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A incidência que ocorre no mundo dos pensamentos: a vinculação

PARTE I: PREMISSAS CONCEITUAIS E METODOLÓGICAS

1.5. APROVEITAMENTO DA TEORIA DE PONTES DE MIRANDA PARA O

3.8.3. A incidência que ocorre no mundo dos pensamentos: a vinculação

aplicar o direito

A norma jurídica processual, assim como qualquer outra, é um juízo hipotético-condicional (Kelsen)507, uma proposição prescritiva (Lourival Vilanova)508 que surge da interpretação do direito. Assim, não se pode confundi-la com o texto normativo, o qual contempla diversos enunciados prescritivos que funcionam como objeto da interpretação (Paulo de Barros Carvalho).509

No entanto, não há mais espaço na fase contemporânea do processo, marcada pelo norte filosófico do “pós-positivismo”, para se encarar o processo hermenêutico como uma mera atribuição de significado aos textos, como se estes nada tivessem de apresentar para o intérprete. Se é verdade que a norma jurídica não pode ser sacada da fonte do direito (Constituição, lei, atos administrativos, costume etc.) passivamente pelo aplicador, também não deixa de ser verdadeiro que o intérprete não pode atribuir qualquer sentido que quiser ao conjunto textual.

O texto do direito está mergulhado numa dimensão cultural repleta de significados prévios. Nenhum texto normativo é aleatoriamente produzido, como que em desconexão absoluta em relação ao estágio de desenvolvimento de um povo, ou aos valores dele, ou aos influxos ideológicos da nação. Todo enunciado prescritivo é emitido dentro de um determinado contexto, fazendo com que uma série de valores o acompanhe.

Por isso, a interpretação do direito se dá considerando não uma compreensão individualizada do fenômeno, mas as interações de compreensão significativa da coletividade. O intérprete não pode construir a norma que bem entender no caso

507 KELSEN, Hans. Teoria geral das normas, cit., p. 25-28. 508 VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas..., cit., p. 68.

509 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributários: fundamentos jurídicos da incidência, cit., p. 67-

concreto, porque a norma jurídica, pode-se dizer, já se mostra significativamente esboçada, dada a historicidade que tem o texto, dados os influxos culturais do tempo que se vive, dada a teia relacional do objeto (texto) com as pessoas que ele afeta. Daí as palavras de Eros Roberto Grau:

O “objeto” do conceito jurídico não existe “em si”, dele não há representação concreta, nem mesmo gráfica. Tal objeto só existe “para mim”, de modo tal, porém, que sua existência abstrata apenas tem validade, no mundo jurídico, quando a este “para mim”, por força da convenção normativa, corresponde um – seja-me permitida a expressão – “para nós”.510

O direito, como processo de adaptação social que é, precisa ser apreendido pelas pessoas, sob pena de perder a finalidade a ele ínsita: regrar a vida em sociedade. Se a norma jurídica for vista apenas como a construção do denominado “intérprete autêntico” e, pior, se for assegurado o poder absoluto de discricionariedade (arbitrariedade) a esse “criador do direito”, perde-se a segurança jurídica, esvai-se a previsibilidade tão cara ao mundo jurídico.511

Por conseguinte, Lênio Streck512 acerta ao dizer que “o texto não subsiste

separadamente da norma, d’onde é necessário não confundir a equiparação entre

510 GRAU, Eros Roberto. Direito, conceitos e normas jurídicas. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1988. p. 62.

