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O regime de Futebol de Estado na Espanha

CAPÍTULO 1. AS ORIGENS DO REGIME DE FUTEBOL DE ESTADO

1.3. O regime de Futebol de Estado na Espanha

Os regimes de Futebol de Estado italiano e alemão tornaram-se referência mundial, especialmente após as Copas do Mundo de 1934 e 1938 – ambas vencidas pela Itália – e dos Jogos Olímpicos de 1936, vencidos pela Alemanha. Esses eventos demonstraram como o uso político do esporte e de representações esportivas nacionais era capaz de gerar boa reputação para um Estado, tanto em nível doméstico como em nível internacional.

Lançadas as bases por Hitler e Mussolini para o uso político sistemático dos esportes em nível nacional e obtendo muito sucesso pela exploração dos regimes de Esporte de Estado implementados em seus respectivos países, ao final da década, outros países já estavam interessados na exploração política do esporte nos moldes nazifascistas. Um deles era a Espanha, então governada por Francisco Franco.

O primeiro passo dado no sentido da instituição do regime de Esporte de Estado na Espanha aconteceu poucos dias após o final da Guerra Civil (ocorrido em abril de 1939), quando o governo espanhol enviou José Moscardó para Berlim, a fim de tomar parte nas celebrações de aniversário do chanceler alemão, Adolf Hitler65.

A missão de Moscardó na Alemanha era estabelecer contatos com membros das administrações esportivas da Itália e Alemanha, que também estariam presentes às festividades. Em meio às pessoas mais importantes do regime de Futebol de Estado da primeira metade do século XX, Moscardó foi bem-sucedido em sua missão e conseguiu estabelecer acordos com os dirigentes de ambas as federações (alemã e italiana) 66.

À luz da experiência nazifascista, os espanhóis objetivavam atrelar ao esporte um sentido de virtude patriótica e serviço à Nação, o que pode ser averiguado por meio da fala do presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), o Coronel Troncoso:

Será necesario que todos vayan habituándose a la idea de que en el futuro inmediato el deporte no es una alegre distracción, sino un modo complementario e indispensable por el que la Patria mejora y depura a sus hombres para tenerlos aptos en todo instante en que pueda necesitarlos67.

A comparação dos termos da fala de Troncoso com os termos apresentados nos textos do Departamento Nacional de Educação Física [Deutsche Reichsausschuss für Leibesübung],

65 Apud BOWEN, Wayne H. Spain during World War 2. Columbia/London 2006, p. 144. 66 Cf. Bowen, op. Cit., p. 144.

67 Fala original do coronel Julian Troncoso, presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, reportada pelo jornal La Voz de Galicia em 5 de dezembro de 1939, in FERNANDEZ SANTANDER, Carlos. El fútbol durante la guerra civil y el franquismo, Madrid, 1990, p. 65, apud Ackermann Zwischen politischer Instrumentalisierung und Eskapismus, op. cit., pp. 114-5.

durante a República de Weimar, na Alemanha é inevitável: em ambos os casos, pessoas responsáveis pela elaboração de políticas esportivas em âmbito nacional apontavam a educação física e a prática esportiva como essenciais para a construção e o fortalecimento da “Pátria” e destacavam a necessidade de seu progresso, inclusive para propósitos militares68.

A importância dos modelos de Esporte de Estado italiano e alemão para a experiência espanhola são externadas pelo General José Moscardó, o responsável do governo franquista pela gestão dos esportes:

El engranaje no es aún perfecto; la máquina tardará en funcionar el tiempo preciso para su total constitución dadas las dificultades económicas naturales; pero, por vez primera, sabemos que, si hoy somos poco, mañana seremos mucho, porque hemos encontrado un ideal y unos medios para allegar a él, como antes llegaron las juventudes de Italia y Alemania69.

Da mesma forma que a implementação dos regimes de Esporte de Estado nazifascistas ocorrera, também na Espanha esse processo veio acompanhado da centralização do comando esportivo nacional em uma entidade, cujo comando era exercido por uma pessoa alinhada ao regime. No caso espanhol, a entidade estatal criada com a função de gerir nacionalmente o esporte foi a Delegación Nacional de Deportes (DND), criada oficialmente no dia 22 de fevereiro de 1941.

A DND foi criada pelo governo Franco para controlar a organização dos esportes nacionais de acordo com os interesses falangistas, cujos principais quadros eram militares. Dessa forma, o discurso que associava a Educação Física do povo ao aumento da potência de defesa militar do país era uma das premissas básicas do funcionamento da entidade:

La política del Estado Falangista, orientada hacia la unidad y fortalecimiento de cuantas actividades conduzcan a la más firme potencia de la patria, no puede descuidar de modo alguno al deporte, en que encuentra uno de los principales instrumentos para la entera educación del hombre español70.

O homem designado por Franco e seus aliados para presidir este governing body foi o próprio Moscardó, cuja missão principal seria, portanto, dar conteúdo ideológico à educação física e aos esportes na Espanha, isto é, estabelecer um modelo de Esporte de Estado aos mesmos moldes da Alemanha nazista71.

68 Cf. ACKERMANN, Jürg. Zwischen politischer Instrumentalisierung und Eskapismus: Der spanische Fußball während des weiten Weltkriegs, in Herzog, Markwart & Brändle, Fabian (org): Europäische Fussball während des zweites Weltkriegs, 2015, pp. 111-127, p. 114.

