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O fato jurídico processual na concepção de J Calmon de Passos

PARTE I: PREMISSAS CONCEITUAIS E METODOLÓGICAS

1.4. UM PANORAMA SINTÉTICO DAS TRADICIONAIS TENTATIVAS DE

1.4.4. O fato jurídico processual na concepção de J Calmon de Passos

Muito interessante é a abordagem feita por Calmon de Passos em seu clássico “Esboço de uma teoria das nulidades”. Nesta obra, o jurista baiano faz uma profunda análise sobre a ideia de “atos processuais”, mas não adota o conceito amplo de “fato jurídico processual”, até porque entende que, no processo, “somente são possíveis atos”, isto é, “fatos do homem” (com vontade humana). “Os acontecimentos naturais com eventual influência sobre a relação processual verificam-se fora do processo.”83 Por isso, ele diz, “Os fatos naturais, em verdade, podem ser apenas objeto de atos processuais e são a estes que se associam os efeitos jurídicos, e não àqueles.”84

Nota-se, portanto, que Calmon de Passos reputa indispensável, para a processualidade, a (i) pertinência ao processo (a sede). Entretanto, diferindo de Satta, o jurista brasileiro ainda inclui outros três requisitos para um ato ser considerado processual, a saber, (ii) ser praticado pelos sujeitos da relação processual ou do processo, (iii) ter eficácia no processo e (iv) poder ser praticado apenas no processo. Daí a definição conceitual que ele oferece: ato processual é “aquele que é praticado no processo, pelos sujeitos da relação processual ou do processo, com eficácia no processo e que somente no processo pode ser praticado.”85ˉ86

83 CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Esboço, cit., p. 64

84 Ibid. p. 65. 85 Ibid. p. 53.

86 “Há, como se nota, pontos de aproximação e pontos de distanciamento entre as concepções de

Calmon de Passos e as de Chiovenda, Liebman e Satta.” (NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Negócios jurídicos processuais. 2ª edição revista, atualizada e ampliada. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 47).

É preciso chamar a atenção para o fato de que Calmon de Passos não restringiu a prática de atos processuais aos sujeitos da relação processual (sentido estrito), como fez Chiovenda, por exemplo. O jurista brasileiro, bem diversamente, reconheceu que a atividade processual – vista como aquela que é regulada pelo direito processual e que se desenvolve no procedimento – é de “todos quantos exercitam no processo, a qualquer título, direitos, poderes, faculdades, funções ou atendem a deveres e obrigações que lhe foram por lei atribuídos”.87 Por isso, é sem nexo, dentro desta concepção, não caracterizar os atos praticados por testemunhas, peritos e afins como processuais.88

Ao se pronunciar sobre atos como a eleição de foro, a outorga de procuração

ad judicia, a morte da parte, a transação extrajudicial, o pagamento, a prorrogação

da competência e a cláusula compromissória, para dar alguns exemplos, o processualista da Bahia reconheceu a existência de atos praticados (ou fatos ocorridos) fora do procedimento que têm importantíssimos efeitos processuais, mesmo sendo de direito material. Ocorrendo fora do processo, tais acontecimentos só seriam processualizados mediante um ato ocorrido dento do processo, como na homologação de uma transação, na dedução de exceção de compromisso, ou na exceção de pagamento.89

Por outro giro, destaca-se que, apesar de não reconhecer a existência de fatos processuais, dada a circunstância de os acontecimentos naturais se situarem fora do processo, Calmon de Passos admitiu a existência dos denominados “atos- fatos processuais”, isto é, atos que o direito trata como se meros fatos fossem, por abstrair qualquer indagação a respeito da vontade do agente que o realizou, e que são praticados no procedimento, com eficácia sobre o processo. Ele exemplifica com o recolhimento de preparo de um recurso, caso em que o direito torna como desimportante a circunstância de saber quem praticou o ato (quem efetivamente pagou a guia de recolhimento) ou se houve a intenção na prática do ato.90

Falando-se a respeito da vontade, o ilustre processualista adentra no tema dos negócios jurídicos processuais, deixando transparecer, num primeiro momento, uma posição contrária a esse instituto. Entretanto, diante da literalidade do art. 158

87 CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Esboço, cit., p. 45.

88 Portanto, a expressão “sujeitos do processo”, num sentido amplo, englobaria tanto os sujeitos da

relação jurídica processual (em sentido estrito), que são aqueles indicados por Chiovenda alhures, quanto qualquer pessoa que, de alguma forma, desenvolva alguma atividade no processo.

