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II. FUNCIONAMENTOS DISCURSIVOS DOS GÊNEROS: DEBATE POLÍTICO,

2.3. Comunicação em eventos científicos

2.3.5. A instância do outro

[27]

Pq- (...) então vejam... tanto nos PCNs quanto noutras tentativas por exemplo de autores de livros didáticos tanto de professores na sala de aula... esse momento de convivência entre tendências mais discursivas... mais enunciativas de de trabalho com os recursos lingüísticos no texto... como seus valores é::.. seus efeitos de sentido enfim... e por outro lado... uma outra tendência que é ainda muito calcada no saber da gramática tradicional... e ainda também aquele trabalho que se faz numa linha formalista e classificatória... eu não não... diria que esse é o grande defeito da concepção de análise lingüística... da proposta de análise lingüística nos PCNs... eu acho que esse é o nosso grande problema... é a no/é a grande questão que nós temos por resolver...

(CE, F24A, T25) [28]

Pq- (...) antigamente o livro grama/o livro era a maior autoria gramatical... agora é uma auto ajuda da cidadania além ((risos) é verdade... ( ) de auto-ajuda... esse é o grande problema... vocês vão ver... o ensino transversal assumiu um papel muito forte de/central no ensino de língua... veja... “exercício da cidadania...” ((lendo trechos extraídos dos PCNs))... só que para fazer isso é preciso saber qual é a língua...

(CE, F24B, T27) [29]

Pq- (...) é preciso que nós saibamos antes de mais nada conhecer bem o nosso objeto de estudo que apresenta... já faz parte de uma ciência ... que até se diz no plural ciências da linguagem... então precisamos saber qual é o seu objeto próprio... qual é a sua extensão... até onde vai a sua preocupação e quando começam as preocupações de disciplinas correlatas....

(CE, F24A, T26) De acordo com Osakabe (op. cit.), no discurso político-militante o ouvinte é situado num plano de decisão prática da ação política - a ação do voto-, ao passo que, no discurso teórico, o ouvinte é situado como ouvinte pensante, por isso mesmo não há, nesse tipo de discurso, uma solicitação de uma atitude concreta do ouvinte, mas uma solicitação de engajamento no sentido da adesão (o que não elimina uma ação prática, apenas elimina o âmbito do seu alcance, observa o autor). Como assinala Bakhtin (1953: 324): O estilo chamado neutro ou objetivo, o estilo das exposições concentradas no seu objeto e que, ao que parece, deveriam ignorar

o ‘outro’, não deixa de implicar certa idéia do destinatário. Essa injunção ao outro, como forma de engajamento do interlocutor numa certa reflexão ou concepção teórica, ao mesmo tempo que reflete uma concepção de interlocutor, pode ser observada nos recortes [27], [28] e [29].

Se, por um lado, o discurso teórico se configura como um discurso em que os dados falam por si, por outro, percebe-se não só a presença implícita ou explícita do locutor, como já constatamos, mas também o apelo direto ou indireto ao interlocutor, evidenciando a relação intersubjetiva ente o pesquisador e o público a quem se destinam os resultados da pesquisa - prova de que não há discurso desprovido de subjetividade, ainda que ele se constitua sob a negação da própria subjetividade.

Em [27], a solicitação direta do interlocutor é feita pelo imperativo do verbo ‘ver’ e pelos pronomes ‘nosso’ e ‘nós’. O verbo ‘ver’ funciona como um apelo direto ao interlocutor, no sentido de orientá-lo em relação aos dados, ou seja, o locutor é chamado a olhar na mesma direção que o pesquisador, a ver que o ensino da língua se desenvolve, em diferente instâncias, centrado, por um lado, em bases enunciativas e, por outro, na gramática tradicional (então

vejam...

tanto nos PCNs quanto noutras tentativas por exemplo de autores de livros didáticos tanto de professores na sala de aula... esse momento de convivência entre tendências mais discursivas... (...) e por outro lado... uma outra tendência que é ainda muito calcada no saber da gramática tradicional...). O locutor é instado a olhar nessa direção, a conferir a verdade objetiva expressa pelos dados. No entanto, observam-se duas formas distintas de convocar o outro: em [27], quando o locutor mostra a análise lingüística adotada pelos PCNs não como um erro, mas como um problema que nós temos que resolver, o interlocutor é chamado para a enunciação como pesquisador. Nesse sentido, o problema envolve locutor e interlocutor e, por essa via, é chamado a resolver problemas de linguagem; em [28], a presença do interlocutor como a outra

instância da enunciação é convocada pelo pronome ‘vocês’ e também pelo imperativo atenuado do verbo ‘ver’ na forma de uma perífrase verbal que expressa futuro certo (... vocês vão ver... o ensino transversal assumiu um papel muito forte de/central no ensino de língua..; veja... “exercício de cidadania”.). Nesse caso, o locutor, parece ser chamado à condição de espectador dos resultados a que o locutor chegou em sua pesquisa. Num trabalho em que o pesquisador se propõe a refletir e discutir sobre a relação entre gramática e discurso, nos PCNs, os dados são apresentados ao interlocutor como provas das conclusões a que o locutor chegou. Também aí se impõe a necessidade de se recorrer aos dados para validar pontos de vista.