69 Fala original do General José Moscardó, chefe da Casa Militar do governo Franco entre 1939-1943, reportada pelo jornal El Alcazar em 23 de novembro de 1941, in SHAW, Duncan. Fútbol y Franquismo, Madrid 1987, p. 78. Apud Ackermann Zwischen politischer Instrumentalisierung und Eskapismus, op. cit., p. 115.

70 Boletim oficial da Delegación Nacional de Deportes, órgão falangista para gestão esportiva na Espanha. Publicado em 1º de Abril de 1943. Cf. Shaw, op. cit., p. 31.

A DND de Moscardó tinha poderes sobre todos os esportes praticados em território espanhol, o que inclui o futebol, modalidade cuja entidade máxima na Espanha era a Real Federación Española de Fútbol (RFEF). Da mesma forma que a FIGC, na Itália, a DFB, na Alemanha, e CBD, no Brasil, a RFEF era uma entidade privada que, com a instituição do regime de Esporte de Estado no país, passou a servir como instrumento político para o ditador local.

Dessa maneira, a interação existente entre DND e RFEF é interessante para os propósitos dessa tese, porque é nela onde se pode perceber a transição do regime de Futebol em Sociedade Civil, vigente até então, para o regime de Futebol de Estado. Sobre a relação entre DND e RFEF, Shaw faz a seguinte descrição:

DND domination of the RFEF reached its height during the iron reign of General Moscardó from 1941 to 1956. [...] The war hero hired and fired the RFEF Presidents, Vice-Presidents and directors at will, regularly demonstrating his lack of patience with men who were not sufficiently zealous in applying Fascist symbolism to the game, or men who were unable to make the national team an unstoppable force in world football.72

O controle do General Moscardó sobre a RFEF, entre 1941 e 1956 – por meio da DND, o governing body estatal para controle esportivo nacional –, sugere que o regime de Futebol de Estado na Espanha durou ao menos quinze anos.

O regime de Futebol de Estado espanhol possui uma particularidade em relação aos outros regimes de Futebol de Estado apresentados anteriormente: embora Alemanha e Itália tivessem passado por processos de unificação nacional num tempo não muito distante em relação à instituição de seus respectivos regimes de Futebol de Estado, naqueles países o Futebol não era veículo para a expressão de tendências separatistas. Sobre esse assunto, deve- se dizer que na Itália, principalmente, o futebol foi veículo para expressão de identidades locais em detrimento da nacional, o que ficou conhecido como campanilismo.

O campanilismo do futebol italiano não se traduzia, porém, em uma tendência antinacionalista. Tratava-se meramente de um destaque da identidade local perante outras identidades locais italianas.

Na Espanha, especificamente a região da Catalunha e a do País Basco antepunham suas identidades locais à identidade de abrangência nacional que o governo franquista, sediado em Madrid, queria lhes impor. Conforme o regime de Futebol de Estado passou a vigorar sob a

72 SHAW, Duncan. The political instrumentalization of profesional football in francoist Spain, 1939-1975. PhD Thesis, University of London, 1988, p. 29. A fórmula é disponível em

https://qmro.qmul.ac.uk/xmlui/bitstream/handle/123456789/1899/SHAWPoliticalInstrumentalization1988.pdf?s equence=1, consultado em 05 de junho de 2018.

batuta franquista, o catalão F.C. Barcelona e o basco A.C. Bilbao passaram a concentrar as manifestações de orgulho identitário local de tendências separatistas contra as imposições identitárias nacionalistas – de viés alegadamente madridista –, vindas do governo nacional.

Num contexto de grande censura à expressão de elementos da identidade catalã em meio à ditadura franquista, há registros de que o estádio do Barcelona, o Camp Nou, era o único lugar em que a identidade catalã podia ser vivida e exaltada sem restrições nesse período73.

Por essa razão, F.C. Barcelona e A.C. Bilbao foram os clubes que mais sofreram durante a implementação do regime de Futebol de Estado franquista, que interferiu na composição de seus quadros diretivos de ambos os clubes, interveio em suas respectivas gestões e impôs a adequação dos nomes dos clubes à língua espanhola sob o argumento da espanholização do futebol nacional74.

A intervenção do Estado em assuntos internos da gestão de clubes e mesmo a cassação da licença de funcionamento de clubes considerados uma ameaça à ordem pública ocorreu também durante a implementação do regime de Futebol de Estado no Brasil sob o argumento da nacionalização do esporte. Esse assunto será tratado com mais densidade no próximo capítulo.

Os elementos trazidos nesta seção apontam, portanto, que Franco, assim como seus inspiradores Hitler e Mussolini, acreditava que os esportes poderiam ser uma ferramenta para atrair os jovens para as atividades do Partido, para melhorar a qualidade da “raça nacional” e demonstrar a superioridade desta raça perante o próprio país e perante o mundo em competições internacionais, como os Jogos Olímpicos ou a Copa do Mundo75. Além da propaganda estatal, o esporte também foi usado para atender a demandas militares no sentido de garantir melhores condições para a formação de quadros e soldados empenhados para a defesa nacional em caso de conflitos bélicos internacionais.

73 Cf. Ackermann, Zwischen politischer Instrumentalisierung und Eskapismus, in Herzog & Brändle, op. cit., p. 125.

74 Cf. Ackermann, Zwischen politischer Instrumentalisierung und Eskapismus, in Herzog & Brändle, op. cit., p. 116 e 124.