89 CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Esboço, cit., p. 45-52.

do CPC/7391, acaba por admitir a existência de lídimos negócios jurídicos

processuais, ao menos de forma excepcional, quando o direito reputar como relevantes tanto a vontade do ato como a vontade do resultado. É o caso, por exemplo, da desistência da ação ou do recurso, da suspensão do processo por acordo das partes etc. Mesmo nessas hipóteses, porém, Calmon de Passos impõe rígidas condições, como a exigência de que sejam praticados na sede do processo (requisito intrínseco à definição conceitual de ato processual do jurista) e que sejam homologados pelo juiz.92

Por fim, é necessário consignar que foi o referido jurista baiano quem, pela primeira vez, colocou como requisito da processualidade de um ato a exigência de que ele possa ser praticado apenas no processo. Nesse sentido, ele inovou com sua definição conceitual, tendo sido seguido por alguns processualistas, como Juliana Demarchi93 e Sandro Gilbert Martins94.

1.4.4.1. Breve crítica à concepção de Calmon de Passos

Deveras, Calmon de Passos sofisticou o pensamento de Satta, de Liebman e de Chiovenda, combinando critérios e dando leitura mais abrangente a cada um deles, inclusive com o acréscimo de mais uma nota definidora ao conceito. Todavia, também a concepção do jurista baiano é passível de críticas.

Percebe-se que a atitude de Calmon de Passos no sentido de negar a existência de fatos processuais stricto sensu – por entender que um fato só se processualiza mediante um ato praticado na sede do procedimento – representa reduzir o direito processual a um ato de aplicação pela autoridade competente, mediante a emissão de um enunciado protocolar denotativo, ou, em termo simples, significa reduzir o direito processual à linguagem escrita. Tal realidade se mostra ainda mais radicalizada na doutrina do jurista da Bahia, diga-se de passagem,

91 Art. 158, CPC/73. “Os atos das partes consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de

vontade produzem imediatamente a constituição, modificação ou extinção de direitos processuais.”

92 CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Esboço, cit., p. 69.

93 Cf.: DEMARCHI, Juliana. Ato processual juridicamente inexistente – mecanismos predispostos pelo

sistema para declaração de inexistência jurídica. In: Revista Dialética de Direito Processual, nº 13. São Paulo: Dialética, abril/ 2004, p. 46.

94 O autor indicado, como diferença, acrescentou à definição de Calmon de Passos o requisito de que

o ato integre o procedimento, para ser qualificado como processual. Cf.: MARTINS, Sandro Gilbert. Processo, procedimento e ato processual: o plano da eficácia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 18.

porque ele também diz que para ser processual o ato tem de ter a característica de só poder ser praticado no procedimento.

Entretanto, não parece que o processo civil contemporâneo se alinhe ao perfil do formalismo em excesso preconizado. Não soa muito útil, nos dias de hoje, dizer que a morte de uma das partes, enquanto fato, não é fenômeno processual, vindo a ser processualizada, apenas, quando o acontecimento for relatado nos autos do processo.

Diversas são as normas jurídicas processuais que incidem sem que sequer sejam reduzidas à linguagem competente (ato formal). Para citar um exemplo interessante, lembra-se da regra autorizadora para que as partes gravem a audiência de instrução e julgamento (art. 367, §6º, CPC/1595). Ora, se há um direito, é porque há um fato jurídico anterior; na verdade, trata-se de um ato-fato processual (conceito a ser analisado futuramente) consistente em “estar presente na audiência de instrução e julgamento”. Com efeito, antes mesmo de ser elaborada a ata, a parte já pode iniciar a gravação, o que evidencia o surgimento de um direito oriundo de um ato-fato processual não reduzido à linguagem.

Assim, dizer que um ato ou um fato foi processualizado apenas quando reduzido à linguagem escrita na sede do procedimento – que é, grosso modo, o que Calmon de Passos defende quanto aos fatos – significa desconsiderar a regra do art. 188 do CPC/1596, também presente no CPC/73 (art. 154), que apregoa a

liberdade de formas dos atos processuais. Trata-se, portanto, de uma postura anacrônica, em descompasso com os tempos presentes.

Soma-se a essa crítica, aquela referida quanto ao problema de colocar na definição conceitual de um dado objeto os efeitos que dele dimanam. Calmon de Passos também caiu nesse inconveniente “andar em círculo” (tautologia).