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3. O mentor da reforma administrativa de 1867

3.4. A influência do Krausismo na atividade académica e política de Martens

Martens Ferrão enquanto docente da Universidade de Coimbra foi influenciado pela filosofia de Krause69. O Krausismo do tipo português, como corrente de pensamento, desenvolveu-se, sobretudo, na área de filosofia de Direito da Universidade de Coimbra70. Esta corrente de pensamento foi fundamentalmente um movimento de tipo académico que surgiu nessa universidade, o qual influenciou e inspirou reformas sociais, económicas, legislativas e também obras literárias. A expansão dessa corrente nasceu da necessidade de uma nova dinâmica social que pretendia corresponder aos anseios dos homens da Regeneração, e proporcionar uma marco legal e político à burguesia. No círculo de intelectuais que absorveram esta corrente havia a consciência

67 Para mais informações sobre a Concordata de 1886 veja-se: Vítor Neto, O Estado, a Igreja e a Sociedade em Portugal

(1832-1911), Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998, pp. 160-164.

68 O Grande Livro dos Portugueses, 4000 Personagens em Texto e Imagem, Nomes, Datas, Factos com 980 Ilustrações,

Lisboa, Círculo de Leitores, 1991, p. 212.

69 As três figuras mais relevantes do movimento Krausista português, influenciados pela escola Krausista francesa, na sua

dimensão filosófica-jurídica foram: Vicente Ferrer Neto Paiva, José Dias Ferreira e J.M Rodrigues de Brito, segundo Clara Calheiros.

70 O iniciador desta corrente filosófica foi Vicente Ferrer de Neto, quando traduziu o «Curso de Direito Natural» de

Ahrens, e graças aos seus discípulos foi possível haver continuadores. Veja-se: António Braz Teixeira, Presença de Ferrer na

Escola do Recife?, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – STVDIA IVRIDICA 45, Vicente Ferrer Neto Paiva, no segundo centenário do seu nascimento, convocação do Krausismo, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pp. 82-96.

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de que era preciso levar a cabo uma reforma social que favorecesse uma nova organização social e política de acordo com os novos tempos e com a ascensão da burguesia.

O respeitado docente e político absorveu as ideias Krausistas, principalmente, o individualismo feroz e conquistador e a ideia de solidariedade71. Tem uma conceção organicista da sociedade, defendeu uma associação livre das classes trabalhadoras, num contexto de um Estado de moldes corporativistas72. Esta visão organicista da sociedade tem fundamentação no Direito, baseada na compreensão do homem englobada numa visão panteísta do mundo. Nesta visão é reconhecida uma natureza social, sendo condenado o socialismo, comunismo e o utilitarismo. Porventura, defende uma visão do mal como simples ausência do bem.

O seu pensamento está expresso nos seus escritos. A primeira parte da sua dissertação, Teoria do Homem e da Humanidade, consiste numa filosofia da história num sentido Krausista, distinguido na história da humanidade três períodos, unidade, oposição e harmonia73. Parte do princípio de que a consciência não aparece distintamente no homem até que este alcança um desenvolvimento total das suas faculdades naturais, e então a variedade dessas manifestações torna uma nova unidade. Nesse momento surge a filosofia como expressão deste passo de variedade a uma unidade orgânica mais elevada, que se chama harmonia universal. Na segunda e terceira parte trata de questões de economia, da organização da indústria, da instituição, da propriedade, e da organização social. A propriedade é considerada um direito legítimo, fundada ao mesmo tempo no trabalho e na natureza humana. Para justificar esta conceção recorre a uma descrição do direito, segundo a qual o direito é o complexo de condições necessárias para o homem poder realizar o seu percurso. Uma dessas condições consiste na possibilidade do homem ter de atuar sobre a matéria e transformá- la pelo meio do trabalho, apropriando-se do respetivo fruto. Ferrão afirma o caráter social da propriedade e formula a teoria do abuso do direito, segundo a qual condena a possibilidade de destruir as coisas que são propriedade individual.

A sociedade seria como um organismo formado por esferas sociais autónomas e desempenhariam o papel correspondente aos órgãos dentro de um organismo, sendo as

71 Veja-se Cabral de Moncada, Subsídios para uma História da Filosofia de Direito em Portugal, 1772-1911, 2ª ed.,

Coimbra, Coimbra Editora, 1938, p. 65.

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Maria Clara Calheiros, A Filosofia Jurídico-Política do Krausismo Português, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006, pp. 137-138.

