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I. A INSTITUIÇÃO UNIVERSITÁRIA E A CIRCULAÇÃO DE DIFERENTES

1.2. Gêneros discursivos: o trabalho do sujeito, instâncias discursivas, regularização das falas

1.2.4. Processos de regularização das falas

Por considerarmos que as formas de interlocução verbalizadoras das práticas sociais constitutivas do fazer universitário estão constantemente submetidas a regularizações semelhantes a rituais - ainda que nosso objetivo não seja descrever os rituais que envolvem cada gênero - entendemos ser produtivo tratarmos mais detidamente de uma certa noção de ritual para a partir dela falarmos das regularizações a que estão submetidas as enunciações que orientam a emergência de distintos gêneros discursivos, na IU.

McLaren (1986), em um interessante estudo sobre o ritual no cenário escolar, postula que as dimensões variadas do processo ritualístico são intrínsecas à vida institucional. Nesse sentido, o ritual é uma produção cultural construída como uma referência coletiva ao simbólico e à experiência localizada de um dado grupo social, de modo que não apenas as forças sociais dão origem às expressões simbólicas, mas também os rituais e os símbolos são capazes de criar grupos sociais (McLaren, op. cit., p.31). O estudo do autor consiste em demonstrar exemplos de rituais na escola e examinar as relações implícitas dentro do sistema cultural mais amplo. Além disso, procura examinar como o campo cultural de

uma escola funciona, tanto na sua forma tácita como manifesta. Para isso, seus estudos se guiam pelas seguintes perguntas:

Como os rituais estão implicados nas interações e regularidades do dia-a-dia da instrução escolar? Os rituais estão relacionados de alguma forma com a organização e distribuição, tanto dos corpos formais, quanto informais do conhecimento escolar (isto é, os currículos explícitos e ocultos) que se encontram nos vários materiais, ideologias e textos que são ativamente filtrados através dos professores? Os rituais estão ligados às perspectivas fundamentais que os educadores utilizam para planejar, organizar e avaliar o que ocorre nas escolas? Como os rituais da instrução escolar cotidiana moldam tacitamente (por meio de seus símbolos dominantes e paradigmas subjacentes) o processo de aprendizagem? Como esses mesmos rituais influenciam ou têm impacto sobre a intencionalidade e a experiência das crianças? (McLaren, op. cit., p. 36).

Conforme adverte o autor, a definição do ritual tem enfrentado grandes oscilações motivadas por percepções errôneas, más compreensões, definições restritas, tanto de especialistas quanto de leigos, que têm insistido numa noção de ritual enquanto ‘repetição desprovida de sentido’, ‘forma de comportamento supersticioso’, etc. Ou seja, o termo ‘ritual’ tem funcionado como um termo ‘guarda-chuva’ que abrange tudo que é repetitivo ou habitual. Por outro lado, até recentemente, os estudos sobre rituais se dedicavam quase que exclusivamente aos aspectos religiosos ou cerimoniais de culturas ‘primitivas’. Essas concepções têm produzido uma recusa ou obscurecimento do conceito de ritual, passando a ser considerado como antiguidades inócuas, parte de uma era já desaparecida – restos, talvez, de alguma época antiga, pomposa, de rituais repletos de ídolos de ouro proverbiais, caldeirões fumegantes e virgens vestais (McLaren, op. cit., p. 48).

Diferentemente de certas posições teóricas que concebem os estudos sobre os rituais aplicáveis apenas a culturas ‘primitivas’, o autor argumenta que os rituais podem ser instrumentos analíticos úteis ao estudo da sociedade contemporânea, uma vez que estamos todos sob o impacto do ritual.

Assim, para McLaren, os rituais são os fios que entrelaçam uma dada cultura, criando-lhe o mundo para a ação social. Através dos rituais estabelecem- se códigos simbólicos que funcionam como a base para a interpretação e negociação de sentidos da vida cotidiana, fixando-se no centro da organização humana. Por essa compreensão, os rituais não são gestos aleatórios da humanidade, eles estão intrinsecamente ligados à dinâmica sócio-histórica.

