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O regime de Futebol de Estado na Itália

CAPÍTULO 1. AS ORIGENS DO REGIME DE FUTEBOL DE ESTADO

1.2. O regime de Futebol de Estado na Itália

O primeiro país a estabelecer o regime de Futebol de Estado foi a Itália fascista de Mussolini, e é interessantíssimo observar como a história do uso político do esporte entre esses dois países se comunica: a citação do diário pessoal de Göbbels, algumas linhas acima, foi feita por ocasião da partida entre Alemanha e Noruega, válida pelas quartas de final do torneio de futebol dos Jogos Olímpicos de 1936, disputados em Berlim. O principal concorrente da Alemanha para sediar essa edição das Olimpíadas foi justamente a Itália46, fato que sugere alguma tendência teleológica no sentido de que os Jogos Olímpicos deste ano estivessem destinados a ser uma celebração do Esporte de Estado, independentemente de onde fossem sediados.

O processo de difusão da Educação Física e da prática esportiva aconteceu de forma relativamente simultânea nesses dois países. Conforme mencionado acima, durante a República de Weimar (1919-1933) foram lançadas as bases para a instrumentalização política do esporte pelo Estado alemão. Isso se deu efetivamente a partir da entrada do Partido Nazista no comando nacional em 1933.

A principal diferença entre as experiências italiana e alemã é que o regime totalitário da primeira teve início já nos anos 1920. Nesse tempo, quinze mil jogadores47 já tinham registro na entidade administradora do esporte em nível nacional, a Federazione Italiana de Giuoco Calcio (FIGC)48, cuja estrutura administrativa era plural com o poder descentralizado, nos mesmos moldes que a DFB antes do governo nazi.

Na Alemanha, como afirmado na seção anterior, a implementação do regime de Esporte de Estado se deu tão logo os nazistas chegaram ao poder. Na Itália, o governo fascista conviveu por algum tempo com o regime de Esporte em Sociedade Civil que o precedeu. No início dos anos 1920, a Itália dividia-se em 83 províncias, a maioria possuidora de ao menos um clube de futebol. Diante da diversidade de equipes e regiões participantes no futebol italiano, não eram raros os casos de desentendimento entre clubes e dirigentes no âmbito da FIGC.

O regime de Futebol de Estado teve início na Itália, quando a FIGC se deparou com uma situação de crise que, aparentemente, não conseguiria resolver com as próprias forças. A

46 Cf. Martin, op. cit., p. 184.

47 Cf. IMPIGLIA, Marco. Fußball in Italien in der Zwischenkriegszeit. In Koller, Christian & Brändle, Fabian (org.): Fussball zwischen Kriegen - Europa 1918-1939. Deutschland: Lit Verlag, 2010. pp. 145-181. Página 150. Dado referente ao ano de 1922.

48 Federazione Italiana de Giuoco Calcio, ou Federação Italiana de Futebol, em português. Era a entidade privada responsável pela gestão do futebol italiano em nível nacional. Exercia função equivalente à da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) nos dias de hoje (2018).

referida crise foi deflagrada por problemas com a arbitragem: alegando uma série de erros da equipe de árbitros, a FIGC decidiu anular uma partida entre Casale e Torino em 1925. A classe dos árbitros de futebol tomou como uma afronta a interposição da FIGC sobre decisões tomadas por um árbitro dentro do campo de jogo. Houve uma reação no âmbito classista e, em 1926, os árbitros de futebol italianos deram início a uma greve49.

Uma greve de árbitros em meio à Itália fascista é, analiticamente, um acontecimento inusitado. Por um lado, trata-se de uma afronta ao poder de Mussolini, o Duce, que em 1922 obteve do rei da Itália a autoridade para combater qualquer tipo de greve. Por outro lado, árbitros de futebol não são trabalhadores no sentido clássico da palavra, como operários de uma fábrica. Tampouco fazem parte de um sistema que produzisse riqueza financeira para o país – como seria o caso de uma indústria ou do agronegócio, por exemplo. Num sistema de futebol amador, sequer teriam condições de demandar altos salários. O paradoxo nessa situação é que, apesar de não gerarem riqueza, e de sequer terem grandes demandas financeiras em relação a seus empregadores – a FIGC e suas afiliadas, nesse caso –, a possibilidade de colocar times em campo para se “autogovernar” não era sequer cogitada. Isso significava que o futebol não voltaria a ser jogado no país enquanto uma solução de consenso não fosse alcançada em relação a esta questão.

