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PARTE I: PREMISSAS CONCEITUAIS E METODOLÓGICAS

4.4. OS TIPOS DE FATOS JURÍDICOS PROCESSUAIS CIVIS LÍCITOS À LUZ

4.4.2. O ato-fato jurídico processual civil

Com lastro na doutrina dos ponteanos do processo, o ato-fato jurídico processual civil pode ser definido como sendo um ato humano que se refere a um procedimento em curso, mas que entra no mundo jurídico como fato, porque a norma jurídica processual civil incidente sobre ele não contempla no núcleo do suporte fático a vontade do sujeito na prática do ato, isto é, a vontade é desprezada pelo direito.602 Como lembra Marcos Bernardes de Mello, o ato (atuação humana) é núcleo do suporte fático, mas “a norma jurídica o recebe como avolitivo, abstraindo dele qualquer elemento volitivo que, porventura, possa existir em sua origem”.603

Como nota histórica, o pioneirismo na identificação do ato-fato jurídico, bem provavelmente, deve-se ao brilhante brasileiro Teixeira de Freitas, muito embora não tenha ele utilizado aquela terminologia. O jurista, em seu “Esboço de Código Civil”, procedeu com uma interessante classificação dos fatos jurídicos em geral que enquadrava as ações ou omissões involuntárias na classe dos denominados “fatos humanos involuntários”.604

ˉ605 Mais tarde, Pontes de Miranda, em sede de teoria geral do direito, tendo por base as propostas taxonômicas da ciência jurídica alemã e também de Teixeira de Freitas, reelaborou a classificação dos fatos jurídicos em geral e batizou, por assim dizer, de “ato-fato jurídico” essa espécie tão peculiar que encara como irrelevante a vontade na prática do ato (ingressa como fato no mundo jurídico).

601 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 24ª edição. São Paulo: Atlas,

2013. p. 272.

602 DIDIER JR., NOGUEIRA. Teoria dos fatos jurídicos processuais, cit., p. 45.

603 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, cit., p. 168.

604 FREITAS, Augusto Teixeira de. Código Civil: Esbôço. Ministério da Justiça e Negócios Interiores,

serviço de documentação. 1952. p. 231-237 (arts. 432-437).

605 Comentando a proposta classificatória de Teixeira de Freitas, cf. RÁO, Vicente. Ato jurídico:

noção, pressupostos, elementos essenciais e acidentais. O problema do conflito entre os elementos volitivos e a declaração. 4ª edição anotada, revista e atualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 26-27.

Deveras, nem todos na doutrina reconhecem tal tipologia. Alguns tratam o ato-fato jurídico como sinônimo de um ato jurídico qualquer.606 Outros, conhecendo

a proposta ponteana, a rechaçam, como é o caso de Antônio do Passo Cabral, processualista brasileiro de escol que nega a utilidade dos denominados “atos-fatos jurídicos”, conforme se verá em tópico vindouro.

Por outro lado, observa-se haver, em sede doutrinária, muitos juristas que fazem menção aos atos-fatos processuais. Calmon de Passos607, Daniel Mitidiero608 e Marinoni609 são bons exemplos, mas há outros que se referenciam ao mesmo fenômeno, usando, contudo, signos linguísticos diferentes. Goldschmidt610, José Frederico Marques611 e Alexandre Câmara612, para mencionar alguns, usam o vocábulo “atos reais”.613 Já Calamandrei614 e Carreira Alvim615, sem usar a terminologia “atos-fatos processuais”, dão exemplos de atos jurídicos processuais que, em dadas circunstâncias, podem funcionar como “fatos jurídicos em sentido estrito” (termo que, por aqui, mais correto seria falar em “ato-fato jurídico processual”).

A particularidade dos ponteanos do processo é que eles identificam esses casos como sendo previsões de condutas humanas que o direito considera a vontade como sendo irrelevante (tomam-nos como fatos). Daí o enquadramento na

606 Lembra Marcos Bernardes de Mello que “nem a doutrina germânica, [...] nem os doutrinadores

italianos fazem, ainda, hoje, essa distinção, pois tratam como ato jurídico o ato-fato, que não tem a mesma natureza.” (MELLO, Teoria do fato jurídico: plano da existência, cit., p. 148).

607 CALMON DE PASSOS, Esboço de uma teoria das nulidades..., cit, p. 68.

608 MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória

Jurídica, 2005, t. 2. p. 14.

609 MITIDIERO, Daniel Francisco; MARINONI, Luiz Guilherme. Código de processo civil

comentado artigo por artigo. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 191.

