• Nenhum resultado encontrado

I. A INSTITUIÇÃO UNIVERSITÁRIA E A CIRCULAÇÃO DE DIFERENTES

1.2. Gêneros discursivos: o trabalho do sujeito, instâncias discursivas, regularização das falas

1.2.2. Gêneros discursivos e o trabalho do sujeito

A idéia de que gêneros discursivos são constituídos nas práticas sociais sugere que a situação de enunciação não é algo que se acrescenta à língua, mas algo que condiciona a organização da língua e, portanto, a historiciza. Assim sendo, a linguagem enquanto lugar de constituição do sujeito depende de aspectos sociais, interacionais, dialógicos, cognitivos, de modo que cada palavra é definida a partir de práticas sociais situadas. Como propõe Maingueneau (1987), o espaço de enunciação supõe sempre um grupo social específico, não se tratando, portanto, de um suporte contingente, ou seja, os sentidos são produzidos pela relação

indissociável entre o modo de existência dos grupos sociais e o gênero que verbaliza a vida social desses grupos. Assim, o gênero discursivo funciona como a outra face das atividades sociais, admitindo, portanto, uma reversibilidade entre grupos sociais e práticas discursivas.

A idéia de que gêneros discursivos são formas derivadas de certas atividades específicas para cada uma das distintas esferas sociais poderia levar a pensar numa relação mecanicista entre atividade e gênero discursivo, indiferente a qualquer investida do sujeito. No entanto, em sua teoria de gêneros discursivos, Bakhtin considera que o locutor, sempre orientado por uma concepção de seu projeto discursivo (querer-dizer), faz a escolha do estilo característico de um gênero específico. Por outro lado, uma vez inscrito no gênero, o sujeito exerce um trabalho que se configura como possibilidade de emergência do estilo individual, o que nos leva a compreender que os sujeitos se constituem na linguagem e também que eles produzem nas práticas que os constituem. Equivale a dizer que o sujeito ao se constituir na relação com a linguagem, orientado por constrições históricas, exerce, por dentro, como admite Certeau (1990), um certo trabalho que o tira da condição de ser totalmente passivo na relação com a linguagem e com a história. Por essa perspectiva, garante-se o espaço de ação do sujeito no interior do próprio gênero discursivo, uma ação que, embora sob as coerções genéricas, revela que o sujeito, orientado por um projeto de dizer, recorre a estratégias discursivas porque o outro no processo de interação a ele não é indiferente, pois é em relação ao outro que o locutor assume posições, singularizando modos de encaminhar o seu projeto discursivo. Sendo assim, o projeto discursivo inclui a posição do sujeito que enuncia a qual orienta todo um jogo imaginário que, por sua vez, impõe ao sujeito certas escolhas. Nesse sentido, se por um lado o jogo de imagem determina a opção do locutor por determinadas formas, por outro, esse jogo de

imagem é constituído pelo estilo empregado (Possenti, 1981). Nas palavras de Abaurre et al (2003).:

O estilo, entendido como a seleção dos recursos lingüísticos feita a partir das possibilidades oferecidas pela língua, não pode, portanto, ser estudado independentemente do gênero do discurso. Finalmente, tanto a escolha dos gêneros como a escolha do estilo do enunciado (ou seja, dos recursos lingüísticos) são decorrência da assunção de que cada enunciado tem autor e destinatário (Abaurre et al., op. cit., p. 309).

Ainda que o sujeito sofra constrições históricas que determinam posições, é na situação de enunciação concreta que o locutor é orientado a certas ‘escolhas’ dos recursos expressivos adequados para levar adiante a sua empreitada discursiva, tendo sempre em vista o outro de onde precede e para onde se encaminha o seu discurso. É pela expectativa em relação à réplica do outro que o locutor adota certas formas de encaminhar a compreensão do interlocutor, o que se materializa como marcas do trabalho criativo do sujeito, ou seja, o locutor/autor ao escolher uma certa configuração16 para o seu texto, “desescolhe” outras, e em certa medida,

compromete-se com as estratégias escolhidas (Geraldi, 1991:184).

Dessa perspectiva, o trabalho do sujeito, na sua relação com a história e a linguagem, na dinâmica interlocutiva, pode singularizar sentidos não previstos, e até mesmo desterritorializar sentidos para dar origem a novos sentidos. Do nosso ponto de vista, reside nesse lugar a novidade imprevisível que garante aos sujeitos e à linguagem deslocamentos históricos. Nas palavras de Souza-e-Silva (2003):

16 O termo ‘configurações’ empregado por Geraldi (1991:184) equivale a gêneros. O autor explicita que a opção por ‘configuração textual’ e não por ‘estrutura’, deve-se ao fato de que: i) o conjunto de configurações não é fixo, com regras obrigatoriamente a serem seguidas; ii) estas configurações não são impermeáveis entre si, de modo que as configurações de um texto não possam cruzar com as de outro(s).

O estilo é antes de tudo a transformação dos gêneros na história real das atividades, no momento de agir, em função das circunstâncias. Aqueles que agem devem poder jogar com o gênero, mais rigorosamente, com as diferenças variantes que animam a vida do gênero. Os gêneros conservam-se vivos graças às recriações estilísticas. Mas inversamente, o não domínio do gênero e de suas variantes impede a elaboração do estilo (Souza-e- Silva, op. cit., p. 347).

Da leitura que fizemos do conceito de gênero formulado por Bakhtin, pontuamos as seguintes questões que devem funcionar como pressupostos básicos para este estudo:

(a) O discurso não se constitui no vácuo, livre das coerções de um gênero discursivo. Por isso, um discurso só é validado como tal à medida que esteja ancorado em uma memória social que o tornou possível, o que, necessariamente, envolve um projeto discursivo que tem como contrapartida a contrapalavra de quem ouve ou lê.

(b) Os gêneros discursivos não são formas cristalizadas à disposição do sujeito para adequá-las ao seu dizer, ou seja, não são um dado a priori ao qual o sujeito recorre para adequar o que fala ou escreve. É na imbricação de práticas sociais e fazer textual que os gêneros se constituem, por isso mesmo, um mesmo modo de dizer em contextos sócio-discursivos distintos produz sentidos também distintos.

(c) O fato de todo texto estar sujeito às coerções de um certo gênero do discurso não significa que o sujeito renuncie à sua singularidade. Daí porque é possível identificar em textos pertencentes a um mesmo gênero discursivo marcas que refletem a singularização do sujeito. Ao mesmo tempo que o discurso precisa

estar inscrito na história do passado para fazer sentido, ele se projeta numa história do futuro, e nesse movimento de projeção sobressaem-se traços de singularidade daquele que fala/escreve, num gesto de inscrição de sua participação ativa.