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Os torcedores num regime de Futebol de Estado

CAPÍTULO 2. A CONSTRUÇÃO DO REGIME DE FUTEBOL DE ESTADO NO BRASIL

2.9. Os torcedores num regime de Futebol de Estado

O relatório de JA tratava basicamente sobre como o Estado deveria aparelhar-se institucionalmente para produzir, por meio do esporte, os resultados políticos desejados pelo governo varguista. Dirigia-se basicamente aos governing bodies, e foi possivelmente a maior inspiração para a criação do CND, em 1941.

Evidentemente que, para a instituição de um regime de Esporte de Estado, as instituições são o ponto de partida. Tanto na Itália, como na Espanha e Alemanha o primeiro passo dado na implementação de um regime de Esporte de Estado foi o estabelecimento de uma entidade – ou o aparelhamento de uma já existente – estatal para a gestão dos esportes no sentido de lhes dar caráter nacional.

Sendo os governing bodies do esporte colocados sob o comando do Estado, o passo seguinte é usá-los para produzir e difundir conteúdos – de fundo patriótico, nacionalista, e etc. – convenientes ao regime de Esporte de Estado. É neste ponto que entra a Mídia. Nos três regimes europeus mencionados a mídia esportiva possuiu fundamental importância para a construção da importância social do esporte, e também para levar aos cidadãos a mensagem nacionalista desejada pelos implementadores do regime de Esporte de Estado.

No caso brasileiro, a preocupação com a harmonização do discurso midiático com os propósitos do regime de Esporte de Estado é notável especialmente nos escritos de Thomaz Mazzoni, que defende um comportamento midiático em conformidade com os valores esportivos apregoados pelo Estado. Na Europa, essa era uma preocupação que partia do próprio Estado, que produziu – inclusive para a mídia esportiva – uma censura de imprensa mais pragmática que o Estado Novo varguista.

A partir do momento em que existe um esforço coordenado de Estado e Mídia para atribuir conotação política ao esporte, que se converte de prática lúdica espontânea em compromisso com os interesses nacionais, a sociedade civil é afetada. É nesse processo que a figura do torcedor de esportes é criada. A figura do torcedor de esportes se confunde em vários níveis com a figura do cidadão patriota. Isso é uma decorrência do próprio regime de Esporte de Estado que iguala atletas a representantes da Nação. Torcer por um atleta significa torcer pela Nação.

Na Europa, tanto quanto no Brasil, a politização da figura do torcedor gerou algumas consequências indesejadas. No caso italiano, por exemplo, o regime de Futebol de Estado deu vazão ao sentimento campanilista. No caso espanhol – em algumas regiões, como Catalunha e

País Basco – o futebol foi a válvula de escape para a manifestação de desejos separatistas. Em todos os casos em que se desenvolveu uma massa torcedora, os casos de violência entre torcedores emergiram e se tornaram uma questão com a qual os respectivos regimes de Futebol de Estado tiveram que lidar.

Os registros disponíveis indicam que nos três casos europeus citados os respectivos regimes de Esporte de Estado tomaram medidas contingenciais e paliativas, via de regra passando pela repressão de torcedores violentos.

Nesse ponto, o regime de Futebol de Estado brasileiro apresenta uma peculiaridade em relação aos regimes de Futebol de Estado europeus que o inspiraram e antecederam cronologicamente. Os arranjos de instrumentalização política do esporte produzidos na Alemanha, Itália e Espanha levaram em conta os governing bodies do esporte, os clubes de futebol – na medida em que isso foi necessário – e a mídia esportiva. Nenhum desses três arranjos levou em consideração, porém, o comportamento dos torcedores nos estádios de futebol. Essa é uma das razões pelas quais eles tiveram que apelar para a repressão policial nos casos onde ocorria o comportamento violento de torcedores de futebol.