610 O autor trata os “atos reais” como espécie de “atos do juiz”, a exemplo do fornecimento de

documentos e da devolução de documentos exibidos. GOLDSCHMIDT, James. Direito processual civil. Traduzido por Lisa Pary Scarpa. Campinas: Bookseller, 2003, tomo I. p. 346.

611 O autor trata dos “atos reais” das partes, que se caracterizam por se manifestarem re, non verbis.

Ele lembra que Carnelutti os denomina de “operações ou atos jurídicos de evento físico” e Rosenberg de “atos materiais”, como são: o oferecimento de documentos, a prestação de caução, o pagamento de custas etc. (MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil, cit., p. 418.

612 No mesmo sentido de José Frederico Marques: CÂMARA, Alexandre. Lições preliminares..., v.1,

cit., p. 276.

613 Os “atos reais” mencionados por esses autores, porém, são uma espécie de atos processuais.

Logo, não estão em alinhamento com a classificação de inspiração em Pontes de Miranda, que coloca os atos-fatos como categoria à parte.

614 CALAMANDREI, Piero. Appunti sulla sentenza come fatto giuridico. In: Opere Giuridiche a cura

di Mauro Cappelletti. Napoli: Morano, 1965, v. 1, p. 271.

615 ALVIM, J. E. Carreira. Teoria geral do processo.15ª revista e ampliada. Forense: Rio de Janeiro,

categoria do que denominam de “atos-fatos processuais”, que não se confundem com os atos processuais.

Para melhor identificar os casos, comumente se leva em conta a subclassificação dos atos-fatos processuais com base no critério dos efeitos.616 Por isso, no processo civil podem haver: (a) atos-fatos processuais civis reais, como o caso do adiantamento de custas e de preparo (art. 1.007, caput, CPC/15617); b) atos- fatos processuais civis caducificantes, como a perempção (art. 486, §3º, CPC/15618),

a revelia (art. 344, CPC/15619), a admissão (art. 341, caput, CPC/15620) e as perdas de prazo em geral; c) atos-fatos processuais indenizativos, como a execução provisória que prejudicou o executado e cujo título veio a ser reformado ou anulado posteriormente (art. 520, I, CPC/15621), a antecipação da tutela ou a medida cautelar que tenha causado prejuízo àquele que sofreu os efeitos dos provimentos e que foi revogada depois (art. 519622 e art. 302, I, CPC/15623).

Além dessas espécies, bem citadas pela doutrina, ainda se faz pertinente incluir, os (d) atos-fatos processuais civis autorizantes, como é a decisão que condena o réu à prestação em dinheiro, dando ao autor (efeito anexo) o direito de constituir hipoteca judiciária (art. 495, caput, CPC/15624), e (e) os atos-fatos

processuais civis invalidantes, como é a decisão do STF que declara a

inconstitucionalidade de lei a qual fora aplicada em sentença judicial de órgão

616 Cf. tópico 4.2.

617 Art. 1.007, CPC/15. “No ato de interposição do recurso, o recorrente comprovará, quando exigido

pela legislação pertinente, o respectivo preparo, inclusive porte de remessa e de retorno, sob pena de deserção.”

618 Art. 486, §3º, CPC/15. “Se o autor der causa, por 3 (três) vezes, a sentença fundada em abandono

da causa, não poderá propor nova ação contra o réu com o mesmo objeto, ficando-lhe ressalvada, entretanto, a possibilidade de alegar em defesa o seu direito.”

619 Art. 344, CPC/15. “Se o réu não contestar a ação, será considerado revel e presumir-se-ão

verdadeiras as alegações de fato formuladas pelo autor.”

620 Art. 341, caput, CPC/15. “Incumbe também ao réu manifestar-se precisamente sobre as

alegações de fato constantes da petição inicial, presumindo-se verdadeiras as não impugnadas, salvo se: [...].”

621 Art. 520, inciso I, CPC/15. “Art. 520. O cumprimento provisório da sentença impugnada por

recurso desprovido de efeito suspensivo será realizado da mesma forma que o cumprimento definitivo, sujeitando-se ao seguinte regime: I - corre por iniciativa e responsabilidade do exequente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido;

622 Art. 519, CPC/15. “Art. 519. Aplicam-se as disposições relativas ao cumprimento da sentença,

provisório ou definitivo, e à liquidação, no que couber, às decisões que concederem tutela provisória.”

623 Art. 302, inciso I, CPC/15. “Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a

parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se: I - a sentença lhe for desfavorável [...].”

624 Art. 495, caput, CPC/15. “A decisão que condenar o réu ao pagamento de prestação consistente

em dinheiro e a que determinar a conversão de prestação de fazer, de não fazer ou de dar coisa em prestação pecuniária valerão como título constitutivo de hipoteca judiciária.”