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O regime de Esporte em Sociedade Civil no Brasil

CAPÍTULO 2. A CONSTRUÇÃO DO REGIME DE FUTEBOL DE ESTADO NO BRASIL

2.1. O regime de Esporte em Sociedade Civil no Brasil

Ao contrário da Alemanha, onde a prática esportiva já era bastante disseminada em diversos níveis da Sociedade Civil antes que o governo nazista assumisse o poder, no Brasil dos anos 1920 e início dos anos 1930 a Educação Física e a prática esportiva eram restritas a pequenos setores da sociedade, normalmente setores economicamente abastados.

O futebol veio ao Brasil como um sport para a elite, ao final do século XIX. Os clubes que o praticavam eram poucos, os torneios que disputavam eram pequenos e restritos, bem como sua organização era pulverizada e conflituosa.

A organização e o funcionamento das ligas de futebol nas duas maiores cidades do país nas primeiras décadas do século XX evidenciam o quão precárias eram as disputas esportivas no Brasil até então.

No Rio de Janeiro, a primeira liga de futebol foi criada em 1905 e chamava-se Liga Metropolitana de Football (LMF)115. Em 1907, mudou o nome116 para Liga Metropolitana de Sports Athleticos (LMSA). Em 1911, alguns clubes criaram a Associação de Football do Rio de Janeiro (AFRJ), que teve um torneio paralelo ao da LMSA até 1917, quando foi criada a Liga Metropolitana de Esportes Terrestres (LMDT), que voltou a agregar todos os clubes. Ela manteve a união dos clubes cariocas até 1924, quando foi criada a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA), que nesse ano dividiu espaço com a LMDT, mas passou a absorver todos os clubes em 1925. A AMEA foi hegemônica até 1933, quando os clubes profissionais fundaram a Liga Carioca de Futebol (LCF), para rivalizar com a AMEA117.

As inúmeras siglas do parágrafo acima sugerem que o futebol na capital do Brasil era livre da ação de forças exteriores ao jogo, e ao mesmo tempo totalmente dependente da boa- vontade dos dirigentes dos clubes. A ausência de uma coerção de ordem superior fazia – para o bem e para o mal – com que, ao menor sinal de descontentamento ou desfavorecimento esportivo ou político, dirigentes de clubes não titubeassem na hora de dissidiar e criar federações de futebol concorrentes. Os efeitos disso eram que as federações e torneios possuíam uma existência bastante efêmera, mudavam de nome ou de estrutura praticamente todo ano, e não havia nada que se pudesse apontar como referência estável no futebol nacional.

115 NAPOLEÃO, Antônio Carlos. História das Ligas e federações do Rio de Janeiro (1905-1941). In: Memória Social dos Esportes II - Futebol e Política: a Constituição de uma identidade nacional. Rio de Janeiro: Editora Mauad, Faperj, 2006, pp. 81-106.

116 Cf. Napoleão, op. cit., p. 84. 117 Cf. Napoleão, op. cit., pp. 81-101.

Boa parte dos conflitos entre clubes e federações de futebol ocorridos no Rio de Janeiro nos primeiros 40 anos do século XX dizem respeito à regulação do regime de Esporte em Sociedade Civil.

Por ser praticado por distintos clubes privados, o sucesso e a organização eficiente do futebol carioca eram totalmente dependentes do consenso entre os atores da Sociedade Civil interessados na modalidade. No entanto, por ter sido trazido e iniciado no Brasil pela elite nacional, a prática do futebol mantinha contornos claramente aristocratas. Entendia-se, a princípio, que o esporte deveria ser praticado de forma espontânea e voluntária por pessoas que possuíam uma formação social superior e condições financeiras para ser sócios pagantes dos clubes onde este jogo era praticado. Ser sócio de um clube implicava possuir um ethos social distinto. A distinção social por meio da prática esportiva ganhava vida e significação no vocábulo sportsmen, utilizado pela mídia para se referir a tal grupo seleto.

Dentro da ideologia amadora característica do regime de Esporte em Sociedade civil, que prescreve a prática esportiva entre homens iguais e livres com o objetivo de produzir mutuamente o bem-estar mental e corporal, o recebimento de compensações financeiras para participação em competições esportivas era visto como uma subversão dos valores morais do esporte.

Moralidade à parte, é evidente que no âmbito competitivo poderia ser extremamente vantajoso para um clube “adotar” um jogador tecnicamente diferenciado em seus quadros, mesmo que não fosse sócio, para competir com outras equipes formadas exclusivamente por sócios. É neste momento que se delineia o dilema da remuneração e do profissionalismo.

