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Contrato de fala e legitimação de autoridade

II. FUNCIONAMENTOS DISCURSIVOS DOS GÊNEROS: DEBATE POLÍTICO,

2.2. Reunião administrativa

2.2.1. Contrato de fala e legitimação de autoridade

De acordo com Charaudeau (1983), um ato de linguagem participa sempre de um projeto global de comunicação conhecido pelo sujeito que comunica. Para conduzir bem a cena interlocutiva em que se inscreve, o sujeito usará contratos e estratégias. A noção de contrato, segundo o autor, pressupõe que os interlocutores pertencentes a um mesmo corpo de práticas sociais sejam suscetíveis de entrar em acordo sobre as representações linguageiras dessas práticas sociais. A noção de estratégia repousa sobre a hipótese de que o sujeito que enuncia

conhece, organiza e coloca em cena seu trabalho comunicativo, de maneira a produzir certos efeitos. Assim, contrato e estratégias constituem recursos aos quais os locutores recorrem para levar adiante o seu projeto discursivo, baseados na posição que ocupam e em imagens que constroem de si e de seus parceiros.

O sujeito que enuncia pode, por exemplo, se encontrar numa posição de autoridade e reativar essa posição fabricando imagens autoritárias de si, assim como pode construir uma imagem não autoritária, desde que esteja legitimado para tal. Sendo assim, o contrato de fala corresponde a um ritual constituído por um conjunto de obrigações que codificam as práticas sócio-discursivas. Nas palavras de Charaudeau (op. cit, p. 97): Ce contrat de parole donne um certain statut sócio- langagier aux différents protagonistes du langage qui surdétermine leur parole. É por esse contrato de fala que se pode julgar os outros contratos e estratégias discursivas postas em funcionamento no ato da interlocução. Nesse sentido, como observa Maingueneau (1987), o quadro do gênero discursivo está vinculado a uma questão geral, a da autoridade relacionada a uma enunciação.

Adotaremos, portanto, a noção de “contrato de fala”, tal como proposta por Charaudeau, para trazermos à nossa análise a consideração de que nas práticas administrativas a reunião se apresenta, a nosso ver, como um gênero que adquire características comuns do ritual administrativo; em outros termos, o ritual mais amplo fixa as expectativas do gênero, permitindo-lhe certas regularidades em seu funcionamento. Essas regularidades se configuram, no processo discursivo, como um trabalho de legitimação da autoridade do sujeito que administra, com base num acordo institucional entre os parceiros, ao mesmo tempo que firmam a configuração do gênero em que são produzidas.

Não é nosso interesse discutir de forma pormenorizada os gêneros que compõem a reunião, pois sabe-se que no interior da reunião produzem-se outros gêneros particulares tais como: informes, ata, roteiro de pauta, etc., e cada um desses

gêneros se distinguem por uma configuração específica. Seguimos, nesse sentido, a sugestão de Marcuschi (2003) ao chamar a atenção para os gêneros que compõem a tese de doutorado, tais como: resumo, sumário, índices remissivos, agradecimentos, prefácio, introdução, bibliografia, etc., observando que tais gêneros, embora tenham função e estrutura próprias, quando reunidos numa dada seqüência para constituir uma tese de doutorado, eles não são mais vistos como gêneros e sim como transmutados para compor as partes de uma tese (Marcuschi, op. cit., p. 11). Esse mesmo procedimento de análise foi adotado quando analisamos o debate político no que diz respeito a falas de locutores que não os candidatos e o será quando analisarmos a reunião, a assembléia, a aula, a comunicação em eventos, ou seja, fixaremos a análise no gênero que subsume os demais e os colocam em funcionamento no seu interior. Neste sentido, seguimos a orientação de Bakhtin (1953) no que respeita aos gêneros secundários que incorporam gêneros primários.

É certo que observamos com muita recorrência, nas reuniões, como forma de investimento sobre as regras que garantem a seqüência enunciativa da reunião, o monitoramento freqüente do locutor em relação a gêneros que compõem a reunião. Isto é, dado que o funcionamento da reunião requer a presença de seqüências enunciativas, tais como informes, pauta, ata, intervenções, exposições, relatos, etc.27, participando estas do acabamento do gênero reunião como um todo, observa-se que o sujeito que se encontra em posição de chefia utiliza-se do monitoramento dessas seqüências como uma das estratégias de legitimação de sua autoridade. Souza e Silva (1997), analisando reuniões em situações de trabalho, também constatou que o coordenador da reunião não apenas retém a palavra com mais freqüência, mas também controla e organiza as atividades dos demais interlocutores.