O regime de Futebol de Estado brasileiro, além de levar em conta governing bodies, clubes de futebol e mídia esportiva em seu arranjo, levou também em conta o comportamento dos torcedores nos estádios. O ideólogo por trás da iniciativa de incluir também os torcedores de futebol no arranjo de Futebol de Estado brasileiro foi o jurista paraibano João Lyra Filho, radicado no Rio de Janeiro e professor da Universidade do Estado da Guanabara. Segundo seu entendimento, o futebol era um espetáculo que tendia a exacerbar a passionalidade dos espectadores que, se mal canalizada, poderia gerar efeitos deletérios para os propósitos do Estado com o esporte. A passionalidade das plateias esportivas poderia ser canalizada para a “ordem do bem” ou para a “ordem do mal”: “Como escola, os desportos educam os indivíduos e preparam os cidadãos. Como espetáculo, animam as multidões, enchem a vida de seiva e geram tendências, que se adensam para a ordem do bem ou para a ordem do mal.”206

Tal excerto contém palavras de Lyra direcionadas ao ministro da Educação e Saúde do Estado Novo, Gustavo Capanema. Sabendo que essas palavras estão situadas em um momento em que o regime de Futebol de Estado está sendo implementado no Brasil, parece razoável supor que o que Lyra chama de “ordem do bem” é aquela que convém ao Estado Novo e ao projeto varguista para o Esporte de Estado, e a “ordem do mal” é aquela que não convém ao regime em questão.

Embora nenhum dos regimes de Futebol de Estado europeus, nem os redatores do Decreto n° 3199 e nem mesmo o Informante JA. tenha levado a dimensão dos torcedores em conta para o sucesso do regime de Esporte de Estado, João Lyra Filho demonstrava estar totalmente atento a essa questão:

Quando as multidões se aglomeram, nos espetáculos desportivos, encontram um momento de evasão, que é capaz de despi-las até ao próprio instinto, impondo ao Estado o dever de regular as suas manifestações sociais, por meio de processos educativos, que não deturpem o sentido das diretrizes a que se propõe.207

O ponto levantado por Lyra era que o Estado deveria preocupar-se com o conteúdo das manifestações das multidões em partidas de futebol, porque se essas fossem deixadas livres, poderiam tender à ordem “do bem” ou à “do mal”, aleatoriamente. Lyra entendia que uma ação precisa do Estado sobre essa questão poderia romper com a aleatoriedade da manifestação das multidões nos estádios e fazer com que essa se dirigisse inequivocamente para a ordem “do bem”, ou seja, alinhada às diretrizes convenientes ao Estado208.

Sendo o futebol um espetáculo que produz emoções nas multidões e tendo o Estado interesse nos efeitos gerados por essas emoções nessas multidões, no entendimento de Lyra, os representantes do governo deveriam preocupar-se com o gesto [mensagem] para/das multidões:

[O gesto] é veículo da emoção coletiva. Interessa ao Estado regular o sentido desse gesto, para disciplinar as emoções a que [o gesto] dá causa, de modo que sirva de retempero às energias necessárias à vida e não de força negativa.209

De nada adiantaria ao Estado ter o controle de todas as variáveis que envolviam o esporte se lhe faltasse o controle das emoções das multidões, que eram justamente a razão de ser de todo o aparato construído para regime de Futebol de Estado no governo varguista. A sugestão de Lyra Filho passa por educar o público, levando em conta que este se divide de acordo com as partes envolvidas na disputa esportiva: “Para disciplinar os espetáculos desportivos, faz-se mister educar o público, que se divide em conformidade com as tendências das simpatias em razão desse ou daquele competidor”.210

207 LYRA FILHO, João. A função social dos desportos. RJ, 1941. P. 11. Conferir anexo. 208 Cf. LYRA FILHO, João. A função social dos desportos. RJ, 1941, p. 7. Conferir anexo. 209Cf, Lyra Filho, op. cit., p. 5. Conferir anexo.

