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A instituição do regime de Esporte de Estado no Brasil

CAPÍTULO 2. A CONSTRUÇÃO DO REGIME DE FUTEBOL DE ESTADO NO BRASIL

2.7. A instituição do regime de Esporte de Estado no Brasil

O regime de Esporte de Estado foi instituído oficialmente no Brasil em abril de 1941, por meio do decreto de n°3199, publicado no Diário Oficial da União pelo presidente Getúlio Vargas. A principal medida desse decreto foi a criação de uma entidade vinculada ao Ministério da Educação e Saúde – chefiado por Gustavo Capanema – que teria a função de organizar a prática e os eventos esportivos em território brasileiro em conformidade com os interesses de seu Estado. O nome dado a esta nova entidade foi Conselho Nacional de Desportos (CND, daqui em diante). Entre os Artigos mais importantes do referido decreto, podem ser citados os seguintes:

Art. 1º Fica instituído, no Ministério da Educação e Saúde, o Conselho Nacional de Desportos, destinado a orientar, fiscalizar e incentivar a prática, dos desportos em todo o país.

Art. 12. As confederações, imediatamente colocadas sob a alta superintendência do Conselho Nacional de Desportos, são as entidades máximas de direção dos desportos nacionais.

Art. 27. Nenhuma entidade desportiva nacional poderá, sem prévia autorização do Conselho Nacional de Desportos, participar de qualquer competição internacional. Art. 34. Em toda praça de desportes, haverá lugar próprio para alojamento das autoridades policiais incumbidas de manter a ordem durante as competições. Art. 36. Não poderão promover exibições públicas de qualquer modo remuneradas, as entidades desportivas que não sejam direta ou indiretamente vinculadas ao Conselho Nacional de Desportos.

Art. 40. As exibições públicas, promovidas pelas entidades desportivas filiadas direta ou indiretamente ao Conselho Nacional de Desportos, serão isentas de quaisquer impostos ou taxas federais devendo as autoridades estaduais e municipais expedir os atos necessários a todas as isenções da mesma natureza.

Art. 46. Toda a matéria relativa à organização desportiva do país deverá ser regulada por lei federal. 182

Como se nota nos artigos do Decreto n° 3199 mencionados, a criação do CND e a delegação de poder praticamente total a esta entidade para a gestão dos esportes em nível nacional promoveu a centralização do comando do esporte brasileiro, deixando margem mínima para a ação de atores privados, como dirigentes, clubes e federações.

É notável como uma de suas principais inspirações é o cerceamento da possibilidade de um novo dissídio esportivo em território brasileiro. Outro propósito claro do decreto é deixar na mão do Estado o controle sobre praticamente todos os eventos esportivos realizado em solo nacional. Segundo Manhães183, a criação do CND foi o marcador final do ingresso dos esportes dentro da lógica corporativista de GV.

182 Texto original do Decreto n°3199 de 1941, disponivel em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940- 1949/decreto-lei-3199-14-abril-1941-413238-publicacaooriginal-1-pe.html

[Estado] corporativizador pressupõe a intervenção do Estado na dinâmica e no funcionamento das entidades civis, superpondo o público ao privado em nome da harmonia social, cuja base é a ilegitimidade do conflito como forma de convivência e, consequentemente, do pluralismo.184

Mesmo tendo um homem de confiança do Estado – Luiz Aranha – em seu comando desde 1936, a CBD ainda era uma entidade relativamente porosa às demandas de atores com interesses diversos em relação aos do Estado, como clubes e federações interessados na profissionalização e na implementação de práticas de Mercado. Nesse sentido, a criação do CND significou a majoração da influência do Estado sobre as questões do esporte nacional e a minoração do poder dos outros atores, notadamente os mais afeitos às tendências de Mercado.

A contenção das tendências de Mercado no esporte brasileiro foi um dos principais propósitos da instituição do regime de Esporte de Estado no Brasil. Desde o relatório de JA já havia a menção aos potenciais prejuízos para o Estado que as práticas de Mercado no esporte poderiam trazer. No decreto nº 3199, as movimentações para Mercado passam a ser submetidas à conveniência para os propósitos estatais, como o esporte, conforme pode ser notado no Artigo 48, cujo texto proíbe o investimento em clubes esportivos com vistas à obtenção de lucro: “Art. 48. A entidade desportiva exerce uma função de caráter patriótico. É proibido a organização e funcionamento de entidade desportiva, de que resulte lucro para os que nela empreguem capitais sob qualquer forma.”185

No mesmo ano da criação do CND, Thomas Mazzoni produziu um livro em celebração à intervenção federal nos esportes brasileiros, intitulado O Esporte a Serviço da Pátria186. Em um de seus trechos mais sugestivos, Mazzoni afirma:

