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II. FUNCIONAMENTOS DISCURSIVOS DOS GÊNEROS: DEBATE POLÍTICO,

2.3. Comunicação em eventos científicos

2.3.2. O efeito de neutralidade científica

[19]

Pq30 (...) e os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais se apresentam como pretendendo ser

uma síntese dessa discussão...

(...) então é um documento que assume uma concepção de língua como atividade discursiva ... atividade interacional...

(...) é um documento que trata por exemplo a noção de erro né?... não como alguma coisa que deve ser evitada... punida... castigada... mas como alguma coisa que faz parte do processo de construção do conhecimento...

(...) é um documento que responde primeiro à tendência tão arraigada de se trabalhar na escola apenas a questão gramatical formalista descontextualizada... e segundo aí responde também... a toda uma discussão histórica que vem sendo feita com relação a... se deve ou se não se deve ensinar gramática e como e quando e o que é ensinar gramática...

(CE, F24A, T25) O tema da comunicação, no recorte [19], versa sobre a relação entre a lingüística, a gramática e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), sendo que os PCNs constituem objeto de estudo do pesquisador.

Machado (1998), com base na teoria do funcionamento do discurso proposta por Bonckart (1994b), observa que nos discursos teóricos ou científicos há a predominância de seqüências descritivas, explicativas, a ausência de tempos verbais relacionados ao momento da enunciação, bem como a ausência de marcas do enunciador ou do destinatário, o que assegura a esse tipo de discurso um efeito de neutralidade científica.

Em nossos dados constatamos essa predominância de marcas lingüísticas que conferem ao discurso teórico um sentido de “verdade”. No entanto, verificamos também nesse discurso que se pretende objetivo, a tensão constitutiva marcada na própria linguagem assinalando a interferência da subjetividade. Assim, como veremos adiante, no discurso teórico, recursos expressivos que refletem o rigor científico concorrem com marcas enunciativas

que denunciam a presença da subjetividade, tais como julgamentos, avaliações, apreciações, injunção ao interlocutor, etc.

Observando a materialidade textual do recorte [19], é possível dizer que, no que se refere aos seus recursos expressivos, ele se caracteriza pelo predomínio de verbos assertivos de ação em terceira pessoa, centrados no objeto do discurso (apresentam, é, assume, trata,) revelando, por esses mecanismos, um trabalho de apagamento de marcas do sujeito que enuncia, o que confere um caráter expositivo ao discurso - configuração discursiva própria dos discursos teóricos (Bonckart, 1996).

Tomando os PCNs como objeto de estudos, as conclusões do pesquisador se manifestam como ações do próprio objeto de análise. Assim, os PCNs são apresentados por meio de seqüências descritivas que assinalam diferentes atividades desenvolvidas pelo próprio objeto. Essas atividades se referem a : i) perspectiva teórica (...então é um documento que assume uma concepção de língua); ii)ações práticas (...é um documento que trata por exemplo a noção de erro né? ... ); iii); operações meta-discursivas (... é um documento que responde também... a toda uma discussão histórica...)31. Note-se que esses enunciados apresentam como sujeito agente os próprios dados da pesquisa, como se eles falassem por si, isto é, os dados assumem a condição de quem age e não de quem sofre a ação, a interpretação do pesquisador. O objeto de discurso assim apresentado produz um efeito de neutralidade científica, de isenção de subjetividade. O sujeito que enuncia assume a postura de um observador que se mantém à distância para garantir a veracidade do que observa, descreve, relata.

No entanto, como a subjetividade é inerente à linguagem, no discurso teórico mesmo, se verifica o deslize, a inserção de marcas de subjetividade, traindo

31 Beacco & Darot (1984, apud Machado, 1998: 102-103) observam que, em resumos de artigos científicos, o enunciador se apresenta envolvido em diferentes estratégias de atividades intelectuais tais como: operações cognitivas de modo global (examina) ou específico (classifica); operações retóricas ou

o efeito de fidelidade científica, como se pode constatar na convocação do interlocutor (né?), no uso da expressão “por exemplo” que mostra que houve uma escolha do locutor, no torneio sintático no esquema “A, mas B”. Estas marcas estão mais explícitas no recorte [20]:

[20]

Pq-(...) os dados estão mostrando pra mim que o processo de avaliação é um processo de alta complexidade ( ) que vai exigir outros mecanismos que eu estou chamando de mecanismos de escuta e de interpretação da fala do aluno ...

(CE, F25B, T28) Num primeiro momento é possível verificar que os dados são discursivamente apresentados como se praticassem a ação (os dados estão mostrando para mim que o processo de avaliação é de alta complexidade...). Por outro lado pode-se verificar a presença da subjetividade, nesse mesmo enunciado, no recurso expressivo “pra mim” e na expressão avaliativa “alta complexidade”. O traço de subjetividade deixa aberta a possibilidade para outras interpretações possíveis desses mesmos dados por outro pesquisador; em outras palavras, os dados podem mostrar-se diferentes, conforme o olhar de outro pesquisador e, portanto, não são tão objetivos quanto se apresentam.

Além disso, o fato de o verbo encontrar-se no gerúndio (estão mostrando) também indica uma ação não concluída, ou seja, que a pesquisa encontra-se em andamento, portanto, não se trata de conclusões definitivas. Por esse mecanismo, o ato de mostrar-se não se revela categórico como as ações já realizadas e concluídas, que produzem efeito de verdade. Enquanto a ação, no presente, ultrapassa qualquer limite temporal, garantindo a perenidade dos fatos e a verdade dos dados, ‘estão mostrando’ sugere um processo reiterativo e não definitivo, o que mostra que os resultados da pesquisa enfrentam etapas, não são absolutos, mas os dados são verdadeiros, estão aí para mostrar sua verdade.

A presença do pesquisador na descrição dos dados também pode ser observada, nesse mesmo recorte, no enunciado: eu estou chamando de mecanismos de escuta e de interpretação da fala... O que se constata nesse enunciado, marcado na locução verbal (estou chamando), é o trabalho de interpretação dos dados pelo pesquisador. Ao dizer que está chamando o fenômeno de ‘mecanismos de escuta’ o locutor faz entrever uma conclusão provisória e aí também se observa que a pesquisa cumpre etapas. Registre-se, ainda, a inscrição do enunciador em sua enunciação, marcada pelo verbo em primeira pessoa (estou chamando). Isso mostra que, embora o discurso científico se pretenda neutro, o pesquisador nem sempre se mantém totalmente fora dos enunciados que produz. Os recortes apresentados no item que se segue exemplificam, mais detidamente, esse jogo de ‘mostra- esconde’- tanto do locutor quanto do seu interlocutor - presente no discurso do locutor-pesquisador .