Se, no debate, o monitoramento das regras de interlocução é feito por um moderador que regula a participação dos interlocutores, a reunião institucional é quase sempre presidida por alguém que se encontra na posição de chefe. Assim, cabe a ele próprio o monitoramento das regras, garantindo, por esse mecanismo, o controle do bom andamento da reunião, o que já evidencia sua posição na escala hierárquica.

[14]

C28- (...) mas isso aqui é uma coisa que não vai dar pra ser discutido hoje porque estão faltando dois professores... tá?... só vai dar pra adiantar aqui... algumas mudanças... isso aqui são informes tá?... depois a gente começa a pauta... só alguns informes...

(R, F7A, T8) [15]

C- (...) outro informe (aqui) refere-se à questão dos horários das turmas que só foi feito o horário das turmas de nove oito e nove sete a partir da entrada dos professores C. e N. da Matemática com Metodologia do Ensino de Matemática....

(R, F6A, T7) Os recortes [14] e [15] foram retirados, respectivamente, de uma reunião de colegiado de um curso de Pedagogia e de professores de um curso de Letras de um campus da Universidade Federal do Pará. Nas duas reuniões, as coordenadoras traziam para discussão e aprovação dos membros do colegiado a oferta de disciplinas para turmas dos referidos cursos, naquele semestre. Nos dois recortes, a coordenadora, ao sinalizar aos seus colegas que se trataria de um momento para ‘informe’, sugere uma instrução no sentido de situar discursivamente o que enuncia: isso são informes tá?... outro informe aqui... As instruções do locutor se configuram como coordenadas ao interlocutor em relação à situação enunciativa, ‘mostrando-lhe’ o contrato de fala de um dado gênero.

Essa ‘instrução’, no entanto, não pode ser vista como destituída de sentidos, ou seja, o fato de o locutor ter o domínio das regras de interlocução já revela que as imagens que constrói de si para o seu interlocutor são imagens que legitimam o papel de autoridade que ele representa nessa interação. Com isso não se pode dizer que as regras não são infringidas, já que o jogo interacional motivado pelo encaminhamento de sentidos, pela busca de compreensões, é capaz de romper e subverter as regras do jogo, pois segundo Charaudeau (op. cit.), a cena que o locutor constrói pode ser revista e corrigida pelo interlocutor, uma vez que este interpreta à sua maneira os contratos e as estratégias.

O recorte [16] é exemplar dessa tensão entre a manutenção e rompimento das regras impostas pelo sujeito que se encontra no topo da escala hierárquica administrativa de um campus (coordenador de campus).

[16]

C- (...) bom... então... é... passo a dar alguns informes sobre a reestruturação do conselho... vocês viram aí uma situação do quadro docente (...)... bom... esses são os informes que têm... se alguém mais...

(...)

A2- é:: o problema que quando fizemos a reunião foi é::: decidido/decidido que a gente ia é::: pro campus dois... a gente fez uma certa experiência e eu queria colocar algumas coisas sobre essa experiência... que a gente foi pra lá... voltou pra cá de novo... eu não sei se colocaria agora ou... se entraria como ponto de pauta...

C- ponto de pauta... quando nós terminarmos de aprovar a ata você pode sugerir incluir esse... e discutir... nós ainda vamos aprovar a pauta lá na frente ...você pode sugerir... têm algumas modificações ( ) feitas de última hora ( )... bom... não havendo mais nenhuma comunicação... informe...

P1- ( ) pra fazer pauta da ata...

C- vamos entrar agora... nós vamos ver se não tem mais... a gente passa pra aprovação da ata tá?...

(...)

A1- eu tenho proposta de ponto de pauta ...

C- não...a ata... estamos na ata... então nós podemos dar a ata por aprovada com essa discussão da professora M. tá?... em aprovação... impedimento nenhum... a ata aprovada com a observação com a correção da professora M.... bom aí vêm pontos pra pauta... tá?...