511 Alinhado a isso, extrai-se o seguinte excerto de Guibourg, Ghigliani e Guarinoni, que trata a

respeito do problema de se atribuir significado incomum às palavras: “Esta posibilitad de inventar nombres a nuestro gusto suele llevar, a su vez, un nombre: libertad de estipulación. Pero, como todas las libertades, esta trae consigo una responsabilidad o, si lo preferimos, un riesgo. Si estipulamos libremente un nombre, nadie comprenderá nuestros mensajes que lo contengan a menos que lo comuniquemos previamente esa estipulación. Si, en cambio, seguimos la regla del

uso común (es decir, usamos las palabras con el mismo significado que comúnmente se les asigna

en nuestro medio lingüístico), nuestros interlocutores no tendrán dificultad en entender lo que decimos. En otras palabras, podemos usar cualquier nombre que se nos ocurra para cada cosa; pero cuanto menor sea la aceptación común de ese significado en el medio en que nos movemos, tanto mayor será la dificultad de comunicación y tanto más necesaria alguna aclaración sobre nuestra lenguaje personal”. Tradução nossa: “Esta possibilidade de inventar nomes a nosso gosto pode ser denominada de liberdade de estipulação. Porém, como todas as liberdades, esta traz consigo uma responsabilidade ou, se for preferido, um risco. Se estipulamos livremente um nome, ninguém compreenderá as nossas mensagens emitidas, a menos que comuniquemos previamente a estipulação (sentido fixado). Se, por outro lado, seguimos a regra de uso comum (é dizer, usamos as palavras com o mesmo significado que comumente se emprega no nosso meio lingüístico), nossos interlocutores não terão dificuldade em entender o que dizemos. Em outras palavras, podemos usar qualquer nome que nos ocorra para qualquer coisa; todavia, quanto menor for a aceitação comum desse significado no meio em que nos movemos, maior será a dificuldade de comunicação e tanto mais necessária será algum esclarecimento sobre nossa linguagem pessoal.” (GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo. Introducción al conocimiento científico, cit., p. 35).

512 STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção

do Direito. 10ª edição revista, atualizada e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 279.

texto e norma com a necessária diferença (que é ontológica) entre ambos.” E prossegue o autor:

Eu não vislumbro primeiramente o texto para depois ‘acoplar’ a respectiva norma. A norma não é uma ‘capa de sentido’, que existiria apartada do texto. Ao contrário disso, quando me deparo com o texto, ele já ex-surge

(sic) normado, a partir de minha condição de ser-no-mundo.

Haja vista que “a vivência da comunidade do discurso cria sentidos que impregnam os significantes, numa relação inter-retro-ativa”513, é importante lembrar,

por aqui, que Pontes de Miranda, quando aludia à incidência automática e infalível, sempre se referia a esse fenômeno como que ocorrido no denominado “mundo dos pensamentos”514 – e este conceito não é de menor importância, mormente para as pretensões que este trabalho tem (averiguar a compatibilidade da teoria dos fatos jurídicos processuais com o processo civil no Estado Democrático Constitucional).

Adriano Soares da Costa foi o autor brasileiro que melhor apreendeu o intrincado sentido do conceito ponteano de “mundo dos pensamentos”. Ele explica que “o pensamento é algo comunicável e vivido de modo público, através do processo social, que vai além de uma idéia (sic) privada do sujeito cognoscente.”515 Tal noção se dá a partir da diferença que Frege fixa entre “idéias (sic) privadas” e “pensamentos”: aquelas dizem respeito à psique, isto é, ao que se passa na mente individual de uma pessoa; este, a seu turno, é algo abstrato, com vida autônoma em relação ao sujeito, cuja apreensão se dá de maneira intersubjetiva. Logo, “esse terceiro domínio platônico-fregiano é justamente o mundo do pensamento, que não é o meu ou o seu mundo, mas o nosso mundo formado pela relação eu-tu.”516

Nesse sentir, “Pontes de Miranda chama de ‘mundo do pensamento’ uma realidade que ultrapassa a subjetividade, situada nessa dimensão simbólica do

513 COSTA, Adriano Soares da. Teoria da incidência da norma jurídica..., cit., p. 38.

514 Como nas seguintes passagens: “A incidência da lei, pois que se passa no mundo dos

pensamentos e nele tem de ser atendida, opera-se no lugar, tempo e outros “pontos” do mundo, em que tenha de ocorrer, segundo as regras jurídicas.” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, tomo I, cit., p. 74). E ainda: “Tudo isso se desenrola mediante o pensamento, que está na regra jurídica (pensar vem de pesar), e incide nos fatos, ainda em queda

(incidere, cadere) que só se passa no mundo dos nossos pensamentos, porém que nós vemos em

suas consequências: a entrada dos herdeiros na casa, a retirada dos objetos, o alojamento deles, a venda em leilão e a distribuição, entre eles, da quantia apurada; e que ouvimos nas conversações do escrivão do cartório, nas defesas dos advogados e nos julgamentos dos juízes.” PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, tomo I, cit., p. 66).

