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PARTE I: PREMISSAS CONCEITUAIS E METODOLÓGICAS

1.4. UM PANORAMA SINTÉTICO DAS TRADICIONAIS TENTATIVAS DE

1.4.1. O fato jurídico processual segundo Giuseppe Chiovenda

Chiovenda está entre aqueles autores clássicos que, sem adotar um conceito amplo de fato jurídico processual, colocam maior enfoque nos atos jurídicos processuais.

Para o autor italiano57, “Dizem-se atos jurídicos processuais os que têm importância jurídica em respeito à relação processual, isto é, os atos que têm por consequência imediata a constituição, a conservação, o desenvolvimento, a modificação ou a definição de uma relação processual.” E ele segue: “Podem proceder de um ou de outro dos sujeitos da relação processual, a saber: a) atos de parte, b) atos dos órgãos jurisdicionais.”

Portanto, na noção chiovendiana, o conceito de ato processual (sinônimo de “ato jurídico da relação processual” e de “ato de processo”58) abarca dois elementos

(requisitos) fundamentais: primeiro, sob o aspecto da eficácia, é preciso que o ato exerça influência imediata sobre a relação jurídica processual; segundo, sob o aspecto subjetivo, é preciso que o ato seja praticado ou pelas partes ou por um dos órgãos jurisdicionais (juiz, escrivão, oficial de justiça, por exemplo).

Em consequência, há atos que, muito embora possam influir sobre o caminhar do processo ou mesmo sejam regulados por norma processual, não possuem a natureza de ato processual, por não incidirem diretamente sobre a relação jurídica do processo, a exemplo da outorga de procuração, que, segundo o autor, perfaz-se em ato preparatório; igualmente, a retirada de documento dos autos se constitui em mera atividade de fato.59

57 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil: as relações processuais a

relação processual ordinária de cognição. 3. ed. Campinas, SP: Bookseller, 2002, v. 3. p. 20.

58 Ibid. p. 20. 59 Ibid. p. 21.

Também não são considerados por Chiovenda autênticos atos de processo aqueles praticados por pessoas que não sejam sujeitos processuais no sentido próprio, como os praticados por testemunhas ou peritos, retirada de autos pelo Ministério Público e afins.60 Curiosamente, o processualista italiano, ao excluir esses atos da categoria de atos processuais, deixa de proceder com a caracterização deles, bem provavelmente para não suportar o ônus das críticas, caso os enquadrasse no campo do direito material, ou para não ter de descambar para a confecção de uma moldura própria, sui generis, que dependeria de maior criatividade.61

É preciso destacar que Chiovenda chegou a incluir os negócios jurídicos processuais como uma das espécies de atos jurídicos processuais. Para ele, essa modalidade é marcada pela circunstância de produzir efeitos que se relacionam imediatamente, por lei – e esta, na doutrina chiovendiana, deve prever de forma expressa os contornos do negócio –, com a vontade das partes. Todavia, reconheceu que, naquela época, sobre essa matéria “não se deu [...] suficiente elaboração” e aproveitou para lembrar que “designando um ato processual o caráter de negócio jurídico, nem por isso se afirmou, que o direito reconheça à vontade da parte a mesma importância que lhe pode reconhecer no direito privado”.62 Nota-se,

portanto, a extrema cautela do jurista em lidar com o assunto.

Por outro giro, registra-se que o grande processualista da Itália colocou “em confronto com os atos processuais” os denominados por ele de “simples fatos jurídicos processuais”, sobre os quais não discorreu com maior profundidade, preferindo tão-somente exemplificar com a morte da parte, a perda de capacidade, o transcurso do tempo etc.63

1.4.1.1. Breve crítica à concepção de Chiovenda

Nota-se, de plano, que Chiovenda elenca espécies processuais (atos processuais, negócios processuais e simples fatos processuais) sem grande rigor classificatório, posto não ser apresentado um conceito amplo e unificador dessas

60 Ibid. p. 21-22.

61 Essa é uma pertinente observação também feita por Calmon de Passos. Cf.: Esboço de uma

teoria das nulidades, cit., p. 44-45.

62 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições, cit., v. 3, p. 25-26. 63 Ibid. p. 22.

variadas tipologias. Por isso, o autor foca nos atos processuais, vindo a elencar critérios para atribuir processualidade a um ato, mas discorre, por exemplo, sobre os “simples fatos processuais” de maneira superficial e desconexa em relação ao conceito principal de ato processual.

No que se refere aos critérios eleitos pelo processualista, também é questionável a necessidade de que sempre haja efeito imediato do ato sobre uma relação jurídica processual para que o tal ato ganhe o revestimento de processualidade. Primeiro, porque não é de todo simples saber o que seria um “efeito imediato sobre uma relação jurídica processual”, podendo existir zonas de grande penumbra sobre se o efeito é “imediato” ou “mediato”.64 Segundo, que concentrar a definição de um conceito nos efeitos irradiados pelo objeto a ser definido não é cientificamente recomendável, pois pode culminar em tautologias do tipo: “ato processual é aquele que gera efeito imediato na relação jurídica processual” e “efeito processual é aquilo produzido pelo ato processual”.65

Além disso, não são poucos os efeitos dimanados no procedimento que, apesar de não interferirem diretamente na relação jurídica processual, são de elevada importância para o processo. Imagine a constituição de um bem de família, que, muito embora não afete de maneira direta a relação jurídica processual, indubitavelmente gera efeitos muito relevantes no procedimento, visto que o imóvel passa a ser revestido de impenhorabilidade (art. 1º, Lei n° 8.009/1990), impedindo que uma execução seja direcionada àquele bem. Fora este, outros diversos exemplos poderiam ser elencados, sendo difícil excluir tal realidade.

Só por esses elementos restritivos, Chiovenda já esvaziaria muito o espectro do que seria “processual”, mas ele também inclui a necessidade de o ato ser praticado pelos sujeitos da relação jurídica processual (partes, juiz e órgãos jurisdicionais). Assim, pelo menos dois inconvenientes também podem ser apontados: primeiro, que ao excluir atos de “terceiros” – como o depoimento de uma

64 Em vez de ligar o ato jurídico processual à relação jurídica processual, “[...] o melhor seria ligar o

fato (jurídico) processual às situações jurídicas processuais, noção mais abrangente, e da qual a relação jurídica processual, como sucede no plano da Teoria Geral do Direito, é apenas espécie.” (NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Negócios jurídicos processuais. 2ª edição revista, atualizada e ampliada. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 53.

65 Pedro Henrique Pedrosa Nogueira ainda pondera: “Há atos incontroversamente processuais que

produzem efeitos tipicamente de direito material. O despacho que ordena a citação (inegavelmente um ato processual), v.g., segundo art. 202, inciso I, do Código Civil, produz o efeito de interromper a prescrição. Não se pode, assim, afirmar que a recíproca não possa ser verdadeira: há, ao menos em tese, a possibilidade de se atribuir eficácia tipicamente processual a atos de direito material.” (NOGUEIRA, Negócios jurídicos processuais, cit., p. 54).

testemunha – do qualificativo “processual”, Chiovenda fica na difícil situação de ter de enquadrá-los em algum plano, sendo que também não são de direito material66;

segundo, que a adoção do critério chiovendiano, em especial diante da complexidade do processo civil contemporâneo (com atos praticados por um sem- número de sujeitos, ao longo da sucessão procedimental), representaria fechar os olhos para a relevância processual de vários desses atos, o que soaria anacrônico.