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A posição dos torcedores nos regimes de Futebol de Estado europeus

CAPÍTULO 1. AS ORIGENS DO REGIME DE FUTEBOL DE ESTADO

1.5. A posição dos torcedores nos regimes de Futebol de Estado europeus

O controle ou a influência sobre a mídia esportiva foi de fundamental importância para o sucesso dos regimes de Futebol de Estado apresentados até este ponto da tese. Isso porque, especialmente no momento de instituição do regime de Futebol de Estado, a recepção dos novos códigos esportivos não acontece de forma natural e espontânea por parte daqueles que frequentam as praças de esporte.

Como afirmado na Introdução, a Educação Física e o Esporte não pertencem ao Estado a priori. Trata-se de atividades praticadas em Sociedade Civil, passíveis de serem ou não instrumentalizadas politicamente pelo Estado. Isso significa que a instituição do regime de Futebol de Estado rompe com o ordenamento prévio das coisas no mundo esportivo, o que gera, por parte do Estado, a necessidade de um ente que consiga orientar a população dentro das novas normativas estabelecidas pelo poder político.

Foi afirmado que, nos anos 1930, os Estados não possuíam capacidade comunicativa suficiente para atingir suas populações com meios próprios, e por esta razão acabaram por cooptar as mídias em nível nacional, tornando-as ferramenta para a transmissão de suas próprias mensagens.

A partir do momento em que o Esporte e a Educação Física se tornam questões de Estado, torna-se interesse do próprio Estado que a mídia esportiva – que já penetrava o cotidiano dos cidadãos interessados no assunto – tenha vida própria e participe da construção do novo significado político do Esporte.

A imprensa esportiva era o único veículo capaz de estabelecer, no nível dos torcedores e simpatizantes de esporte, o comportamento esperado pelo Estado que, apesar de ser superpoderoso, não possuía canais de comunicação difusos o suficiente para penetrar o fluxo informativo da vida cotidiana dos cidadãos.

Conforme o interesse popular pelo esporte aumenta, alguns efeitos inesperados começam a se manifestar. Os efeitos inesperados que interessam aos propósitos desta tese são aqueles que envolvem os torcedores de futebol. No caso dos regimes de Futebol de Estado europeus, as únicas ocorrências sobre torcedores que são informadas são aquelas que envolvem práticas violentas de sua parte. Dessa forma, é a partir desse tipo de registro que se deve reconstruir a maneira como a relação entre mídia e torcedores e a relação entre Estado e torcedores se dava nesses contextos.

No que diz respeito a brigas de torcidas, possivelmente o registro mais importante a ser mencionado nesta seção é o de uma briga de torcidas ocorrida na Itália, antes mesmo que o futebol local tivesse ingressado num regime de Futebol de Estado. Trata-se provavelmente da primeira grande briga entre torcidas de futebol registrada na história. Os fatos relatados aconteceram na cidade de Turim, na Itália, no dia 25 de maio de 1925, por ocasião de um jogo entre Genoa e Bologna97. Conta Martin que se tratava de um jogo de playoff entre as duas equipes pela Lega Nord, antecessora nortista da Serie A italiana. Os jornais de cada uma das cidades trocaram insultos durante a semana que antecedeu o jogo e os ânimos já estavam extremamente acirrados. Acabada a partida, os torcedores de cada uma das equipes se dirigiram à estação de trens para voltar a suas respectivas cidades e, por coincidência, as plataformas dos trens de destino Bologna e Gênova eram adjacentes.

Havendo uma multidão de torcedores das duas equipes ainda inflamados com os ânimos da partida dividindo o mesmo espaço, a briga começou já na plataforma e se alastrou por toda a estação até seus trilhos. No ápice do conflito, um tiro foi disparado, aparentemente de um vagão onde estavam os torcedores do Bologna. O clube foi punido pela FIGC a pagar uma multa de cinco mil liras pelo incidente.

Diante da punição imposta pela FIGC, o próprio presidente do Bologna tomou partido em favor dos torcedores de seu clube, argumentando que os atos obscenos, as pedras atiradas e os tiros com armas de fogo haviam começado com os torcedores do Genoa.

Mesmo após a instituição do regime de Futebol de Estado na Itália, os confrontos entre torcidas continuaram acontecendo. O jornal Lo Stadio registrou, em 1932, informações sobre um conflito ocorrido entre bolonheses e florentinos, por ocasião de uma partida disputada em Bologna. O jornal relata que florentinos foram atacados por locais bolonheses em seu caminho de volta para casa, uma ato de covardia que fazia o jornal questionar o status de torcedor [fan] dos bolonheses98.

