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II. FUNCIONAMENTOS DISCURSIVOS DOS GÊNEROS: DEBATE POLÍTICO,

2.3. Comunicação em eventos científicos

2.3.3. O ponto de vista e o dado

Constatamos, com muita freqüência, nos dados referentes a comunicação em eventos, que quase sempre que o locutor se ‘mostra’ no enunciado que produz, através de marcas que denunciam a presença do pesquisador, seja emitindo pontos de vista, fazendo julgamentos, etc., ocorre, em contrapartida, a recorrência a uma fonte teórica, ou aos próprios dados, o que se configura como um recurso de validação científica da fala do pesquisador, deixando que os dados e a autoridade dos citados se apresentem para justificar seu ponto de vista, ou seja, para contornar a emergência da subjetividade. Os segmentos [21], [22] e [23] exemplificam.

Pq- (...) é um documento que se fez muito difícil pra compreensão dos professores que estão na sala de aula de ensino fundamental e médio... então é um documento que veio cheio de notas de rodapé... né?... pra cada termo que é usado lá (...)

(CE, F24A, T27) [22]

Pq- (...) uma primeira questão que me parece importante colocar é que ao contrário de algumas críticas que já foram feitas aos PCNs.... eu considero que esse documento é o resultado de um projeto histórico de uma discussão que foi se desenvolvendo historicamente nas universidades... no país a partir da década de oitenta uma discussão é... por exemplo teve um de seus marcos iniciais no/ no na publicação do livro do João Wanderley Geraldi... O Texto na Sala de Aula...

(CE, F24A, T25) [23]

Pq- (...) trabalhar esse tipo de coisa... uso de conectivo e assim por diante... mas não outras questões meramente formais então o que acontece é isso... os PCNs ( ) eu acho... tem excesso... o outro é o problema da compreensão textual... e isso levou a gramática para... eu

diria... um limbo teórico ( ) e é difícil dizer com exatidão qual seria esse lugar ... específico da

gramática... então eu vou ler alguns aspectos aqui que estão na página cinqüenta e quatro cinqüenta e cinco o que é que os PCNs introduzem efetivamente na gramática....

(CE, F24A, T25) Em [21] o adjetivo ‘difícil’ acompanhado pelo intensificador ‘muito’ sugere uma apreciação avaliativa do pesquisador sobre os dados observados. Ao analisar o documento (os PCNs) que constitui o seu objeto de estudo, o locutor predica-o de ‘muito difícil’ para o entendimento dos professores aos quais o documento se destina. Mas esse gesto de se colocar subjetivamente face aos dados é contornado a seguir, quando descrições objetivas se impõem para justificar a apreciação do pesquisador (então é um documento que

veio cheio de notas de

rodapé

... né?... pra cada termo que é usado lá), funcionando como uma justificação do enunciado anterior (é um documento que se fez muito difícil pra compreensão dos professores), e, desse modo, o locutor recorre aos dados para validar seu julgamento.

Em [22] também pode-se constatar esse mecanismo discursivo que cumpre o papel de, ao mesmo tempo, mostrar e escamotear a presença do locutor na sua própria enunciação. Facilmente se observa a presença do locutor assumindo pontos de vista, ainda que com certa cautela: ...uma primeira questão que

me

parece importante

colocar...; ...

eu considero

... A modalidade ‘parece’, como observa Fairclough (op. cit.) é um marcador explícito de avaliação, de modalidade subjetiva, embora o efeito de baixo comprometimento possa estar vinculado ao efeito de neutralidade científica. Da mesma forma ‘considero’ revela mais uma vez a assunção do locutor em relação ao seu projeto discursivo. Como é possível constatar, esse engajamento do sujeito que enuncia concorre com a presença do dado, do exemplo que contribui para dissipar a presença de quem julga, assume pontos de vista. Com efeito, ao emitir seu ponto de vista, dizendo que considera os PCNs um marco histórico, o locutor imediatamente recorre a dados, a exemplos (por exemplo teve um de seus marcos iniciais no/ no na publicação do livro do João Wanderley Geraldi... O texto na sala de aula...) e, assim, o traço da subjetividade é contornado pelo dado que se impõe como verdade.

Em [23], os enunciados são modalizados pelas expressões ‘eu acho’, ‘eu diria’, também aí revelando a apreciação do sujeito em relação ao dado, de modo que o pesquisador se envolve com o que diz, opinando, julgando, expressando dúvidas (os PCNs ( ) eu acho... tem excesso...; é difícil dizer com exatidão). Em contrapartida, a leitura de passagens do documento (PCNs) aí também funciona como um recurso ao dado para justificar o ponto de vista do locutor (então eu vou ler aqui pra vocês alguns aspectos aqui que estão na página cinqüenta e quatro cinqüenta e cinco). Na medida em que opina sobre os dados que analisa, o locutor traz para o seu discurso os próprios dados como prova incontestável.

Pode-se dizer que na maioria das vezes em que o locutor expõe seu ponto de vista, julga, avalia, segue-se uma justificativa amparada nos próprios dados, como uma maneira de sobrepor o dado à opinião do pesquisador, produzindo assim o efeito de objetividade que também vamos constatar nos discursos pedagógicos, no capítulo III, conduzindo ecos da voz científica.

O recorte [24] parece ser exemplar dessa tentativa de recorrência ao objeto da pesquisa nessa estratégia de camuflar a presença do sujeito.

[24]

Pq- (...) algumas dessas pesquisas relatam equívocos de de professores que se acreditam trabalhando na linha proposta pelos PCNs... é... eu posso relatar uma experiência pessoal mas que eu acho que é significativa... que é representativa desse estado de coisas...

(CE, F24A, T25) A pesquisadora (Pq) recorre a um relato pessoal para exemplificar o que vinha comunicando aos seus interlocutores (professores/pesquisadores), qual seja, a receptividade dos PCNs pelos professores a quem eles se destinam (eu posso relatar uma experiência pessoal). No entanto, a presença do operador discursivo ‘mas’ acena para a interrupção de uma linha de argumentação favorecendo a inserção de sentidos opostos, e por esse recurso mobiliza uma memória discursiva que poderia ser parafraseada por: “relato de experiências pessoais não é significativo para a ciência, vai contra o caráter universal da ciência”. Por isso se justifica o enunciado: mas que eu acho que é significativo...., que revela um trabalho do sujeito sobre o seu próprio discurso. Em outras palavras, o operador ‘mas’ acena para outras vozes que não consideram o relato pessoal válido para comprovar a verdade científica. Na tentativa de assegurar a validade do relato para o que discute, a locutora produz uma seqüência de enunciados parafrásticos que cumprem o papel de justificar sua opção pelo relato pessoal: que eu acho que é significativa... que é representativa desse estado de coisas...