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I. A INSTITUIÇÃO UNIVERSITÁRIA E A CIRCULAÇÃO DE DIFERENTES

1.2. Gêneros discursivos: o trabalho do sujeito, instâncias discursivas, regularização das falas

1.2.1. O conceito de gênero discursivo em Bakhtin

Adotando por base o postulado bakhtiniano de que somente sob a forma de gênero específico os enunciados se revestem de sentidos na cadeia discursiva, o nosso interesse em depreender sentidos construídos para atividades que se desenvolvem na IU se fundamenta na suposição de que, sendo os sentidos

orientados por posições sócio-históricas dos sujeitos, materializados por formas genéricas específicas, a idéia de objetividade que ainda sustenta a noção de sentido universal para atividades acadêmico-científicas e organizacionais, antes de constituir dados absolutos, vem ‘envelopada’ nos discursos proferidos pelos sujeitos - resultado das relações e papéis sociais que esses sujeitos desempenham nas diferentes atividades desenvolvidas na e pela universidade.

Sendo assim, antes de passarmos à caracterização de diferentes gêneros discursivos produzidos por diferentes atividades, no interior da universidade, revisitaremos o conceito de Gênero em Bakhtin, apontando a importância do mesmo para o estudo que procuraremos desenvolver.

Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, quando Bakhtin/Voloshinov formula a crítica às duas tendências dos estudos lingüísticos denominadas subjetivismo idealista e objetivismo abstrato, já é possível verificar, em muitas passagens, um esboço da formulação do conceito de gênero discursivo. Sua crítica, em relação à primeira tendência, incide sobre a ênfase por ela dispensada à criação individual como fundamento da língua - concepção que admite o psiquismo individual como fonte de criação e evolução da língua. Em relação à segunda tendência, a crítica de Bakhtin se dirige ao fato de essa tendência conceber o próprio sistema lingüístico como centro organizador de todos os fatos da língua, ou seja, a língua resulta de combinações entre signos num sistema fechado. Contrapondo-se a essas duas tendências, Bakhtin mostra que a língua não resulta de um ato individual nem de uma combinação sistemática entre signos, mas da interação entre indivíduos socialmente organizados. A estrutura da língua é insuficiente para produzir sentidos: a palavra só adquire sentido por sua função de signo que, por sua vez, só se constitui na relação entre indivíduos unidos por um vínculo social. A língua é fenômeno ideológico e, por isso mesmo, só pode ser

explicada no tecido social particular de signos criados pelo homem, signos cuja especificidade se dá justamente pelo fato de terem passado pelo crivo social.

Por essa compreensão, garante-se que as relações sócio-históricas e culturais em que os sujeitos se encontram inseridos determinam as formas de interação verbal entre eles, nas diversas esferas da atividade humana. Das condições, formas e tipos de interação verbal derivam as formas e os temas dos atos de fala. Bakhtin já aponta, em suas reflexões, para uma posterior formulação da noção de gêneros discursivos, defendendo que a classificação das formas de enunciação deve apoiar-se nas formas de interação humana.

Essa formulação torna-se mais evidente quando o autor postula que para o complexo físico-psíquico-fisiológico se tornar um fato de linguagem (ato de fala, um gênero do discurso) é preciso que os sujeitos estejam situados no meio social e é indispensável que pertençam a uma sociedade organizada, num terreno específico, pois só assim é possível a interação verbal. Essa formulação parece constituir o germe de uma noção que mais tarde o autor explicitou quando tratou especificamente da questão dos gêneros do discurso.

Em sua teoria dos gêneros discursivos, o autor explicita que os gêneros constituem formas específicas de organização de porção de enunciados da cadeia infinita de comunicação humana. Em nome de certas posições sociais que o sujeito ocupa ele é convocado a realizar determinadas atividades que impõem certas regras de interação verbal. Os gêneros discursivos funcionam, assim, como o espaço organizador e normatizador dessas formas de interação verbal ao mesmo tempo que são por elas gerados. Sendo as esferas de comunicação verbal que dão origem aos gêneros do discurso, elas mesmas se incumbem de desenvolvê-los, multiplicá-los, renová-los e até mesmo de extingui-los para dar origem a novos gêneros, refletindo, assim, o vínculo entre o desenvolvimento histórico da língua e as formas de atividades humanas historicamente situadas.