O Futebol de Estado italiano possui uma peculiaridade: ele foi desenhado pela própria FIGC – comandada por gente do CONI, fascista – para representar comunidades locais com identidades pré-formadas perante um país de recente e conflituosa unificação. Nesse contexto, as rivalidades inter-regionais eram dadas, e o futebol acabou por tornar-se uma válvula de escape para a expressão de todos os sentimentos localistas que foram aniquilados tanto pela unificação quanto pelo próprio regime fascista. O termo em italiano para se referir aos diversos

97 Cf. La Voce Sportiva, 26 de maio de 1925, apud Martin, op. cit., p. 72.

pertencimentos locais que se convertiam em beligerância e desarmonia é campanilismo. O governo fascista tomava o campanilismo como um movimento antinacionalista e, portanto, um mal a ser combatido.

O paradoxo é que, ao mesmo tempo em que o Futebol de Estado italiano fomentava a integração nacional, ele fomentava também a união de identidades locais ao redor de cada clube. Nesse contexto, não raro surgiam questionamentos a respeito do quão interessante era – do ponto de vista do Estado – mobilizar uma relevante quantidade de força e investimento público para promover um evento esportivo que, no fundo, tendia a agravar rivalidades locais em detrimento da comunhão entre diferentes setores da Itália:

On the other hand, if a football match needs to mobilize such public force, as much as used to be necessary to check an attempt against the powers of the State, it has to be asked if it is right to allow the public the opportunity to participate in certain Sporting events. […] As interpreters of the feeling of our sporting public we do not want Florentines to forget the offence in the Bolognese city, when ‘Fiorentina’ hosts ‘Bologna’ and its supporters. But we also demand for the prestige of the Italian sport, for that spirit of fraternity and brotherhood that needs to tie all of the sporting masses of Italy, for the good name of our people… the hour has truly arrived to end certain habits that, in the 11th year of the Fascist revolution, cannot and need not be

tolerated.99

Em termos disciplinares, talvez seja possível dizer que a Itália foi o mais brando entre os regimes de Futebol de Estado. As primeiras medidas de segurança adotadas pela FIGC em relação ao comportamento dos torcedores envolviam a proibição da venda de bebidas alcoólicas, e entrada com objetos que pudessem ser atirados em campo, como pode ser checado no trecho abaixo:

Com o início da disputa da Série A, passou a ser proibido entrar nos estádios com guarda-chuvas e bengalas. A venda de bebidas também foi proibida por os torcedores com frequência as atiravam contra jogadores e dirigentes. A presença da política também foi fortalecida. No caso de invasão do campo de jogo, intervinha a cavalaria100.

Não há, na bibliografia sobre o caso italiano, nenhum registro de medidas adotadas pelo próprio governo no sentido de punir os próprios torcedores de futebol por comportamento violento dentro ou fora dos estádios. Isso não se aplica aos casos de Alemanha e Espanha. Já durante a República de Weimar, conta Oswald, os clubes eram responsabilizados pelo eventual

99 Cf. Lo Stadio, na página 1 no dia 20 de novembro de 1932, Editorial: Finiamola. Apud Martin, op. cit., p. 165. 100 Tradução livre de Impiglia, op. cit., p. 169.

Trecho original: „Mit der Gründung der Serie A wurde es verboten, Regenschirme und Stöcke ins Stadion mitzunehmen. Auch der Getränkeverkauf wurde untersagt, da die Zuschauer diese häufig gegen Spieler und Funktionäre warfen. Die Präsenz der Polizei (vor allem in Zivil) wurde verstärkt. Kam es zu einer Invasion des Spielfeldes, intervenierten berittene Carabinieri.“

mau comportamento de seus torcedores101: “Por fim, os clubes eram responsabilizados pelo comportamento de seus torcedores. Eventuais ataques ou qualquer violência contra os árbitros eram punidos com fechamento do estádio ou até exclusão de torneios”102.

A punição aos clubes era uma resposta da Federação alemã de futebol à usual parcialidade das equipes de segurança que trabalhavam nos jogos de futebol, que tendiam a proteger torcedores, dirigentes e jogadores dos clubes locais, e deixar desprotegidos árbitros e torcedores adversários.

