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PARTE I: PREMISSAS CONCEITUAIS E METODOLÓGICAS

4.3. A NOVA PROPOSTA CLASSIFICATÓRIA DOS FATOS JURÍDICOS

APROXIMAÇÃO TEORÉTICA DO DIREITO MATERIAL COM O DIREITO PROCESSUAL

Uma crítica que poderia recair sobre a tomada da classificação sob os critérios indicados na teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda é que, como a teoria ponteana foi desenvolvida com vistas ao direito privado, trazer para o direito processual civil as espécies de fato jurídico no mesmo arquétipo sugerido na proposta original representaria retornar ao sincretismo processual, é dizer, à fase em que o processo era subserviente ao direito substancial. Todavia, as coisas não são bem assim.

Consoante se demonstrou no capítulo 2 deste trabalho, o processo civil contemporâneo contempla as marcas do formalismo-valorativo, o qual, muito embora parta da diferenciação entre direito material e direito processual, não torna os dois planos estanques, bem pelo contrário, um e outro se imbricam numa relação circular.

Esse relacionamento dos dois planos também se dá no que tange ao compartilhamento de teorias, não havendo mais que se falar em busca por autonomia científica ou em singularidade teorética dos campos jurídicos. Já se sabe que os planos são diferentes, não mais sendo necessário engajar-se pela separação de ambos.

574 Art. 846, CPC/15. “Se o executado fechar as portas da casa a fim de obstar a penhora dos bens, o

oficial de justiça comunicará o fato ao juiz, solicitando-lhe ordem de arrombamento. § 1o Deferido o

pedido, 2 (dois) oficiais de justiça cumprirão o mandado, arrombando cômodos e móveis em que se presuma estarem os bens, e lavrarão de tudo auto circunstanciado, que será assinado por 2 (duas) testemunhas presentes à diligência.”

Assim sendo, é próprio deste momento do estudo do processo civil um olhar mais próximo do direito material (e vice-versa)576, inclusive com a tomada de ideias

que, há muito, eram utilizadas somente pelos doutrinadores dos ramos do direito substancial. Tal movimento pendular, diga-se de passagem, não quer significar retorno ao praxismo, visto que o processualista, hoje, consegue entender as diferenças dos planos com nitidez.

Esse fenômeno vai ao encontro da percepção de que o direito, em que pese poder ser didaticamente picotado em diversos ramos, apresenta aspectos que são ínsitos à própria juridicidade considerada no todo, cabendo à teoria geral do direito operar com os conceitos fundamentais aplicáveis a toda e qualquer fragmentação do jurídico.577 Compreende-se que essas partes fragmentadas não se isolam, mas se interrelacionam constantemente como que unidas pelos conceitos-base.578

Diante disso, cai por terra a ideia de que as espécies de fatos jurídicos elencadas na teoria de Pontes de Miranda, por terem sido utilizadas largamente pelos civilistas, não podem ser utilizadas no processo civil. Primeiro, porque a ciência do processo não busca mais autonomia didático-científica, conquistada faz tempo; segundo, porque a proposta classificatória pertence à teoria geral do direito, do que se depreende que, ao menos em tese, pode ser transportada para os variados ramos jurídicos, com os seus conceitos fundamentais (= lógico-jurídicos), feitos os devidos ajustes; terceiro, porque, mesmo que a proposta tenha recebido influxos de visões do direito material, com a relação circular do processo com o direito substancial, resta comum que um e outro plano (inclusive em sede doutrinária) se aproveite de ideias mútuas.

Afora isso, é preciso lembrar que, no processo civil contemporâneo, dado o fenômeno da constitucionalização dos diversos ramos jurídicos, não mais há que se falar em leis estanques que regulamentam áreas díspares e afastadas, é dizer, em desconexão com outros diplomas normativos. Agora, todo o ordenamento jurídico,

576 Cf. JEVEAUX, Geovany Cardoso. As Relações Entre o Direito Material e o Direito Processual. In:

MAZZEi, Rodrigo. (Org.). Questões Processuais no Novo Código Civil. 1ª ed.Barueri: Manole, 2006, v. 01, p. 01-22.

577 Critica-se, portanto, aquela parcela da doutrina que insiste em fazer defesas de seus ramos

jurídicos como absurdamente separados dos outros, como no caso do embate sobre a pertinência de uma teoria geral do processo, que englobe processo civil e processo penal.

