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PARTE I: PREMISSAS CONCEITUAIS E METODOLÓGICAS

4.4. OS TIPOS DE FATOS JURÍDICOS PROCESSUAIS CIVIS LÍCITOS À LUZ

4.4.1. O fato jurídico stricto sensu processual civil

Seguindo a doutrina dos ponteanos do processo, o fato jurídico stricto sensu processual civil583ˉ584 é aquele evento natural juridicizado pela incidência de uma norma jurídica processual civil e que se refere a um procedimento em curso. No caso, o suporte fático da norma em questão prevê um fato natural ou biológico (sem necessidade de atuação do homem) que, quando ocorre, na pendência de um processo a ele relacionado, juridiciza-se, pela incidência normativa que se dá no mundo dos pensamentos, e ingressa no mundo jurídico.585

Seriam alguns exemplos de fatos jurídicos stricto sensu processuais civis: (i) a morte de uma das partes, que gera o direito à suspensão do procedimento (art. 313, I, CPC/15586), bem como o direito de os herdeiros do falecido se habilitarem nos

autos (art. 687, CPC/15587); (ii) a força maior, que gera o direito à suspensão do

583 Adverte-se que o vocábulo “fato jurídico processual” é polissêmico na doutrina. Liebman, por

exemplo, usa essa expressão para designar qualquer acontecimento (inclusive ações humanas) com alguma relevância para o processo que não se encaixe na definição de ato processual que ele fixa, baseada em três critérios: pertencimento ao procedimento, eficácia sobre a relação processual e ter sido praticado por sujeito do processo (partes e órgão jurisdicional). Assim, o depoimento de uma testemunha, não sendo ato processual, para ele, é “simples fato processual”. Cf. Capítulo 1 desta dissertação.

584 Há tempo, há autores que aceitam a categoria dos fatos jurídicos stricto sensu processuais. Por

todos, cf. COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 3ª edição (póstuma). Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1958. p. 202-203; CINTRA, DINAMARCO, GRINOVER. Teoria geral do processo, cit., p. 357-358; CÂMARA, Alexandre. Lições Preliminares..., cit., p. 272-273; REDENTI, Enrico. Diritto processuale Civile. Vol. I. Milano: Giuffrè, 1957. p. 198; ROCCO, Ugo. Derecho procesal civil. Tradução de Felipe de J. Tena. 2ª edição. Mexico: Porrua Hnos e Cia, 1944. p. 235.

585 DIDIER JR., Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria dos fatos jurídicos

processuais, cit., p. 41.

586 Art. 313, CPC/15. “Suspende-se o processo: I - pela morte ou pela perda da capacidade

processual de qualquer das partes, de seu representante legal ou de seu procurador.”

587 Art. 687, CPC/15. “A habilitação ocorre quando, por falecimento de qualquer das partes, os

andar procedimental (art. 313, VI, CPC/15588); (iii) o parentesco, que gera uma

proibição ao juiz para julgar uma demanda (art. 144, IV, CPC/15589); (iv) o decurso

do tempo, que faz gerar o direito à tramitação prioritária, em caso de idoso (art. 1.048, I, CPC/15590); (v) a calamidade pública, que resulta no direito à prorrogação de prazos processuais (art. 222, §2º, CPC/15591); (vi) a justa causa, como no caso de doença grave do advogado, que pode gerar o direito à restituição do prazo para a prática de um ato (art. 223, §2º, CPC/15592), dentre outros exemplos.

Nota-se, portanto, que os referidos eventos juridicizados, muito embora se refiram a um procedimento em curso, ocorrem fora do rito. Por isso, cumpre lembrar que, para parcela da doutrina, não poderiam receber o qualificativo da “processualidade”. Satta, por exemplo, diz que os “fatos” (ocorridos fora do procedimento, portanto) relevantes para o processo são “impropriamente” denominados “processuais”.593

Esse entendimento se funda na ideia de que o processo é um conjunto de atos e que os acontecimentos ocorridos fora da sede do procedimento só repercutem na seara processual de maneira “mediata”, é dizer, após serem “processualizados” por intermédio de um ato processual que relata o evento na sede do processo.594 Exemplificando: a morte da parte não seria um fato jurídico

processual em sentido estrito, mas, se relatada por um sujeito do processo na sede do procedimento, seria processualizada pelo ato que a descreveu.