A sugestão do acadêmico para que se consiga obter algum controle sobre a manifestação das massas em jogos de futebol é a instituição da música nos estádios:

No intervalo dos espetáculos desportivos, a música é uma parada da alma, que não se contrafaz, que se expande, que se escancara à sugestão da calma, do contentamento, do enlevo envolvente do espírito. [...] para desmerecer as provocações do instinto, para atenuar a força das ondas que se destemperam na linguagem e nas manifestações do explosivo, do indignado, do rebelde, suscetível a generalizar estados mórbidos da paixão, a música é o prestígio que adoça, suaviza, enleva, faz subir a alma à projeção onde ela pode espairecer para o bem. [...] Eis porque admitiríamos a necessidade de juntar-se aos espetáculos desportivos o concurso da música, que sacode os nervos, que aligeira os ambientes carregados, que enche de frenesi as ânsias apavoradas em prelúdio de revoltas, de conflitos e de motins.211

Lyra compreendia que a música possuía uma capacidade apaziguadora em relação à multidão que assistia às disputas esportivas, e supunha que seu concurso aos eventos poderia produzir um efeito calmante na multidão, o que contribuiria para que tendesse à ordem “do bem”, como ele próprio havia se referido na carta a Capanema em 1941.

O que passava pela mente do comandante do CND não era, porém, música em sentido abstrato. Tampouco tratava-se de uma sonoridade qualquer, que pudesse ser executada de qualquer forma por qualquer ator do espetáculo esportivo. O que Lyra pensava em relação à música nos espetáculos esportivos passava por parâmetros bem delineados. Sua proposta envolvia a criação de orientadores de torcida, cuja operação seria semelhante à de um maestro diante da orquestra, isto é, a figura de uma autoridade entre os torcedores que ordenasse a atividade do público assistente: “Nos jogos de football, a presença dos orientadores das torcidas é tão útil quanto a do maestro diante da orquestra sob sua regência”.212

A figura do chefe de torcida teria o papel de moralizar a multidão que comparecia aos espetáculos esportivos, conduzindo-a a uma uniformidade que seguisse seu próprio modelo. Esse arranjo é melhor desenvolvido no seguinte excerto: “A torcida arregimentada, explodindo em uniforme manifestação, contida pelo sentimento da disciplina, daria beleza e vida aos espetáculos, além de ordem”.213

Diante do exposto nos parágrafos e excertos anteriores, entende-se que a proposta de Lyra Filho era que a música operasse nos estádios como um elemento disciplinador das massas. Ela seria um elemento gerador de disciplina, e não de agitação, porque seria monopolizada por

211 Lyra Filho, op. cit., p. 11. Conferir anexo. 212 Lyra Filho, op. cit., p. 12. Conferir anexo. 213 Lyra Filho, op. cit., p. 12. Conferir anexo.

um grupo específico que giraria ao redor de um líder, incumbido justamente de liderar o apoio disciplinado e uniforme a seu clube.

De um lado, no sinal do leader, uma multidão partidária, deixando-se levar pelo ritmo dos mesmos gestos, das mesmas palpitações, das mesmas manifestações a favor de seu club. Em represália, do outro lado, o mesmo quadro, armando uma luta de torcidas, cada qual das correntes disputando ser a mais destra, mais apurada, mais viva, na maneira de imaginar e definir a vitória honesta de uma torcida sobre a outra.214

Os mesmos gestos, as mesmas palpitações, as mesmas manifestações, e etc. A compreensão de Lyra era a de que a ação eficiente de um "leader" de torcida levaria a um comportamento uniformizado da multidão ao seu redor, o que tenderia a produzir uma reação em cadeia controlável que era plenamente conveniente aos propósitos do Estado pois, uma vez existente a figura de uma pessoa cuja função é coordenar as grandes massas nos grandes espetáculos esportivos, tornava-se absolutamente factível a possibilidade de o próprio Estado exercer algum grau de influência sobre esta pessoa, e dessa forma influenciar o gesto da multidão, a primeira preocupação de Lyra Filho.

O vislumbre de Lyra era que a torcida de cada clube teria um líder, e durante jogos de futebol as torcidas se enfrentariam da mesma forma que os jogadores deveriam se enfrentar dentro de campo, isto é, de forma honesta, respeitosa e disciplinada, submetendo-se às autoridades responsáveis pelo espetáculo e promovendo uma manifestação popular que, se realizada com eficiência, poderia tornar-se ainda mais bela e vistosa que o próprio jogo de bola em si. Essa manifestação deveria, porém, ser absolutamente cordial e regrada, de forma que o objetivo primeiro seria garantir a disciplina dos torcedores no apoio ao clube, e em segundo lugar a vitória esportiva em si. Contudo, a ideia de Lyra não era exatamente algo original.