Com essa nova realização do governo, o Brasil se orgulhará de ser a primeira nação da América do Sul a dar ao esporte uma função oficial [...] É fácil compreender o que representa para o esporte brasileiro estar integrado nas leis e no espírito do Estado Novo. Passará a colocar-se a serviço da Pátria, eis tudo! [...] os clubes devem obedecer e não mandar. As entidades devem disciplinar, dirigir e orientar os respectivos esportes, os dirigentes selecionados devem ser servidores da coletividade, serão administradores e técnicos e não simples politiqueiros leigos. Hierarquia, disciplina, ordem, idealismo, responsabilidade e competência, eis o que deve garantir a oficialização para o esporte nacional.187

184 Manhães, op. cit, p. 29.

185 Artigo 48 do Decreto n°3199 de 1941, disponivel em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940- 1949/decreto-lei-3199-14-abril-1941-413238-publicacaooriginal-1-pe.html

186 MAZZONI, Thomaz (sob o pseudônimo Olimpicus). O Esporte a Serviço da Pátria. São Paulo: Gazeta, 1941. 187 Mazzoni, O Esporte a Serviço da Pátria, pp. 16-7.

Ao dizer “a primeira Nação da América do Sul”, fica evidente como o editor da GE tomava os regimes de Esporte de Estado nazifascistas como exemplo a ser seguido pelo Brasil. Fosse nessa obra, fosse em obras anteriores, ou ainda nas edições diárias da GE, Mazzoni não fazia nenhuma questão de ocultar o fato de que a intervenção formal do governo sobre a administração esportiva em nível nacional representava aquilo que ele considerava a melhor solução possível para os males do esporte – e do futebol – brasileiro.

Mais do que implementar um controle estatal praticamente total sobre a administração dos clubes de futebol e federações estaduais, o Decreto nº 3199 deixava aberta a possibilidade do exercício do controle estatal sobre a própria imprensa esportiva, nos mesmos moldes do que ocorreu nos regimes de Esporte de Estado alemão e italiano.

A possibilidade de a imprensa esportiva também passar a ser vigiada pelos representantes do Estado sugeria o fim da autonomia editorial, uma significativa limitação do alcance e do potencial de vendas dos diários esportivos. Era o pesadelo da maioria dos setores da mídia esportiva brasileira. Da perspectiva de Thomaz Mazzoni, porém, isso soava como uma solução:

[...] A esta [imprensa], exclusivamente a esta [imprensa], cabe a dupla degeneração do espírito esportivo de nossa gente através de tantos anos de envenenamento do ânimo do público esportivo, contaminando-o totalmente de paixão facciosa, longe, muito longe das verdadeiras virtudes esportivas. Essa tem sido obra de uma irresponsabilidade criminosa, em prejuízo de nossa mocidade esportiva, a dano total do ideal e da causa esportiva do Brasil!188

O editor da GE entendia que a imprensa esportiva como um todo deveria possuir um papel orientador e apaziguador sobre aqueles para os quais se dirigia tanto por meio de jornais quanto por meio de transmissões radiofônicas. Se isso não ocorresse de forma espontânea, o autor defendia que cabia efetivamente ao Estado agir no sentido de exercer controle sobre aquilo que era publicado pela imprensa esportiva:

Nossa nobre função [função da imprensa esportiva] deve ser bem compreendida. Não é o caso de recusarmos reconhecer essa responsabilidade, como o exterioriza um nosso prezado colega carioca, vendo na inovação de um futuro controle do D.I.P [Departamento de Imprensa e Propaganda]. somente um “arrolamento”, uma “censura”, como se tudo que tem feito, até o presente, parte dessa nossa imprensa esportiva tenha sido obra sã! Não! Nossa função, infelizmente, tem sido errada, [...] e é justamente com a doutrina e os princípios do Estado Novo que devemos,

colaborando disciplinadamente com o D.I.P., ser dignos de elevada missão, toda educacional.189

A questão da subordinação da imprensa esportiva ao controle do Departamento de Imprensa e Propaganda190 (DIP) do governo Vargas colocou Mazzoni e Mário Filho definitivamente nos polos do espectro da mídia esportiva brasileira. O ítalo-brasileiro, alinhado às pretensões estadonovistas para o esporte, defendia que o DIP deveria, de fato, exercer controle sobre as informações publicadas pela imprensa esportiva.

Mário Filho, referido por Mazzoni no excerto acima como o “colega carioca” não tinha na constituição editorial de seu jornal um projeto moral nos termos que eram requeridos pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Por esta razão, o Jornal dos Sports era muito mais receoso do que A Gazeta Esportiva em relação aos rumos que seriam tomados pela imprensa esportiva brasileira a partir de então. A GE, por meio de seu Editor-chefe, não somente apoiou como também foi coidealizadora da regulação que agora se apresentava para a mídia esportiva brasileira.