Lembra-se, porém, que não constitui característica da fase atual do processo civil uma visão doutrinária introspectiva do fenômeno. Atribuir “processualidade” apenas ao que ocorrer na sede do procedimento parece ser resquício de uma visão interna própria da fase autonomista. Esse pensamento também sugere, bem

588 Art. 313, CPC/15. “Suspende-se o processo: [...] VI - por motivo de força maior.”

589 Art. 144, CPC/15. “Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo:

[...] IV - quando for parte no processo ele próprio, seu cônjuge ou companheiro, ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive.”

590 Art. 1.048, CPC/15. “Terão prioridade de tramitação, em qualquer juízo ou tribunal, os

procedimentos judiciais: I - em que figure como parte ou interessado pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos ou portadora de doença grave, assim compreendida qualquer das enumeradas no art. 6o, inciso XIV, da Lei no 7.713, de 22 de dezembro de 1988”.

591 Art. 222, §2º, CPC/15. “Havendo calamidade pública, o limite previsto no caput para prorrogação

de prazos poderá ser excedido.”

592 Art. 223, § 2o, CPC/15. “Verificada a justa causa, o juiz permitirá à parte a prática do ato no prazo

que lhe assinar.”

593 SATTA, Salvatore. Direito processual civil. 7ª edição. Tradução e notas de Luiz Autuori. Rio de

Janeiro, 1973. p. 228-229.

594 Nesse sentido, por todos, cf. ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto; MITIDIERO, Daniel

Francisco. Curso de processo civil: teoria geral do direito processual civil e parte geral do direito processual civil. São Paulo: Atlas S/A, 2012, v.1. p. 284-285.

alinhado à processualística, um entendimento que torna rigorosamente delimitados os planos do direito processual e do direito material, ou seja, algo bem simplista do tipo: “tudo o que ocorre fora do procedimento pertence ao direito substancial”. Parece ser uma sombra da ideologia da busca cega por autonomia didático- científica do processo, a qual ignora a tomada de fatos extraprocessuais como hipótese de incidência de normas claramente processuais.

Deveras, vê-se que há uma infinidade de acontecimentos ocorridos fora da sede do procedimento que possuem evidentes e manifestas repercussões sobre o processo. Com efeito, não parece útil – e as classificações se sustentam pelo critério da utilidade – o desprezo a esse sem-número de ocorrências, deixando de atribuir a elas o caractere da “processualidade”.595

Ademais, compreende-se que a noção de incidência automática e infalível da norma processual, que se dá no mundo dos pensamentos, não torna necessária a emissão de um enunciado protocolar denotativo escrito para constituir a “processualidade” do fato jurídico. Não se exige a emissão de uma norma concreta e individual por uma autoridade competente para a norma incidir e fazer surgir o fato jurídico processual. Essa dispensa está em consonância com a ideia contemporânea de simplificação, desburocratização do processo. O formalismo-valorativo anda nessa diretriz.

É por isso que, se um serventuário da Justiça perceber que dada demanda de um idoso foi distribuída para a sua vara sem que o pedido de tramitação prioritária tenha sido formulado, ele, por conta própria, pode tomar as medidas necessárias para agilizar a chegada dos autos até o juiz, a fim de que este proceda com a decisão, inclusive reconhecendo o direito à tramitação prioritária. Neste caso, percebe-se que o fato jurídico stricto sensu processual ocorre sem sequer haver ato processual (em sentido estrito) que relate o acontecimento biológico, levando o serventuário a agilizar o caminhar do procedimento. Com motivo, o CPC/15 garante, no §4º do art. 1.048, que “A tramitação prioritária independe de deferimento pelo órgão jurisdicional e deverá ser imediatamente concedida diante da prova da condição de beneficiário.”

Ainda nesse exemplo, lembra-se que o efeito jurídico processual advém do fato jurídico processual,596 e não da alegação da parte dentro do procedimento. Por

isso, se o juiz verificar a ocorrência do fato jurídico em sentido estrito, mesmo sem pedido da parte, ele deverá fazer-se cumprir o direito. Não é autorizado ao juiz escolher por conferir ou não a tramitação prioritária ao idoso; é dever do magistrado diligenciar para satisfazer o direito processual da parte. Nos dizeres de Fredie Didier Jr. e Pedro Nogueira, “não se trata aí de provimento discricionário, mas sim de provimento vinculado”.597 Logo, se um processo tramitar numa vara por cinco anos, vindo o litigante a chegar à terceira idade ao longo do procedimento, a prioridade deverá ser observada de pronto, por qualquer funcionário da Justiça, sem nem haver pedido nesse sentido.