Num modelo puro de Futebol em Sociedade Civil, o fundamento moral é a voluntariedade da participação de cada jogador e seu pertencimento social à equipe cuja camisa veste. A introdução do dinheiro representa a corrupção desta ideologia no sentido do Mercado, já que converte em trabalho para uns aquilo que era tido como uma diversão para os outros.

A maior parte das brigas, desentendimentos e dissídios ocorridos no futebol carioca, do início do século XX, deveu-se a dissensos em relação à entrada ou não do dinheiro no futebol, o que implicava, consequentemente, na entrada de elementos de origem social mais humildes no campo de jogo até então dominado por fidalgos. Isso fica evidente no seguinte trecho, retirado do regulamento do torneio carioca de futebol118 de 1917:

Serão aceitos os sportsmen que preencherem as seguintes condições: a) ser amador; b) ser sócio do clube proponente; c) residir na região jurisdicionada da Liga; d) exercer profissão honesta; e) estar no gozo de seus direitos civis e políticos; f) saber

ler e escrever; g) ter moralidade comprovada. Será negado registro aos sportsmen que estiverem incursos nas seguintes disposições: a) aos profissionais; b) aos mendigos; c) aos analfabetos.119

Como se pode notar, em 1917 os jogadores profissionais eram colocados na mesma categoria de analfabetos e mendigos pelo redator do regulamento. Esse trecho é sintomático da forma pela qual parte dos praticantes do esporte sentiam-se incomodados ao dividir o campo com jogadores assalariados que – em boa parte das vezes – eram de origem pobre.

O caso mais ilustrativo dessa questão é o do Clube de Regatas Vasco da Gama (somente “Vasco”, daqui em diante), que no início dos anos 1920 deu passos mais contundentes no sentido do Mercado e incorporou uma série de jogadores oriundos da periferia da cidade do Rio de Janeiro. As práticas adotadas pelo Vasco eram claramente profissionalistas, mas como o profissionalismo ainda era proibido devido à hegemonia da moral amadora no esporte, o expediente utilizado pelos portugueses vinculados ao Vasco120 era registrar os jogadores contratados pelo clube como funcionários de seus respectivos comércios. Tendo um quadro que possuía jogadores assalariados como seus representantes em campo, o Vasco foi campeão carioca em 1923, o que abalou as estruturas institucionais do futebol local.

O “profissionalismo marrom”, vitorioso com o Vasco em 1923, indicava que a ruptura com a moral amadora e a introdução de práticas de Mercado no futebol eram extremamente vantajosas do ponto de vista da competitividade de um time de futebol. As práticas de Mercado adotadas pelo Vasco abriram o precedente para que qualquer cidadão que soubesse jogar futebol pudesse ter um emprego estável como jogador. Era um prenúncio de que o talento com a bola no pé teria prioridade sobre as origens sociais dos jogadores.

Desse momento em diante, apesar de socialmente condenadas pela moral amadora que ainda era hegemônica nos esportes brasileiros, as práticas de Mercado foram ganhando cada vez mais espaço, notadamente pelo expediente do chamado profissionalismo marrom.

A despeito da resistência de alguns setores do esporte brasileiro em adotar o profissionalismo no futebol, ainda nos anos 1920 países como Argentina e Uruguai já o haviam instituído121.

O primeiro efeito da instituição de um regime profissional para jogadores de futebol é a criação de um mercado de jogadores. A qualidade de um jogador com a bola nos pés passa a ter valor financeiro. Nesse contexto, a instituição do profissionalismo nos países vizinhos ao

119 Napoleão, op. cit., p. 90. 120 Cf. Napoleão, op. cit., p. 95.

121 RODRIGUES FILHO, Mário. O negro no foot-ball brasileiro. Rio de Janeiro: Irmãos Pognetti, 1947. Pp. 227- 31.

Brasil funcionava como um forte mecanismo de pressão para sua instituição no Brasil, pois, a despeito da proibição do recebimento de dinheiro para a prática do futebol no país, era possível para qualquer jogador cruzar a fronteira e lucrar com seu talento esportivo nos países platinos, por exemplo. Dessa forma, com exceção dos jogadores de origem nobre que possuíam um meio alternativo ao futebol para se sustentar, os jogadores viam condições de trabalho muito mais interessantes no estrangeiro122 do que em seu próprio país.

122 Segundo Rodrigues Filho, op. cit., além de Uruguai e Argentina, Espanha e Itália também já haviam adotado o modelo profissional de jogadores de futebol, e também eram concorrentes dos clubes brasileiros no mercado de jogadores, que ainda era sequer existente no país, ao menos na formalidade.

2.2. A emergência de interesses de Mercado no regime de Esporte em Sociedade