Os rituais não são criados ex nihilo. Nem eles existem em algum vácuo adornado. As sementes do ritual não flutuam em algum éter santificado ou numa onda de incenso; as raízes do ritual não caminham pelo túnel do solo cultural de um jardim mítico e idílico nem emergem de umidade estéril de uma pipeta de laboratório. Os rituais se nutrem de experiência vivida; eles germinam no barro das fraquezas humanas e no desejo de sobrevivência e transcendência; eles crescem conjunturalmente, a partir das mediações culturais e políticas, que moldam os contornos de grupos e instituições, que servem como agentes de socialização (McLaren, op. cit., p. 73).

Os rituais, por essa perspectiva, são mecanismos que situam os sujeitos em certos lugares sociais, indicando-lhes posições e papéis que representam nesses lugares. Parece-nos interessante, nessa concepção de ritual adotada por McLaren, a idéia de que os rituais, enquanto práticas sociais governadas por regras, não devem ser vistos como algo transparente nem opaco, cujos significados já se encontrarim embalados e pré-definidos. Os rituais são mediatizados por aspectos ideológicos, limitados, portanto, por relações sócio-históricas. Nesse sentido, o

autor alarga o conceito de ritual – em relação a outras concepções de ritual - ao assinalar que os rituais modernos são mais do que complementos solenes ou festivos de eventos místicos, enfatizando a conexão existente entre ritual e práticas sociais. Dessa perspectiva, é possível dizer com Foucault (1971) que o ritual funciona como a forma mais superficial e mais visível de restrição dos processos de interação. O ritual define posições ocupadas pelas instâncias da interlocução, quem deve dizer e o que dizer.

Aproximando essa noção de ritual à noção de processos de regularizações de fala, pensamos que tais processos podem ainda ser entendidos como o ‘ritual social da linguagem” a que faz referência Charaudeau (1983).

Ce Rituel socio-langagier dont dépend l’Implicite codé nous l’appellerons ‘Contrat de parole’, et nous le définirons en disant qu’il est constitué par l’ensemble des constraintes qui codifient les pratiques socio-langagières et qui résultent des conditions de production et d’interprétation (circonstances de discours) de l’acte de langage (Charaudeau, op. cit., p. 54).

Por essa noção de ritual social da linguagem, as situações de linguagem são fortemente submetidas a acordos tácitos determinados pela própria situação de enunciação. Com base nessa noção, e admitindo que a tomada de palavra por diferentes instâncias no interior da IU é bastante regularizada, talvez se possa olhar para os modos de realização dos processos discursivos que se realizam na universidade como ‘quase-rituais’, dada a sua existência burocratizada e institucionalizada, de modo que se pode falar em circunstâncias discursivas pré- estabelecidas e organizadas para que se atualizem determinados assuntos, por exemplo: a reunião de conselho para tratar da organização institucional, a reunião pedagógica para tratar da organização do ensino, a aula, para ensinar, o evento

científico para comunicar resultados de pesquisa, etc. Nesse sentido, as diferentes formas de interação no ambiente universitário, funcionam como disposições capazes de organizar e regrar as práticas dos sujeitos, práticas que legitimam um modus operandi distinto e reconhecível. Rodrigues (1997), em seus estudos sobre Rituais na universidade, já nos mostra que a instituição universitária é marcada de momentos bastante ritualizados. Nesse aspecto, a autora procura mostrar que alguns rituais falam sobre posições, sobre a instituição universitária, a cultura acadêmica e os significados construídos nesse contexto. Observa ainda que o ritual é considerado não apenas como uma cerimônia em que se avalia, julga, expõe idéias, etc., mas sobretudo como um sistema de comunicação simbólica construído culturalmente (Da Matta, 1979, apud Rodrigues, 1997:123).