Entrementes, urge ressalvar que o direito positivo pode, perfeitamente, condicionar a irradiação dos efeitos jurídicos do fato jurídico processual em sentido estrito à alegação escrita na sede do procedimento. Nesta hipótese, no suporte fático da norma processual seria inserido um elemento complementar consistente na exigência da solenidade. Veja-se, portanto, que “a questão de se saber se os efeitos processuais do fato jurídico natural são imediatos ou se dependem da alegação é um problema do direito positivo”598, podendo variar de ordenamento jurídico para

ordenamento jurídico. No estágio atual do processo civil brasileiro, tende-se a simplificar os ritos, daí a existência de fatos jurídicos processuais que irradiam seus efeitos imediatamente (sem maiores formalidades).

Sob outra ótica, é preciso lembrar que, no direito positivo contemporâneo, há normas jurídicas processuais dotadas de tamanho grau de abertura que, em razão dessa condição que apresentam, faz-se necessária a emissão de um enunciado que especifique o teor semântico a ser aplicado no caso concreto. Um exemplo é o conceito jurídico indeterminado presente no art. 223 do CPC/15 citado acima, a saber, “a justa causa”. Em verdade, se uma parte do processo deixar de recorrer dentro do prazo firmado na lei em razão de “justa causa”, o prazo poderá ser restituído a ela. Percebe-se, nitidamente, que a norma contempla a previsão do que pode ser um fato jurídico stricto sensu processual, porém, o grande problema é

596 Conforme se verá no capítulo 5, o fato jurídico processual em sentido estrito não passa pelo plano

da validade. Ao adentrar no mundo jurídico, passa direto para o plano da eficácia jurídica.

597 DIDIER JR., Fredie. NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria dos fatos jurídicos

processuais, cit., p. 44.

definir o que de concreto se encaixa no conceito aberto. O impasse requer, por óbvio, a emissão de um enunciado linguístico pelo juiz.

É preciso destacar, entretanto, que a circunstância de haver um conceito jurídico indeterminado compondo a norma jurídica processual não significa negar a incidência automática e infalível. De fato, dar margem ao aplicador do direito para que ele escolha uma dentre as opções possíveis não significa autorizá-lo a decidir como bem entender (ou arbitrariamente, num sentido negativo). Como lembra, Pedro Henrique Pedrosa Nogueira: “Ainda quando se trate de textos vagos ou ambíguos, há, indiscutivelmente, limites linguísticos para a atuação discricionária de aplicação judicial do direito, pelo menos que possibilitem pré-excluir determinadas possibilidades de eleição.”599

O julgador, quando da interpretação, precisará ater-se aos constrangimentos doutrinários que se lhe impõem, à cultura de seu tempo, às peculiaridades do local onde vive, à jurisprudência vinculante etc. Logo, nem tudo se encaixa no termo “justa causa”, havendo um prius semântico mesmo que mínimo, ante ao que, muito embora com discricionariedade (vista como possibilidade de escolha entre opções possíveis), o juiz não pode agir com arbitrariedade, no sentido de arbítrio ou autoritarismo (em desrespeito à incidência no mundo dos pensamentos).

Para ilustrar, Flávio Cheim cita um exemplo de situação fática que pode perfeitamente se encaixar na expressão “justo impedimento” ou “justa causa”: “Realmente, se existir apenas um advogado constituído pela parte e, se durante o prazo recursal, ele for acometido por uma doença grave, que o impeça de praticar qualquer ato, não há como negar que haverá justo impedimento”.600 Incidente a

norma jurídica processual sobre semelhante suporte fático, no mundo dos pensamentos, reputa-se nascido o fato jurídico processual; logo, o juiz deve emitir o enunciado linguístico apto de fazer irradiar o efeito: assinar novo prazo para a interposição do recurso.

Ante a tudo isso, torna-se evidente que a espécie “fato jurídico processual em sentido estrito” encontra perfeito espaço na atual fase do processo civil, mormente por ser fonte que irradia vastos direitos e deveres processuais. Não se concorda com Alexandre Câmara quando ele diz tratar-se de “categoria de pequena

599 NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Os limites linguísticos..., cit., p. 321.

600 CHEIM JORGE, Flávio. Teoria geral dos recursos cíveis. 7ª Ed. revista, atualizada e ampliada.

relevância prática”,601 prefere-se assumir a importância da espécie, apesar de em

grau diminuído, se feita a comparação com as demais tipologias, que têm maior âmbito de aplicabilidade, consoante se perceberá.