p. 1351-1367, 2014.

direito material. Com efeito, em muitas ocasiões, a incidência de uma norma processual, grosso modo, poderá ser juridicamente “contornada” mediante a utilização ponderada e racional do princípio da fungibilidade ou de institutos processuais que levam à flexibilização do procedimento, como, por exemplo, os negócios jurídicos processuais, os quais, inclusive, podem envolver o juiz e as partes. Em situações como essas, cria-se uma norma jurídica para aquele caso específico, e de maneira legítima, uma vez que democraticamente e em respeito ao princípio do autorregramento da vontade das partes (cf. capítulo 4).553