O caos instalado no futebol nacional, após o início da greve, gerou um clamor popular por uma solução imediata para o problema. Tendo a FIGC poucos ou nenhum meio à disposição para resolver a situação com suas próprias forças, resultou que estava criada a oportunidade perfeita para uma intervenção estatal na FIGC.

Lando Ferretti, membro do Partido Fascista responsável pela colocação do Comitê Olímpico Italiano (CONI) sob o comando do Partido, alguns anos antes, foi em 1926 o responsável por proibir a greve dos árbitros, por sacar Luigi Bozino da Presidência da FIGC e por convocar uma assembleia a ser realizada na cidade de Viareggio, onde o destino do futebol italiano – agora sob o direto comando do Partido Fascista – seria decidido50.

A assembleia realizada em Viareggio é o marco do início do regime de Futebol de Estado na Itália, o primeiro nesses moldes da história51. As decisões tomadas nesse encontro foram sumarizadas em um documento que ficou posteriormente conhecido como a Carta de Viareggio.

49 Cf. Impiglia, op. cit., p. 151. 50 Cf. Impiglia, op. cit., p. 152.

The Carta [de Viareggio] substituted the Old Federal Council with the theoretically elected Direttorio Federale, although the board of governors was selected by the president of CONI for the first two years, after which a further reform established that all federation heads would be appointed by an assembly nominated by the Duce. In effect, the president’s role was to approve rather than nominate officers, the FIGC having been subordinated beneath CONI that was already an organ of the party. The FIGC president and the Direttorio Federale now exercised absolute power and authority over all football matters […].52

O primeiro ato do regime de Futebol de Estado na Itália, que foi repetido na Alemanha, quando o futebol local foi “nazificado”, em 1933, foi a concentração do poder esportivo local em uma só entidade, que respondia ao Estado. No caso italiano, todas as instituições do futebol italiano foram submetidas ao poder da FIGC, agora submetida ao controle do regime fascista.

Além da centralização do poder do futebol em nível nacional, a instalação do regime de Futebol de Estado na Itália também passou por medidas como: a) o estabelecimento de uma liga de elite, que após alguns ajustes seria batizada de Serie A em 1929; b) a separação estatutária entre jogadores amadores e não-amadores53; c) a nomeação de Leandro Arpinati54 como presidente da FIGC.

A consequência prática da criação de um torneio de futebol nacional que era mais seletivo do que todos os outros disputados no país até então foi a exclusão de diversos clubes que tinham lugar na disputa até então. A proposta do Estado era fazer um campeonato com poucos e bons times, que carregassem a representação simbólica de suas respectivas comunidades.

É importante notar que, para o Regime Fascista, a identificação local possuía precedência sobre a identificação clubista. Na prática, isso significou a necessidade de alguns clubes italianos fundirem-se com outros clubes outrora rivais em nome do fortalecimento das possibilidades técnicas e financeiras, com vistas à participação no torneio nacional.

O objetivo da fusão de clubes, no final da década de 1920, era bastante simples: aglutinar as forças da comunidade local ao redor de somente uma associação, que representaria a comunidade perante todo o país. Esse processo, apoiado pelo próprio Estado, na figura dos Entes Esportivos do Esporte Fascista55 (braços regionais do CONI para organizar o esporte em nível local) – deu origem a alguns dos clubes mais tradicionais de futebol da Itália até hoje, como a A.S. Roma (fusão de Alba Audace, Roman e Fortitudo Pro Roma), A.C.F. Fiorentina

52 Martin, op. cit., p. 58. 53 Cf. Impiglia, op. cit., p. 152. 54 Cf. Martin, op. cit., p. 68. 55 Cf. Martin, op. cit., p. 43.