Sob a ótica mazzonista a desarmonia no esporte, representada por posturas indisciplinadas e clubistas, deveria ser controlada não somente no âmbito dos governing bodies, mas também na Mídia. A tendência ao dissídio deveria ser controlada em todas as dimensões do esporte:

A trindade maldita do esporte brasileiro tem sido constituída pela cisão, indisciplina e clubismo. [...] desde que nasceu o esporte no Brasil, sua história está cheia de capítulos de dissídios, consequência do mau espírito clubístico e da degenerada disciplina. Exterminar a cisão é missão muito simples, pois sendo oficializada e reconhecida uma só entidade, para cada modalidade, não será possível, futuramente, qualquer outra cisão, por questões mesquinhas pessoais ou por ambição de clubes. Fora de cada entidade oficial nenhuma atividade será permitida. Fecha-se, desse modo, automaticamente, a válvula do dissídio, culpado de tantos males ao esporte brasileiro.191

O CND veio para preencher uma lacuna existente no espaço entre esporte e política brasileiros desde meados dos anos 1930, e o homem nomeado para seu comando por Getúlio Vargas foi João Lyra Filho, jurista e professor da Universidade do Estado da Guanabara. Acredita-se que Lyra Filho foi um dos redatores do Decreto nº 3199, responsável pela criação do próprio CND. A seu lado, foi nomeado como membro permanente Luiz Aranha, presidente

189 Mazzoni, O Esporte a Serviço da Pátria, p. 96. Grifos meus.

190 O D.I.P.: sigla para Departamento de Imprensa e Propaganda era um órgão estatal, criado por Vargas, durante o Estado Novo para exaltar o regime e controlar as informações que circulavam no país enquanto ele vigorasse. 191 Mazzoni, O Esporte a Serviço da Pátria, pp. 27-8.

em exercício da CBD, que acumularia dessa forma os dois cargos. Além desses, outros dois homens comporiam a cúpula da entidade estatal responsável pela gestão do Esporte de Estado no Brasil: José Lima Figueiredo e José Eduardo Macedo Soares192.

O projeto de Lyra Filho evidentemente não era abolir o profissionalismo no futebol brasileiro de forma retroativa, já que os custos políticos seriam gigantes e isso romperia com todo o trabalho para conciliação de interesses promovido por Luiz Aranha desde 1936. O que, de fato, estava no horizonte projetado por Lyra era a restauração de uma moralidade esportiva que – segundo seu discurso – havia sido “perdida” com a vitória do projeto profissional de futebol no Brasil nos anos 1930. Esse resgate da “moral amadora” não se daria no âmbito das relações entre clubes e jogadores, mas sim no âmbito da mensagem passada pelo esporte para o público que o acompanhava, e isso passava necessariamente pela cobertura jornalística feita sobre o futebol brasileiro.

Durante o tempo em que o futebol profissional vigorou com alguma liberdade no país (1937-1941), Mário Filho e seu JS foram os principais comunicadores do esporte brasileiro. A fundação do CND e sua evidente disposição em abraçar uma moral nacionalista amadora em detrimento da profissional – que era um dos pilares do JS – foi um balde de água fria na cabeça de Mário Filho e seus sócios.

Apesar de manter seu nível de vendas relativamente estável e de continuar sendo o periódico esportivo mais vendido no Brasil durante o Estado Novo, do ano de 1941 em diante o JS deixou de ser a voz oficial dos esportes brasileiros, justamente pelo fato de não possuir uma linha editorial em harmonia com os propósitos do regime de Esporte de Estado que se instaurava no Brasil e pelo fato de haver, em São Paulo, um concorrente disposto a exercer esta função em sua plenitude. O regime de Esporte de Estado varguista retira, portanto, o protagonismo político de mídia esportiva do JS e o coloca sobre a GE.

Dessa forma, a partir de 1941, o governo Vargas começou um processo de adequação de todos os setores relacionados ao esporte brasileiro com os propósitos estatais planejados para ele.

O primeiro passo foi a instituição de um governing body estatal para a gestão esportiva, o Conselho Nacional de Desportos, que colocou todos os outros governing bodies do Brasil a serviço do Estado. O segundo passo foi o estabelecimento de um vínculo de afinidade com um

192 Cf. Carta de João Lyra Filho a Gustavo Capanema, Ministro da Educação e responsável pelo CND, datada de 28 de dezembro de 1943. Disponível no acervo do CPDOC-FGV, microfilme. Rolo 42, foto 645.

canal da imprensa simpático à ideia de um regime de Esporte de Estado no Brasil, a saber, A Gazeta Esportiva, de Thomaz Mazzoni.

Tendo o regime de Esporte de Estado varguista aumentado os controles exercidos sobre os governing bodies e a Mídia Esportiva, o passo seguinte foi o aumento do controle sobre as atividades dos clubes de futebol propriamente ditos.