Ainda no recorte [28] é interessante atentar para a gradação com que se dispõe a inserção do interlocutor na argumentação do pesquisador. Num primeiro momento, o interlocutor é inserido na cena enunciativa pelo pronome ‘você’ e, assim é convocado a realizar uma ação futura (vão ver), o que coloca o interlocutor no plano da expectativa. Note-se que até aí o discurso se funda em apreciações, pontos de vista do pesquisador (o ensino transversal assumiu um papel

muito forte

). No entanto, o interlocutor é também convocado pela forma imperativa (veja...). Esse chamamento agora orienta o interlocutor diretamente para os dados concretos (“exercício da cidadania...” ((lendo trechos extraídos dos PCNs...)). No primeiro caso, o interlocutor é colocado no plano da expectativa, a partir de condições criadas pelo locutor para encaminhar sentidos que têm como referente o objeto de pesquisa. A culminância desse ato ocorre quando o pesquisador confronta o interlocutor com os próprios dados da pesquisa ao fazer a leitura de trechos dos PCNs.

Em [29] a presença do interlocutor, sinalizada pelo pronome ‘nós’, se confunde com a instância do próprio locutor, configurando-se como uma estratégia discursiva própria do discurso teórico que tanto pode esconder como

mostrar, nesse jogo, a presença dos interlocutores. Coracini (op. cit.) observa que a presença do enunciatário ou o apelo ao mesmo, no discurso científico, manifesta- se, em alguns casos, através de formas imperativas, no entanto, ao lado dessas, verifica-se a presença do pronome ‘nós’ e da partícula ‘se’, funcionando como neutralizadora da força pragmática do modo imperativo.

No caso do recorte [29], pode-se também notar a presença dos pronomes ‘nós’ e ‘nosso’ funcionando como mecanismo de inclusão do interlocutor (é preciso que

nós

saibamos antes de mais nada conhecer bem o

nosso

objeto de estudo), e, na seqüência enunciativa, observa-se também a presença da partícula ‘se’ que tem a forma de indeterminação que pode produzir o efeito de sentido de distanciamento ou não do locutor em relação à sua enunciação (que até

se

diz no plural ciências da linguagem...).

A descrição do funcionamento de algumas regras desse gênero, permite-nos perceber que, pertencendo ao discurso teórico ou científico, a comunicação em evento traz marcas que sinalizam uma certa regularidade desse gênero: como todo discurso científico, caracteriza-se por um jogo de simulação da ausência das instâncias da enunciação (locutor e interlocutor), num processo em que os dados é que falam por si mesmos, o pesquisador é chamado apenas a observar, constatar e comprovar. Nesse mesmo jogo, porém, o sujeito que enuncia não se mantém fora da enunciação, ao mesmo tempo que tenta envolver o seu interlocutor. Assim, ambos são introduzidos na enunciação, emitindo pontos de vistas, julgando, fazendo opções teóricas, etc.

No decorrer das descrições dos gêneros debate, reunião e evento científico, tentamos identificar o que é hegemônico em cada um desses gêneros discursivos. Nessa busca do que é hegemônico em cada gênero foi possível perceber que na universidade há uma valorização tão alta do conhecimento que a posição do locutor que sabe e que domina o conhecimento está sempre na mão do professor.

Por exemplo, no debate político o conhecimento é que favorece ou mesmo define a competência. Por isso mesmo não se discute o conhecimento, mas a competência administrativa. Da mesma forma, na reunião, o administrador exerce condições de poder mostrando aos seus interlocutores que conhece os trâmites burocráticos. O evento científico, por fim, se revela como o lugar, por excelência, da valorização desse conhecimento, uma vez que esse gênero se organiza de tal forma que venha a atender à finalidade do discurso científico.

Pensando nessa valorização do conhecimento que perpassa os três gêneros analisados, orientados pela suposição de que o gênero aula se constitui pela relação assimétrica entre um saber e um não-saber, dedicaremos um capítulo específico a esse gênero que muito poderá nos revelar dessa assimetria mediada por essa relação. Ou seja, tendo em vista a idéia de que a universidade se configura como o lugar da assimetria, como esta se revela nos processos de interação na sala de aula, considerando que o professor é tradicionalmente um lugar de suposto-saber e o aluno um lugar de suposto-não-saber? Passemos, então, à análise e descrição do funcionamento discursivo da aula universitária32.

32 Não podemos deixar de mencionar trabalhos – com enfoques e perspectivas distintas da nossa - já desenvolvidos com base em análises de aulas universitárias, tais como Veiga et al. (2000), Amaral (2000), Lima (2000) Castanho (2000), cujo foco é a dinâmica da sala de aula propriamente dita (criatividade na prática pedagógica, experiências interdisciplinares, etc.) como possibilidade de redimensionamento da