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PARTE I: PREMISSAS CONCEITUAIS E METODOLÓGICAS

1.4. UM PANORAMA SINTÉTICO DAS TRADICIONAIS TENTATIVAS DE

1.4.2. O fato jurídico processual segundo Enrico Tullio Liebman

Liebman também não partiu da definição conceitual de fato jurídico processual em sentido amplo. Aliás, dentro da concepção liebmaniana, parece que o termo “fato processual”, quando utilizado, é relegado a uma posição de inferioridade dentro da teoria, algo de menos importância no processo, numa explicitação de pensamento que evidencia ser o ato processual o foco de toda a análise.

Com motivo, é comum ver na obra do autor italiano o uso da expressão em comento precedida do pejorativo predicativo “simples”, é dizer, como um “simples fato processual”. É por isso, também, que Dinamarco, numa nota inserida numa obra traduzida, diz que a teoria de Liebman “é incompatível com a admissão de puros fatos processuais”.67

Tal incompatibilidade – maior até que na doutrina de Chiovenda – tem razão de ser, na medida em que a concepção liebmaniana inclui, dentre os requisitos da processualidade, a circunstância de que o ato seja praticado no procedimento (o que excluiria a processualidade de fatos da natureza, por ocorrerem fora do processo). Com efeito, “os atos processuais são os atos do processo”.68 Nesse prisma, também

ficariam de fora dessa classe a eleição de domicílio por uma das partes, a outorga da procuração ad judicia ao advogado, a celebração de um compromisso arbitral etc.

Ademais, sendo o ato processual “uma declaração, ou manifestação de pensamento, feita voluntariamente por um dos sujeitos do processo”69, também ficariam excluídos do conceito aqueles atos praticados por terceiros (mesmo que

66 No mesmo sentido, Calmon de Passos. Cf. Esboço, cit., p. 44-45.

67 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. 3ª edição. Tradução e notas de

Cândido Rangel Dinamarco. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 287.

68 Ibid. p. 285 69 Ibid. p. 286

realizados no procedimento), os quais seriam jogados de canto, recebendo a pecha de “simples fato processual”, como no caso do depoimento de uma testemunha, que só se transmutaria no eminente “ato processualizado” sob a ótica da colheita da prova testemunhal por parte do juiz (sujeito do processo) e com a documentação do ato.70

Consignadas essas observações, eis a definição conceitual completa de ato processual, nas lições do processualista da Itália:

[Trata-se de] uma declaração, ou manifestação de pensamento, feita voluntariamente por um dos sujeitos do processo, enquadrada em uma das categorias de atos previstos pela lei processual e pertencente a um procedimento, com eficácia constitutiva, modificativa, ou extintiva sobre a correspondente relação processual.71

Destrinchando, a processualidade, na visão liebmaniana, depende de três requisitos indispensáveis: primeiro, sob o aspecto da sede, o ato deve pertencer a um procedimento (onde deve ser praticado); segundo, sob o aspecto da eficácia, o ato deve incidir sobre a relação processual correspondente, de modo a constituí-la, modificá-la ou extingui-la; e, terceiro, sob o aspecto subjetivo, o ato deve ser praticado por um dos sujeitos do processo (partes e órgão jurisdicional).

Diante disso, fica evidente que tanto Chiovenda quanto Liebman dão importância aos efeitos do ato sobre a relação processual, bem como ao fator de que o ato seja praticado por sujeitos do processo.

Entrementes, Liebman, de um lado, acrescenta a necessidade de que o ato seja praticado no procedimento (elemento restritivo), e, de outra banda, amplia o substrato dos sujeitos processuais, incluindo não só o juiz, o escrivão e o oficial de justiça, mas também os auxiliares da Justiça (como o perito e o depositário, no que se refere às atividades no procedimento).72

Outro ponto de racha entre os dois autores é o pensamento quanto aos negócios jurídicos processuais, espécie não defendida por Liebman.73 Para este, a

70 Nas exatas palavras do autor: “Finalmente, também não são atos processuais os dos terceiros,

ainda que realizados no processo: p. ex., é um simples fato processual o depoimento de uma testemunha, mas são atos processuais a colheita da prova testemunhal por parte do juiz e a sua documentação.” (Ibid. p. 286).

71 Ibid. p. 286. 72 Ibid. p. 287.

73 Apesar disso, registra-se que, em alguns textos, Liebman admitiu acordos com eficácia no

vontade é elemento extremamente ligado aos atos processuais, que são, autênticos “fatos voluntários”; “eles não são sequer concebíveis senão como resultado da vontade da pessoa que os leva a efeito”. Todavia, essa vontade a que ele se refere é “extremamente genérica”, “a simples vontade e consciência de realizar o ato; não se requer absolutamente que seja voltada a obtenção de dado efeito [...], porque o efeito já está prefixado e estabelecido em lei”.74

Dessarte, o autor italiano faz a diferença entre “ato processual” e “negócio jurídico de direito privado”, numa evidência de que via com maus olhos a existência de “negócios jurídicos processuais”.

A doutrina de Liebman ganhou adeptos, com destaque no Brasil75, em que muitos processualistas adotaram o conceito de ato processual ofertado pelo professor italiano, apesar de alguns não seguirem toda a linha da teoria liebmaniana.

1.4.2.1. Breve crítica à concepção de Liebman

Se por um lado a ideia de Liebman não pode ser criticada por falta de rigor classificatório – até porque ele nega a existência de fatos e negócios processuais, não fazendo sentido haver um conceito amplo que englobe essas espécies junto com os atos processuais –, por outro lado, quanto aos critérios definitórios de “ato processual” eleitos por ele, podem ser direcionadas quase todas as reprimendas formuladas contra a concepção de Chiovenda. Ora, no cerne do pensamento liebmaniano, também se define o conceito pelos seus efeitos (caindo numa tautologia) e, ainda, atribui-se processualidade apenas ao ato praticado por um rol específico de sujeitos (critério que desconsidera a complexidade do processo civil contemporâneo, que comumente recebe o influxo de diversos sujeitos, bem como a relevância de vários atos praticados por “terceiros”).

Todavia, outra crítica ainda pode ser formulada, visto que Liebman procede com mais uma restrição do conceito de ato processual, a saber, a exigência de que

Diritto Processuale Civile, nº2, 1931; LIEBMAN, Enrico Tullio. Risoluzione convenzionale del processo. Revista di Diritto Processuale Civile, nº 1, 1932.

74 Ibid. p. 291.

75 Entre outros, cf.: DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª

edição, revista, atualizada e com remissões ao Código Civil de 2002. São Paulo: Malheiros, 2004, v.2; ALVES, Vilson Rodrigues; MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. Ed. atual. Campinas: Bookseller, 1997, v. 1; SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, v. 1; SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil. 6. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2008, t. 1.

ele seja praticado no procedimento; a sede do ato ganha calibre estrutural do conceito, portanto. Por uma questão de coesão textual, deixa-se a reflexão sobre o inconveniente – de se colocar a sede do ato como condição necessária para se atribuir o predicativo “processual” – para a crítica formulada à concepção de Satta (tópico 1.4.3.1), visto que ela maximiza a importância de o ato ser praticado no procedimento, sendo aplicável também por aqui.