A percepção de Bakhtin sobre a vinculação estreita da língua (sob a forma de gêneros) às ações humanas socialmente organizadas revela o caráter eminentemente social que ele procura imprimir à língua, em oposição clara às concepções subjetivistas e idealistas, concebendo a linguagem a partir de sua relação com um lugar socialmente definido. Assim sendo, os gêneros revelam formas distintas de se pensar a realidade, já que eles atuam na organização de formas de enunciados da memória social, de representação do mundo, da sociedade.

Como as atividades variam no seio da sociedade, os gêneros também são altamente heterogêneos e se mesclam conforme a necessidade imposta pela dinâmica social. Com base na heterogeneidade dos gêneros, Bakhtin estabelece a diferença entre gêneros primários e gêneros secundários, considerando gêneros primários aqueles que aparecem em instâncias enunciativas mais espontâneas da vida cotidiana, e gêneros secundários, aqueles produzidos em situações discursivas mais complexas, institucionalizadas. É interessante observar que essa distinção de situações de linguagem já se apresenta em Marxismo e Filosofia da linguagem, quando estabelece a distinção entre ideologia do cotidiano e sistemas ideológicos constituídos. A ideologia do cotidiano corresponde a situações de linguagem que vão desde a palavra interior desordenada até aquelas já mais submetidas à influência de sistemas ideológicos, ao passo que os sistemas ideológicos correspondem a formas de interação institucionalizadas, tais como a arte, o direito, a religião, a educação, etc. O autor defende que os sistemas ideológicos mantêm-se vivos graças ao elo estabelecido, permanentemente, com a ideologia do cotidiano. Como se vê, não se trata de conceber as formas genéricas na sua pureza homogênea, mas de admitir que estas são tão heterogêneas quanto as atividades que as engendram.

Ao estabelecer a distinção entre gêneros primários e gêneros secundários, Bakhtin (1953) põe também em relevo o fato de que os gêneros primários são absorvidos pelos gêneros secundários, sofrendo aí uma transmutação e incorporação a estes. Essa distinção entre gêneros primários e secundários é valiosa no sentido de que a partir dela é possível proceder a uma análise adequada da natureza complexa e sutil dos enunciados.

Um estudo da natureza da diversidade de gêneros implica levar em consideração a prática social à qual está vinculado um gênero particular, uma vez que é ela que garante a cada nova situação de interação o vínculo de enunciados novos com outros enunciados anteriores do elo da cadeia de comunicação verbal. Ainda que cada situação de interação seja única e irrepetível, o gênero, pela sua condição histórica, garante o intrincamento de cada discurso novo com outros que lhe antecedem, bem como a possibilidade aberta a outros discursos futuros.

Os gêneros, enquanto formas relativamente estáveis, funcionam como modos específicos de interação que se atualizam em situação de interlocução, garantindo, desse modo, a sua consolidação histórica e a possibilidade de renovação. A noção de gêneros entendida como formas relativamente estáveis, como postula Bakhtin, refuta qualquer compreensão de gêneros discursivos como dados fixos a priori, mas como resultado de um processo de historicização da linguagem numa relação intrínseca com a historicização das práticas sociais, razão pela qual os gêneros estão sempre sujeitos a alterações impostas pela própria dinâmica histórica. Pode-se falar, portanto, em uma ‘estabilidade instável’, pois, ao mesmo tempo que os gêneros são limitados pelas convenções da prática social, esta mesma lhes oferece a garantia da potencialidade à criatividade, à mudança.

Em outras palavras, se por um lado o gênero funciona como disciplinador de enunciados em situações de interação específicas, por outro sofre determinações da situação enunciativa, não havendo, assim, uma relação linear,

causal entre contexto e gênero discursivo, podendo, inclusive, o próprio gênero alterar o contexto. Significa, como observa Possenti (2003:221: (...) que os discursos não só surgem apenas se certas condições são satisfeitas, mas também que eles podem afetar essas mesmas condições.

O conceito de gênero tal como formulado por Bakhtin já traz em si a noção de descontinuidade entre gêneros discursivos e situação de enunciação, na medida em que tal noção se ampara na concepção de que a palavra, entendida como fenômeno ideológico, não apenas reflete, mas também refrata a realidade (Bakhtin 1929:32), justamente porque a linguagem, ao representar o real é, antes, atravessada pelos critérios da avaliação ideológica, pelo crivo social. Por essa perspectiva, descarta-se uma noção de relação automática entre gênero discursivo e a situação de enunciação que o torna possível.