O recorte [16] é parte de uma reunião de conselho de um campus universitário da Universidade Federal do Pará - com representação de todos os segmentos acadêmicos (alunos, funcionários técnico-administrativos e professores) - em que o coordenador do campus, na condição de presidente do conselho da instituição, inicia a reunião apresentando alguns informes. Na seqüência, apresenta uma pauta, em parte elaborada em reunião anterior, e sugere a inclusão de novos temas para serem submetidos à aprovação dos conselheiros, após os informes da reunião. Esse recorte nos oferece vários indícios de que o controle das falas - assegurado por um contrato instituído e legitimado pelo lugar que ocupam os sujeitos (Charaudeau, 1983) - funciona como um recurso de legitimação da representação de autoridade construída para si e para os parceiros da interlocução.

Como nos recortes [14] e [15], no recorte [16], o coordenador qualifica a sua enunciação de ‘informes’. Por esse gesto de predicar a sua própria enunciação o locutor confere e legitima o seu estatuto de coordenador, de quem decide sobre quem falar, o que falar e em que seqüência falar. Por isso, qualquer infração à prática do ritual discursivo, merece advertência. É o que ocorre quando o aluno (A2) intervém para apresentar um tema a ser discutido, e, na incerteza de se a sua enunciação deve ser considerada um “informe” ou “ponto de pauta” da reunião, transfere a decisão, o juízo, ao coordenador.

Os enunciados hipotéticos: eu não sei se colocaria agora... ou se entraria como ponto de pauta... abre a possibilidade para C intervir e decidir sobre o lugar exato onde deve se situar o enunciado de A2. Pode-se dizer que os enunciados não têm um pertencimento natural a um ou outro dos momentos (“informes” ou “ponto de pauta”), mas um pertencimento conferido pelo sujeito que detém maior autoridade na relação interlocutiva. É comum, em assembléias, os “apartes” solicitados por algum participante serem colocados em questão pelos demais

membros, sob a consideração de que não se trata de “aparte”. Geralmente a decisão sobre a natureza do enunciado acaba sendo da incumbência de quem preside a assembléia. Charaudeau (op. cit., p. 97) lembra que se o ‘sim’ pronunciado pelo presidente de uma assembléia , dirigido àquele que levantou a mão, significa ‘você tem a palavra’, é porque o contrato de fala coloca o presidente da assembléia em posição de poder ‘conceder a palavra’ e todo membro da assembléia em posição de ‘pedir a palavra ao presidente’.

No caso do recorte [16], pode entrar em jogo a imagem que o coordenador faz da intervenção do aluno, ou do tema que se pretende colocar em discussão, de modo que esse jogo já revela a tensão estabelecida pela representação dos papéis sociais que os sujeitos têm de si e do outro.

O enunciado: nós ainda vamos aprovar a pauta lá na frente, funciona como uma instrução, ou mais, como uma prescrição que regula a fala do outro, restringe-lhe o momento exato para falar. O advérbio ainda sinaliza ao interlocutor que esse não é o momento adequado para a sua intervenção, permitindo, em última instância, que o aluno apresente sua questão somente quando for o momento de aprovação de pauta da reunião. Se por um lado, esse movimento discursivo revela a regularização das falas nesse gênero, por outro, esse movimento mesmo produz posições de comando e obediência, o que não significa ausência de tensão nesse jogo.

Em outras passagens desse mesmo recorte, observa-se mais uma vez o locutor legitimando sua imagem de autoridade ao tentar regrar a enunciação do interlocutor. Por exemplo, quando outro aluno (A1) intervém para também sugerir a inclusão de um item na pauta da reunião, é alertado pelo coordenador quanto à inadequação do momento (a ata... estamos na ata...)e, novamente C mostra a sua autoridade no comando da interlocução.

Depois de tratar da aprovação da ata, anuncia aos interlocutores que chegou o momento apropriado para tratarem dos assuntos propriamente ditos da reunião. Por isso mesmo explicita: bom... aí vêm pontos de pauta... tá?... Essas várias estratégias do locutor fazem parte de um acordo, uma vez que o estatuto de chefe da instituição justifica o seu discurso e por esse discurso mesmo o locutor legitima a posição que ocupa e a de seus interlocutores.