Ao falar sobre violência nas arquibancadas de futebol durante a República de Weimar, Oswald menciona as punições de federações aos clubes, mas não há menção a punições a torcedores mal comportados, individualmente falando. Esse quadro de aparente tolerância a mau comportamento de torcedores muda radicalmente após o ingresso dos nazistas no comando do esporte alemão.

Depois da nazificação [Gleichschaltung] do esporte e a introdução do sistema de ligas locais, em 1933, o primeiro passo foi o endurecimento das regras disciplinares. Punições draconianas foram estabelecidas. Jogadores ou torcedores que incorressem em atos de violência tinham que levar em conta que poderiam ficar banidos dos estádios por anos, ou – dependendo da gravidade do ato – para sempre. Clubes cujos torcedores fossem reconhecidos como perpetradores de violência eram ameaçados com a liquidação. Em alguns casos do Terceiro Reich, era planejada também a proteção aos estádios. Além das unidades policiais ordinárias e das equipes de segurança dos clubes, a partir de 1933 a própria SA103 passou a operar no serviço de

segurança104.

A participação das milícias do partido nazista (SA) no serviço de segurança de partidas de futebol evidencia a importância atribuída pelo Regime Nazista ao ritual futebolístico. O governo mobilizava suas melhores e mais potentes forças para garantir que as emoções vividas numa partida de futebol, vinculadas ao pertencimento a uma comunidade (agora, submetida ao Estado) pudessem ser vividas em sua plenitude pelo público.

101 Oswald, op. cit., p. 288.

102 Tradução livre de Oswald, op. Cit., p. 289. Trecho original: „Schließlich wurden die Vereine für das Verhalten ihrer Fans in Haftung genommen, wurden Übergriffe sowie Tätlichkeiten gegenüber den Schiedsrichtern mit Platzsperren und Verbandsausschlüssen geahndet.“

103 SA [Sturmabteilung], a milícia paramilitar do partido nazista, foi responsável por considerável fatia das atrocidades cometidas pelo regime contra a população civil. Sua presença para assegurar a segurança em jogos de futebol diz muito sobre a importância do esporte para o regime.

104 Tradução livre de Oswald, op. Cit., p. 291. Trecho original:

„Nach der Gleichschaltung des Sports und der Einführung des Gauligensystems 1933 wurde zunächst verstärkt auf Disziplinierung gesetzt. Drakonische Strafen waren an der Tagesordnung. Als Schläger auffällig gewordene Spieler oder Zuschauer mussten damit rechnen, auf Jahre, manchmal sogar auf Lebenszeit, von den Plätzen verbannt zu werden. Klubs, deren Fans sich als Gewalttäter zu erkennen gaben, drohte die Liquidation. In einigen Fällen rüstet wurde im Dritten Reich auch der Schutz der Stadien. Neben regulären Polizeieinheiten und den Ordnungskräften der Vereine fungierte seit 1933 die SA als Sicherheitsdienst.“

Por fim, cabe mencionar que o regime alemão de Futebol de Estado não foi o único a impor um código de comportamento extremamente rígido para aqueles que participavam de eventos esportivos.

O jornal espanhol Marca, em 1943, menciona expressamente a possibilidade do envio de torcedores indisciplinados para campos de concentração, como pode ser conferido abaixo:

Una importante nota de la dirección nacional de seguridad: Sobre la antideportiva actitud del público en los partidos de fútbol. Serán detenidos aquellos que realicen cualquier agresión de obra o de palabra y internados en campos de concentración. Por informes procedentes de distintas provincias, se observa en esta Dirección General que cada día más se va poniendo de relieve una actitud antideportiva del público que presencia los partidos de fútbol con lamentables manifestaciones105.

Muito embora possa-se suspeitar que a SA também mandasse torcedores indisciplinados para campos de concentração – não soaria absurdo dentro da lógica nazista –, isso não é em nenhum momento dito abertamente por Oswald, nosso interlocutor.

De todo modo, sabemos que os três países europeus que adotaram um regime de Futebol de Estado ainda na primeira metade do século XX tiveram, de alguma maneira, que lidar com a questão dos comportamentos "desviantes" dos indivíduos que compareciam aos estádios para assistir uma partida de futebol.

105 Cf. Jornal Marca, 02 de dezembro de 1943. In: Ackermann Zwischen politischer Instrumentalisierung und Eskapismus, op. cit., p. 116.