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principais: a família, a comunidade, a província e a nação. O papel do Estado consistia, precisamente, em coordenar esses grupos ou esferas, em respeitar a individualidade e a autonomia dos mesmos, em abster-se de intervir na sua organização interior e limitar-se a moderar as condições externas que permitam o desenvolvimento, sobretudo, a individualidade e o individualismo, raízes e fonte do progresso.

Ferrão, como os Krausistas insiste particularmente nas chamadas associações de finalidade universal; a família e a nação, propondo uma federação livre a todos os povos. A esse ideal de associação livre chegar-se-ia a partir de uma reforma gradual que permitiria introduzir o modelo capitalista. Um novo tipo de concorrência entre as associações que trabalham com a finalidade de seguir uma economia orgânica, num tipo de organização industrial baseado na colaboração entre o capital e o trabalho. A colaboração entre o capital e o trabalho, segundo Ferrão, consiste em converter o assalariado em sócio da indústria e comparticipe dos benefícios da empresa, diminuindo assim a enorme desproporção existente entre a retribuição do trabalho assalariado e a do capital, pois o valor que ultrapassa a justa retribuição do capital deveria pertencer simultaneamente aos operários e aos empresários em proporção à parte de trabalho e de capital com que cada um deles concorre na empresa. Deste modo, conseguia-se deixar que o operário fosse um simples servo do capital e passasse a ser um sócio da indústria.

O Código Penal de 1852 recebeu duras críticas de Ferrão, por isso, foi integrado numa Comissão que se propôs rever esse Código Penal. Os comentários de Martens Ferrão continuam a ter interesse histórico, tendo algumas raízes no Código de 1852. A obra de Ferrão sobre o direito penal incide na análise comparativa de princípios e leis criminais portuguesas e estrangeiras. A obra Theoria do Direito Penal, […] de 185674, consiste num comentário ao Código Criminal Português de 1852 (primeiro Código Penal)75. Nessa obra podemos absorver o pensamento de Ferrão relativamente à forma como deve a justiça ser aplicada na sociedade. Logo na introdução, refere que deve ser um livro aberto para ser consultado pelos cidadãos, com a finalidade de se instruírem dos seus deveres sociais e, por outro, com a instrução adquirida poderem afastar-se do mal e de todo o crime. Em suma, o cidadão deve conhecer a ordem social, estabelecendo uma postura correta na sociedade de modo a mantê-la. Esta codificação

74 Martens Ferrão, Theoria do Direito Penal applicada ao Código Penal Portuguez, comparado com o Código do Brasil

[…], 8 volumes, Lisboa, Tipografia Universal, 1856.

75 Teresa Beleza, Direito Penal, vol. I, 2ª ed., Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1998, p.

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classifica os crimes, referindo também as condenações e as penalizações adequadas. Ferrão debruça-se igualmente sobre os crimes contra a religião do reino e os cometidos por abuso de funções religiosas. Para não tornar esta exposição demasiado extensa vamos destacar apenas duas leis: a grande importância dada por Ferrão aos crimes cometidos por abuso de funções, que ofendem os interesses do Estado, nos quais as penas são pesadíssimas (a atentado e ofensas contra o rei ou a rainha é aplicada a pena de morte, em caso de rebelião contra a segurança interna do Estado é aplicada a prisão perpétua); e também aos crimes religiosos, porque considera o autor que, a “Igreja existe no Estado e não o Estado na Igreja”76.

No meio jurídico, o movimento do Krausismo influenciou Martens Ferrão, teve consequências assinaláveis no desenvolvimento das teorias de coação ao nível do direito penal, com a abolição da pena de morte, ao nível do direito civil na conceção da propriedade, do instituto do abuso de direito, e na sobrevivência de uma fórmula justa naturalista na definição dos mecanismos de integração das lacunas. A lei de 1867, que declara abolida a pena de morte para crime comuns, dado que para crimes políticos já tinha sido abolida77.

Traçamos de uma forma sumária alguns aspetos da sua biografia, no qual foi possível averiguar a importância que tiveram na sua obra política as influências ideológicas que recebeu durante a sua formação académica como aluno e docente da Universidade de Coimbra. A sua visão para moldar a sociedade está expresso na reforma administrativa de 1867 que projetou. Martens Ferrão distinguiu-se de facto pela sua capacidade de elaborar para a sociedade reformas que pretendiam modificar o panorama jurídico-social, económico e político.