Essa concepção se fundamenta no princípio da dialogicidade, caro à teoria bakhtiniana, segundo a qual, todo discurso se constitui por sua remissão e resposta a outros já formulados e a formular, razão pela qual nenhum discurso se impõe na sua pureza homogênea. Dessa perspectiva, é possível dizer que a noção de poder é relativizada, na medida em que este, no jogo das relações sociointeracionais, é constantemente ameaçado por outros sentidos, outros discursos, o que obriga o jogo permanente da negociação.

É também pela noção de acabamento do gênero que Bakhtin nos dá a dimensão do caráter dialógico dos enunciados socialmente situados. O acabamento, regrado pelas condições precisas de enunciação, tem como critério fundamental a possibilidade de ir à compreensão do outro que se manifesta por um posicionamento, uma reação qualquer em face do que foi enunciado. Para que o gênero discursivo seja capaz de suscitar a compreensão responsiva no interlocutor, Bakhtin considera três fatores determinantes e indissociáveis no acabamento genérico como um todo: i)o objeto do discurso; ii) o querer - dizer do locutor;

iii) e as formas típicas de estruturação do gênero (Bakhtin, 1953: 299). Ora, condicionando esses três fatores indissociáveis ao conceito de gênero discursivo, o autor abrange aspectos que ultrapassam a estrutura do texto, incluindo aspectos sócio-históricos, culturais e interacionais. Daí porque o autor se opõe a qualquer noção de gênero que tenha em consideração tipologias textuais que tomam como base apenas a seqüenciação verbal. Para Bakhtin, os gêneros resultam sempre de construções sociais, ou seja, diferentes tipos de atividades constituem diferentes realidades textuais do discurso e é somente no interior de realizações concretas dessas atividades que se pode compreender o funcionamento dos gêneros discursivos.

Para o autor, o processo dialógico se define, em cada gênero específico, por suas fronteiras, as quais permitem a compreensão entre interlocutores. Em outros termos, o acabamento constitutivo do gênero, enquanto sinalizador de respostas, cria fronteiras internas ao gênero, capazes de distingui-lo de outros gêneros. Essas fronteiras circunscritas a um dado gênero funcionam como lugares demarcados que possibilitam o diálogo entre sujeitos e entre discursos, ainda que tais lugares sinalizadores de réplicas nem sempre se constituam formas de acabamento explícitas e absolutas, pois é na situação de interação concreta que a alternância entre sujeitos é observada de modo mais direto e evidente.

A noção de acabamento sugere que os gêneros, enquanto espaço de verbalização das práticas sociais, estão sujeitos a condições de realização que envolvem a relação entre interlocutores, os seus propósitos discursivos, o trabalho do locutor com vistas ao alcance de seu intuito discursivo, ou seja, somente a partir do contato entre língua e realidade concreta que o condiciona é possível falar em enunciado, nos temos como o concebe Bakhtin. Portanto, os gêneros discursivos são muito mais do que ferramentas às quais os sujeitos recorreriam para adaptar os seus discursos.

Se as convenções genéricas nada mais são do que resultados de “contratos” tácitos estabelecidos entre sujeitos socialmente situados, para verbalizarem suas práticas, e se tais práticas estão em movimento constante, no processo histórico em que se desenvolvem, os gêneros, como a contraparte indissociável daquelas, não iriam passar incólumes às mudanças sociais.

O conceito de gênero advindo de Bakhtin é fundamental para o estudo que procuraremos desenvolver, por nos dar a dimensão de que i) práticas discursivas não são ações de um sujeito, por isso mesmo, os discursos que circulam nas diferentes esferas de atividades sociais obedecem a regras estabelecidas às quais os sujeitos socialmente situados se submetem ao enunciar; ii) por outro lado, embora fale no interior do instituído, regrado pelas convenções sociais, há sempre espaços de manobras, de possibilidades para o sujeito empreender o seu projeto discursivo, razão pela qual os discursos produzidos na universidade, por exemplo, não são tão universais quanto possam parecer, uma vez que entram em jogo posições históricas, sociais e ideológicas dos sujeitos do processo de interação verbal.