(fusão de Palestra Ginnastica Fiorentina Libertas e Club Sportivo Firenze) e S.S.C. Napoli (fusão de Naples Foot-Ball Club e l’Unione Sportiva Internazionale di Napoli), por exemplo.

Além do estabelecimento de um campeonato nacional outra medida adotada pelo regime de Futebol de Estado italiano no sentido de nacionalizar o esporte e reduzir a influência de poderes locais56 sobre a FIGC foi o deslocamento de sua sede para o Sul do país. Num primeiro momento, ela foi sacada de Turim e levada para Bologna; num segundo momento, foi de Bologna para Roma. Essa era uma tentativa de balancear o domínio e a sobre-representação de clubes e federações do Norte em detrimento das do Sul.

O responsável por este movimento foi Leandro Arpinatti, presidente da FIGC sob o comando fascista. Levando o comando da FIGC para Bologna, Arpinatti logrou em atender tanto a seus propósitos políticos quanto a seus propósitos pessoais: do ponto de vista político, a retirada da FIGC do Norte do país significava o fim do controle burocrático do esporte pelos clubes do norte da Itália, os mais fortes tanto no âmbito financeiro quanto no âmbito técnico; do ponto de vista pessoal, significava tornar Bolonha, a cidade da qual era prefeito57, o centro do futebol italiano fascista.

Arpinatti conheceu Mussolini nas batalhas contra os socialistas no início da década de 1920. Radicado em Bologna, foi deputado e vice-secretário do Partido Fascista. Ao levar a sede do futebol fascista para sua cidade, quando já era prefeito, o dirigente criou a oportunidade para si de usar sua cidade como um modelo para o que o futebol italiano deveria se converter nas próximas décadas. Possivelmente, o principal evento nesse contexto foi a construção do estádio Il Littoriale, o maior do país à época, para cuja inauguração, em 31 de outubro de 1926, esteve presente o próprio Duce.

Il Littoriale foi um marco político, esportivo e também arquitetônico da Itália fascista. Foi o primeiro, na Itália, a adotar estruturas de concreto no lugar das arquibancadas de madeira que circundavam 100% do campo de futebol, além da pista olímpica de atletismo e a capacidade para receber até 55 mil pessoas. Por sua monumentalidade, acabou por servir de modelo para uma série de estádios que seriam feitos dentro e fora da Itália. Foi usado não somente na Copa do Mundo de 1934, mas também na 1990, com as estruturas originais de sua inauguração, 64 anos antes.

A ocasião da inauguração do Il Littoriale foi tão sugestiva que, passados os fatos, Arpinati foi publicamente agradecido pelo próprio Mussolini:

56 Cf. Martin, op. cit., p. 68. 57 Cf. Martin, op. cit., p. 113.

I want to renew my joy and applause for the unforgettable display of yesterday; Bolognese Fascism was, as ever, at the height of its glorious tradition, of its completed Works, of future power […] it is truly the architrave of Italian Fascism. I will never forget the spectacle of the Littoriale, I believe there was never such a perfect adhesion between the Regime and the people in the History of Italy; never was there a more formidable collection of people in spirit.58

A percepção, por parte de Mussolini, da harmonia entre povo e regime fascista pela ocasião da inauguração do Il Littoriale é comparável à manifestação de Göbbels registrada em um jogo da seleção alemã de futebol pelos Jogos Olímpicos de 1936, citada anteriormente. Os homens responsáveis pela gestão de Estados totalitários têm plena ciência da importância dos esportes – principalmente dos esportes que geram interesse popular suficiente para encher um estádio para 50 mil pessoas – para propaganda do regime e difusão de sua doutrina nacionalmente.