515 COSTA, Adriano Soares da. Teoria da incidência da norma jurídica..., cit., p. 48-49. 516 Ibid. p. 49.

homem, que o transcende e tem realidade própria, metapessoal.”517 Prova disso,

demonstra Adriano Soares da Costa com lastro na doutrina de Gaetano Carcaterra, é a intricada relação da teoria ponteana dos “jetos”518 com o denominado terceiro mundo de Karl Popper (mundo das ideias no sentido objetivo). De fato, o “jeto” seria “a realidade para além do sujeito que quer conhecer e do objeto que se deixa conhecer”, ou, em termos mais precisos, “seria uma terceira realidade, além do objeto (mundo material) e do sujeito (mundo mental)”, bem semelhante às ideias no sentido objetivo de Popper.519

Ante ao exposto, quando se fala que a norma jurídica processual incide automática e infalivelmente no mundo dos pensamentos, indica-se a existência de um dado normativo objetivável anterior à aplicação, que se verifica na convivência social, nos dados culturais, na historicidade do texto normativo, nos valores ínsitos aos membros da comunidade, nas compreensões firmadas pela doutrina e pelos grupos sociais.520ˉ521 A norma jurídica não é uma construção individual realizada num tribunal ad hoc. Daí as palavras, mais uma vez precisas, de Lênio Streck: “De que modo é possível controlar o intérprete, para que ele não ‘diga qualquer coisa sobre qualquer coisa’? Ele é controlado pela tradição, pelos ‘constrangimentos linguísticos-epistemológicos’ que conforma a sua condição de ser no mundo.”522

517 Ibid. p. 50.

518 Sobre a dita teoria, cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. O problema fundamental

do conhecimento. 2ª edição. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972. p. 134-171.

519 COSTA, Adriano Soares. Teoria da incidência da norma jurídica..., cit., p. 52.

520 Cabe o destaque de que Pedro Henrique Nogueira adota o sentido de “mundo dos pensamentos”

elucidado por Adriano Soares da Costa. Dessarte, eis as palavras do autor de Alagoas: “A expressão ‘pensamento’ na teoria ponteana não quer significar algo acontecido no âmbito do pensar individual do sujeito destinatário, ou do sujeito aplicador da norma jurídica.” (NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Negócios jurídicos processuais, cit., p. 35).

521 Marcos Bernardes de Mello vê o termo “mundo dos pensamentos” em outro sentido – não adotado

por aqui, mas que deve ser lembrado. Para ele, o “mundo do pensamento” está situado no plano da psique, como que numa atividade mental de um sujeito psicologizado, daí o seguinte trecho: “A incidência, no entanto, não se nos dá no mundo sensível, porque suas consequências se passam no mundo da psique.” (Teoria dos fatos jurídicos: plano da existência, cit., p. 110). Essa ideia implica no entendimento de que “Somente fato cuja ocorrência seja da ciência de alguém, apenas, ou que seja passível de prova pode ser considerado concretizado para os fins de incidência das normas jurídicas.” (Ibid. p. 120-121). Todavia, como bem destaca Adriano Soares da Costa “A questão do conhecimento do fato por alguém, ou, ainda, a potencialidade de prova do fato ocorrido, não diz respeito propriamente ao problema da incidência (a não ser que o conhecimento mesmo, como fato psicológico, seja elemento do suporte fático da norma), mas sim da aplicação. Quando se fala em prova de um determinado fato se está a tratar do plano da aplicação, e não mais da incidência, que ocorre no mundo do pensamento”. (COSTA, Adriano Soares da. Teoria da incidência da norma jurídica..., cit., p. 47).