A própria cidade do Rio de Janeiro, de onde o paraibano despachava, já havia presenciado algo muito semelhante ao que Lyra propunha meia década antes que este o fizesse. A primeira campanha no sentido de organizar as assistências215 de jogos de futebol que se tem notícia é justamente do JS de Mário Filho em 1936. O evento em questão foi a “competição de torcidas”.

A competição de torcidas promovida por Mário Filho por meio do JS em 1936 era uma tentativa de demarcar definitivamente um novo significado de torcer, o que já vinha sendo

214Lyra Filho, idem. Conferir anexo.

215 Essas torcidas não são, porém, consideradas por nossa análise porque além de não terem durado mais do que duas semanas, não há evidências de que tenham se constituído propriamente em uma associação de torcedores.

desenhado pelo próprio jornalista desde que este assumiu o editorial de esportes de O Globo, em 1931.

Mário Filho tinha em mente, ao promover aquela competição de torcidas, o modelo norte-americano. Sua ideia era fomentar a agência dos torcedores nas arquibancadas e gerais, como forma de torná-los, enquanto coletividade, coparticipantes do espetáculo. Foi a primeira tentativa de conversão da assistência em torcida:

A competição de torcidas terá início hoje. [...] A iniciativa do Jornal dos Sports promovendo o sensacional certâmen [de torcidas, no caso] objetivou a arregimentação de torcedores. Não somente os dois teams adversários se empenharão em um grande cotejo. Também haverá nas arquibancadas, nas gerais, nas cadeiras, o duelo de torcidas – gritos, hurras, cartazes, hinos, alleguas. Tentaremos portanto introduzir no Brasil o que se faz nos Estados Unidos, adaptando porém essa competição de torcidas ao feitio brasileiro.216

A experiência de Mário Filho em relação à competição de torcidas durante a década de 1930 não foi muito longeva. Ela foi promovida somente nos últimos três finais de semana do ano de 1936, o que foi suficiente para o próprio JS afirmar que “O football no Brasil conseguiu dar o primeiro passo na ‘americanização’ da torcida, que agora está pronta a se organizar definitivamente como fator preponderante de estímulo aos bandos que correspondem”.217

Mário Filho tinha o propósito de dar perenidade à competição de torcidas, coisa que não logrou em fazer. Esse assunto voltou à baila justamente pelas palavras e iniciativa de Lyra Filho, cinco anos depois. Cabe lembrar que, durante o tempo em que vigeu o regime de Futebol de Estado varguista, o JS perdeu para a GE de São Paulo o papel de pauteiro oficial dos esportes brasileiros. Conforme dissemos anteriormente, o diário paulista chefiado por Mazzoni era politicamente muito mais alinhado à filosofia estadonovista do que o prestigioso diário carioca chefiado pelo filho de Mário Rodrigues.

Ademais, a tentativa do JS em 1936 era a de tornar a assistência em coparticipante do evento esportivo, porém sem nenhuma vinculação à moral do Estado. Após o contato com os escritos de Lyra Filho, já se sabe que a concessão de autonomia para manifestações da multidão em jogos de futebol não era um dos propósitos dos políticos que estavam debruçados sobre esta questão durante a ditadura varguista.

Estando o JS de Mário Filho fora dos planos do regime de Futebol de Estado varguista, coube a A Gazeta Esportiva o protagonismo da interação do regime esportivo estadonovista com os torcedores.

216 Jornal dos Sports, 15/12/1936. Apud Coutinho, op. cit., p. 47. 217 Jornal dos Sports, 29/12/1936. Apud Coutinho, op. cit., p. 47.

Em 1943, seguindo as diretrizes estabelecidas por Lyra – que à época já ocupava o cargo de presidente do CND – a GE patrocinou218 seu primeiro concurso de torcidas. Diferentemente do que foi posto em prática no Rio pelo JS, a ideia de Mazzoni era dar protagonismo para os torcedores nas arquibancadas e nas páginas do jornal na medida em que, também eles, estivessem a “serviço da Pátria”.