Aliando tal noção de ritual à noção de regularização das falas, pode-se dizer que, na universidade, instituem-se atividades discursivas extremamente ritualizadas que obedecem a uma ordem de acontecimentos e de seqüências discursivas, de modo que gêneros discursivos distintos em circulação no interior da IU são constituídos e selecionados por essas regularizações de tomada da palavra.

Maingueneau (1987), com base na noção de “contrato”19 definida por

Charaudeau (op. cit.) destaca que cada “gênero” presume um contrato específico pelo ritual que define (op. cit., p.34), articulando, assim, o ‘como dizer’ ao conjunto de fatores do ritual enunciativo. Os sujeitos inseridos na atividade de linguagem presumem um contrato que legitima o lugar que ocupam. Admitindo a existência de ‘contratos de fala’ prefigurados nas atividades de linguagem colocadas em funcionamento no interior das práticas sociais que se desenvolvem na IU, estamos também considerando a existência de pelo menos três grandes ‘quase-rituais’ que supõem condições específicas de realização e geram um conjunto de regras e ações com

maior ou menor flexibilidade das regras: quase-ritual político-administrativo (que se realiza por atividades político-administrativas da instituição, tais como debate político, panfletos, reuniões administrativas, assembléias, etc); quase-ritual de ensino (que se realiza essencialmente pela aula e é, portanto, um gênero dentro desse ritual de ensino, que, por sua vez, origina outros tantos gêneros específicos) e quase-ritual de pesquisa ou científico (que gera os gêneros reuniões, debates, comunicações em eventos científicos, mesas-redondas, relatórios de pesquisa, defesas de teses e dissertações, etc.).

Talvez pudéssemos estabelecer uma correlação entre processos de regularizações de fala ou quase-rituais e o que Marcuschi (2003) denomina “domínio discursivo”. Na compreensão do autor, “domínio discursivo” equivale a uma esfera de atividade humana como proposta por Bakhtin (1953). Nesse sentido, “domínio discursivo” indica instâncias discursivas ou esferas discursivas, tais como: discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso acadêmico, etc. Tais instâncias não produzem um único gênero, mas dão origem a vários deles que às vezes são próprios ou específicos como práticas ou rotinas comunicativas institucionalizadas e instauradoras de relação de poder (Marcuschi, op. cit., p. 3). Nesse caso, o autor adverte que “domínio discursivo” distingue-se da noção de formação discursiva tal como proposta por Foucault, uma vez que se equivale a esferas de atividades. Aliando a nossa reflexão à noção de domínio discursivo desenvolvida por Marcuschi, estamos admitindo que cada esfera de regularização de falas ou domínio discursivo recobre vários gêneros discursivos.

Os gêneros discursivos praticados em cada esfera de atividade (político-administrativa, de ensino e científica) adquirem do ritual em que são produzidos suas características comuns, mas se singularizam cada um deles pelos traços bakhtinianos: o tratamento do tema, o querer-dizer do locutor e as formas típicas de estruturação do gênero. Num e noutro gênero, os modos de realização

do quase-ritual que os tornam possíveis são diferenciados: mesmo nas reuniões produzidas pelo ritual administrativo, por exemplo, umas seguem uma formalização mais rigorosa, outras menos. Desse modo, a regularização de fala mais ampla – que estamos denominando de esfera discursiva - impõe a cada gênero específico algumas normas que constituem a instituição universitária e dessa perspectiva, a esfera discursiva que organiza e regra a tomada da palavra é compreendida não como um entorno contingente dos gêneros que ela põe em funcionamento, mas como um componente que condiciona fortemente a especificidade de cada gênero numa relação indissociável.