Além da dimensão doméstica de propaganda nacionalista e ideológica, os esportes assumiam a partir do fim dos anos 1920 o caráter de afirmação das capacidades de um Estado perante outros Estados. O principal canal para isso eram os Jogos Olímpicos, coisa que era sabida pelos dirigentes esportivos italianos: “There is no need to tell you how important the Olympics Games can be globally; its significance goes beyond sporting competition and reaches the level of a first order political event”.59

As palavras de Lando Ferretti, presidente do CONI, evidenciam a importância política atribuída pelos fascistas ao esporte, já em 1926, o primeiro ano de vigência do regime de Futebol de Estado na Itália. De acordo com Martin60, à época a ideia era conquistar o direito de sediar os Jogos Olímpicos de 1936. Cabe lembrar que a primeira Copa do Mundo de futebol foi disputada somente em 1930, na periferia do mundo – a América do Sul – e de forma experimental. Portanto, a única competição de destaque que um estadista em 1926 poderia sonhar em sediar seriam justamente os Jogos Olímpicos. A despeito do interesse italiano em sediar os referidos jogos em Roma, os alemães foram mais eficientes e, em 1931, ganharam o direito de sediar o torneio.

Sem paciência para esperar até 1940 para concorrer novamente, os italianos executaram seu plano B, e foram ao Congresso da Federação Internacional de Futebol (FIFA, na sigla em

58 Carta de Benito Mussolini a Leandro Arpinati, reportada pelo jornal L’Assalto, no dia 06 de novembro de 1926, p.3. Apud Martin, op. cit., p. 132.

59 Carta de Ferreti a Giacomo Sguardo, subsecretário do Primeiro Ministro, datada de 10/11/1926. Archivio Centrale dello Stato, Presidenza del Consiglio dei Ministri 1928-1930, f. 3.2.5, n° 269. Apud Martin, op. cit., p. 184.

francês), em Estocolmo, no dia 9 de outubro de 1932. Aos comandantes da entidade internacional, fizeram uma oferta de 3,5 milhões liras61 em investimentos estruturais e logísticos para sediar a segunda Copa do Mundo da História, a primeira em solo europeu. Essa surpreendente oferta foi superior inclusive à feita pelos anfitriões do Congresso – os suecos –, que nessa data testemunharam a conquista do direito de sediar a Copa do Mundo de 1934 pelos italianos - da qual, por fim, acabariam por se sagrar campeões.

A descrição dos jornais italianos sobre o ambiente no dia da final do torneio, jogada contra a Tchecoslováquia no Estádio Nacional do Partido Nacional Fascista, em Roma, em 10 de junho de 1934, leva a entender que o alto investimento feito pelos fascistas teve o retorno esperado:

[...] on Duce’s arrival, having forgot they were there for a sporting contest, fans offered him a staggering sight of their passion. The tender acclamation exploded in the immense bowl with a supernatural persistence. The display continued as the teams entered the stadium, handkerchiefs being waved to the cries of ‘Duce, Duce’, as the Militia band played a selection of Fascist hymns.62

A Copa de 1934 contribuiu demasiadamente para o apoio popular ao regime fascista e a seu líder63. Todo o fervor emocional criado ao redor do futebol italiano como o maior símbolo do sucesso do país fez com que, já em 1938, da receita provinda dos mais de 10 milhões de ingressos vendidos para eventos esportivos no país, o fisco italiano faturasse 27 milhões de liras somente com o futebol, o esporte mais lucrativo do país de forma disparada. O ciclismo, ocupante da segunda posição na lista, havia gerado apenas dois milhões de liras para o fisco local, ou seja, menos de dez por cento que o Calcio64.

61 Jornal Il Resto del Carlino, 25/05/1934, p. 6. Apud Martin, op. cit., p. 186. 62 Jornal Il Popolo d’Italia, 12/06/1934, p. 8. Apud Martin, op. cit., p. 189.

63 Ironicamente, um time composto por universitários italianos ainda se sagraria campeão olímpico em 1936 – o primeiro objeto de desejo dos próprios fascistas – na cidade de Berlim.