578 O termo “conceito base”, aqui, é utilizado na obra de Carlos Santiago Nino e corresponde ao

mesmo utilizado por Fredie Didier no signo “conceito lógico-jurídico” e por Lourival Vilanova no termo “conceito jurídico fundamental”. Cf. NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho. 2ª edición ampliada y revisada. Buenos Aires: Astrea, 2003. p. 165-168.

incluindo códigos dos mais variados tipos e microssistemas de toda e qualquer espécie, se encontra unido por uma superpotente “cola jurídica”, que é a Constituição. Nesse contexto, aquele dualismo clássico entre direito material e direito processual perde força, ao menos no sentido de que os dois praticamente não se tocam.

Com efeito, não há incongruência em se falar em (i) fatos jurídicos stricto

sensu (de direito material e de direito processual), (ii) atos-fatos jurídicos (de direito

material e de direito processual), (iii) atos jurídicos stricto sensu (de direito material e de direito processual), (iv) negócios jurídicos (de direito material e de direito processual) e (v) ilícitos (de direito material e de direito processual). Antes, pelo contrário, a adoção dos mesmos critérios classificatórios é uma aproximação sadia entre os dois planos (sem negar a diferença entre ambos), por conferir maior sistematicidade ao estudo, permitindo ao jurista identificar semelhanças e diferenças entre os institutos do direito material e do direito processual, bem como conferir a eles maior aplicabilidade, sempre partindo dos ditames constitucionais.

Frisa-se, todavia, que haverá ocasiões nas quais os planos estarão em zona tão cinzenta que, a depender do caso, será melhor desapegar-se ao rigorismo classificatório que biparte o direito substancial e o processo (nem sempre será possível dizer com convicção o que é processo e o que é direito material), preferindo-se vislumbrar a que se destina o fato jurídico resultante da incidência normativa.579

A unificação classificatória das espécies de fatos jurídicos – isto é, que considera uma categoria amplíssima de fatos jurídicos, englobando aqueles de direito material e de direito processual – facilita que o intérprete tenha um olhar mais teleológico quanto às normas jurídicas que incidem, de modo a verificar para quê elas se prestam num dado caso concreto, ciente de que os fins que elas têm podem variar. Daí Rodrigo Mazzei, para dar um exemplo, chamar a atenção para a

579 Há institutos que provocam verdadeira celeuma na doutrina, vindo uns a dizerem revestir-se de

processualidade, outros a afirmarem que o instituto é de direito substancial e, ainda, comumente há aqueles que sustentam a natureza mista. A título de exemplo, muito se discute sobre a natureza jurídica da prova. Entre aqueles que dizem ser norma processual, cita-se por todos: REGO, Hermegildo de Souza. Natureza das normas sobre prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 15 e 16, nota 32. Entre aqueles que dizem que a prova é instituto de direito material, cita-se por todos: CHIOVENDA, Giuseppe. La natura processuale delle norme sulla prova e l’efficacia della legge processuale nel tempo. In: Saggi di Diritto Processuale Civile. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1993, v. 1. p. 242-243. Entre aqueles que defendem a natureza mista, cita-se por todos: CAPPELLETTI, Mauro. La “natura” delle norme sulle prove. Revista di Diritto Processuale Civile, Padova, v. 24, 1969. p. 97-98.

existência de normas jurídicas bifrontes (aquelas que apresentam perfil misto, de direito material e de direito processual)580, como uma norma presente no Código de

Processo Civil, mas que tem reflexos simultâneos sobre o processo e sobre o direito material, e normas jurídicas heterotrópicas (aquelas que apresentam um perfil diverso da finalidade primeira de um diploma normativo específico), como, por exemplo, uma norma de processo encontrada no Código Civil.581ˉ582

Com efeito, esvai-se o entendimento simplista de se conferir uma “natureza jurídica” apriorística e estática aos institutos jurídicos, como se deles emergisse uma essência impregnada. Atitude como essa evidencia o esquecimento de que sobre um mesmo suporte fático podem incidir normas jurídicas das mais variadas espécies e que irradiam múltiplos efeitos sobre um e outro plano. Aliás, a mesma norma jurídica pode regular casos diferentes, evidentemente, de maneiras diferentes.

Por ora, o que aqui se demonstra é que a proposta classificatória dos ponteanos do processo confere maior sistematicidade ao estudo dos fatos jurídicos em geral, o que se permite o desenvolvimento de um discurso jurídico mais coerente e racional, porque alinhado aos conceitos fundamentais da teoria geral do direito e do norte direcionador advindo da Constituição da República.

4.4. OS TIPOS DE FATOS JURÍDICOS PROCESSUAIS CIVIS LÍCITOS À LUZ