Assim, na perspectiva aberta por Bakhtin (op. cit.), procuraremos descrever, no próximo capítulo, alguns gêneros produzidos no interior das três grandes esferas de regularização de fala acima referidas. Com base na sugestão metodológica de Bakhtin, faremos o seguinte percurso de análise de alguns gêneros discursivos identificados nessas instâncias de regularização de fala (político-administrativa, ensino e pesquisa):

1. Na dinâmica das atividades desenvolvidas na IU, privilegiaremos as atividade desenvolvidas nas esferas político-administratriva, de ensino e científica;

2. Na esfera político-administrativa optamos por descrever os gêneros debate político; assembléia e reunião; no âmbito científico descreveremos o gênero comunicação em eventos científicos e, por fim, descreveremos o gênero aula.

3. Procederemos à análise de configurações desses gêneros, observando seu funcionamento discursivo, o lugar das instâncias enunciativas (Maingueneau, 2001) em cada gênero, bem como a heterogeneidade constitutiva desses gêneros, o que possibilita o cruzamento entre eles.

Descrever o funcionamento discursivo desses gêneros discursivos para depreender formas de representações dos sujeitos, nesse espaço institucional, significa dizer que não temos o propósito de apresentar configurações estritas de

cada gênero que propomos descrever e analisar, mesmo porque assim estaríamos pautados numa noção de gênero como formas fixas e cristalizadas ou na idéia de que cada situação de interação teria como correlatas formas verbais em que se enquadrar, o que contraria a orientação teórica que vimos adotando. Sabemos que o investimento em cada gênero pode realizar-se de muitas maneiras de acordo com posições sociais dos interlocutores, com o intuito discursivo a ser encaminhado, etc., enfim, de acordo com as condições de emergência do gênero.

Não pretendemos tampouco fazer uma tipologia de textos, até mesmo pela impossibilidade de tal empreitada, mas fazer uso de tipologias intuitivas de situações práticas desenvolvidas na universidade, sob a hipótese de que a universidade, na medida em que complexifica as suas atividades voltadas a finalidades diversas, produz gêneros distintos para essas atividades, configurando- se formas relativamente estabilizadas de enunciados, ou regularizações de tomada da palavra.

Mesmo admitindo que o processo histórico de consolidação de cada gênero específico permite-lhe certas regularidades, é preciso ter em conta que as suas configurações estão sempre abertas a mudanças, a entrecruzamentos, justamente porque o seu vínculo estreito com a história obriga-lhe esse movimento de consolidação e renovação. Como se sabe, os gêneros funcionam como ponto de apoio para os vários discursos que nele se entrecruzam, mas sempre sujeitos aos revezes da história.

Sendo assim, por um lado o gênero realiza um processo de estabilização de formas de interação em instâncias de interlocução; por outro, pelo que contém de heterogêneo, a vida do gênero discursivo está sempre se renovando ou até mesmo se transformando em outro gênero, daí porque não seria produtivo considerar os gêneros como uma formatação rígida. Como constata Fairclough (1992:162): uma sociedade – ou uma instituição particular ou domínio dentro dela – tem uma

configuração particular de gêneros em relações particulares uns com os outros, constituindo um sistema. E, é claro, a configuração e o sistema estão abertos a mudanças.

Ao descrevermos gêneros produzidos por distintas atividades da instituição universitária atentaremos para configurações lingüístico-discursivas que sugerem o jogo de representações dos sujeitos em relação aos lugares sociais que ocupam, sempre levando em consideração que os discursos produzidos no espaço universitário implicam ‘contratos’ que refletem posições sociais hierárquicas institucionais.

Nesse percurso, não descartamos a complexidade que requer definir e descrever gêneros discursivos, dada a sua heterogeneidade, como já advertiu Bakhtin (1953). Por isso mesmo, o nosso interesse, nesse procedimento de análise, é também atentar para os entrecruzamentos desses gêneros (e os sentidos produzidos nesse movimento) - reveladores da sua natureza heterogênea e dialógica.

II. FUNCIONAMENTOS DISCURSIVOS DOS GÊNEROS: DEBATE POLÍTICO,