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A mídia esportiva simpática ao Esporte de Estado

CAPÍTULO 2. A CONSTRUÇÃO DO REGIME DE FUTEBOL DE ESTADO NO BRASIL

2.6. A mídia esportiva simpática ao Esporte de Estado

A proposta de criação de um regime de Esporte de Estado, feita por JA em seu relatório, datado de janeiro de 1937, não encontrou muito respaldo no Jornal dos Sports. Este é um dado relevante, porque em 1937 o JS já estava consolidado como a voz mais importante do jornalismo esportivo impresso. Em relação a seus concorrentes de fora do Estado da Guanabara, tinha a enorme vantagem de estar sediado na capital federal, que era também a cidade mais populosa do país. Em relação a seus concorrentes da cidade do Rio de Janeiro, tinha a vantagem de ser propriedade de alguns dos homens mais poderosos e influentes da cidade (a saber, Roberto Marinho, José Padilha, Arnaldo Guinle), além de contar com uma rede de colaboradores de muito poder e prestígio nos esportes brasileiros. Boa parte deles era inclusive vinculada ao Poder Executivo Federal pela figura do Presidente Getúlio Vargas. Entre as figuras mais prestigiosas presentes no quadros do Jornal dos Sports, podem ser mencionados172:

1. João Lyra Filho173, professor e reitor da Universidade do Estado da Guanabara (atual UERJ), vinculado ao Botafogo FR, clube do qual foi presidente entre 1940 e 1941. Não possuía muita simpatia pelo profissionalismo no futebol, mas enxergava o esporte como locus de exercício do nacionalismo e da formação do amor à Pátria. Por esta razão, ainda em 1941, foi escolhido por Gustavo Capanema, Ministro da Educação de Getúlio Vargas, para presidir o Conselho Nacional de Desportos (CND), tornando-se o primeiro Presidente da referida entidade. Era aliado de Rivadávia Meyer, quando Guinle rompeu com a AMEA, em 1933, no capítulo que deu início ao dissídio esportivo.

2. José Lins do Rego174, influente literato que, por indicação de Carlos Drummond de Andrade – então chefe de gabinete de Gustavo Capanema, o ministro da Educação e Saúde de Getúlio Vargas –, foi indicado para tornar-se funcionário do CND.

3. Manuel do Nascimento Vargas Neto175, sobrinho do então Presidente Getúlio Vargas. Foi, por uma década, Presidente da Federação Metropolitana de Futebol (FMF).

172 Cf. HOLLANDA, Bernardo Buarque Borges de. O cor-de-rosa: ascensão, hegemonia e queda do Jornal dos Sports entre 1930 e 1980. In: O esporte na imprensa e a imprensa esportiva no Brasil. Bernardo Borges Buarque de Hollanda e Victor Andrade de Melo (org.). Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora Ltda, 2012. Pp. 91-6. 173 Cf. Hollanda 2012, op. cit., p. 92.

174 Cf. Hollanda 2012, op. cit., p. 93. 175 Cf. Hollanda 2012, op. cit., p. 94.

4. Luiz Gallotti176, foi Deputado Federal e interventor do estado de Santa Catarina. No campo jurídico, foi Procurador-Geral da República, Ministro do Supremo Federal Federal e Presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Participou da gestão do CND ao lado e João Lyra.

Como se pode notar, todas as pessoas mencionadas possuíam algum vínculo com o Estado varguista, o que sugere a existência de laços de cooperação e confiança entre alguns ramos da elite política do Estado varguista e os comandantes do Jornal dos Sports. A despeito dessa proximidade, a linha editorial do JS seguia uma tendência que era mais facilmente associável à lógica de Mercado do que à lógica de Estado.

Embora o jornal de Mário Filho apresentasse e defendesse firmemente uma ideologia popular e nacionalista para os esportes brasileiros, sua técnica jornalística para alavancar vendas e repercussão era o vasto uso de recursos sensacionalistas, como o fomento de polêmicas, rivalidades e discussões de todas as ordens. A característica editorial popular e polemista do JS afastava-o do perfil de um veículo de imprensa característico de um regime de Esporte de Estado.

Como foi visto no capítulo anterior, em relação aos regimes nazifascistas, quando o regime de Esporte de Estado foi instituído naqueles países, uma das primeiras medidas adotadas que diz respeito à mídia esportiva foi seu imediato controle por órgãos do Estado, no sentido de direcionar a abordagem que seria conferida pela mídia esportiva ao desporto nacional. No caso do JS, seria necessário implementar uma série de mudanças para que ele se enquadrasse nesses termos, e deve-se refletir se Filho estaria disposto a abrir mão de sua autonomia editorial para adequar-se a uma linha editorial conveniente aos propósitos de um regime de Esporte de Estado.

As divergências ideológicas entre Filho e os propósitos anunciados por JA para um regime de Esporte de Estado no Brasil abriram espaço para que outro jornal esportivo assumisse o protagonismo durante o período da ditadura varguista. Esse espaço foi ocupado pelo jornal impresso A Gazeta Esportiva, editado pelo ítalo-brasileiro Thomaz Mazzoni, sediado na cidade de São Paulo.

Mazzoni ocupava, na capital paulista, uma posição social funcionalmente equivalente à de Mário Filho: editor-chefe do jornal esportivo com maior circulação da cidade, com bom trânsito pessoal entre políticos, dirigentes de clubes e da própria CBD. Tinha profundo

conhecimento da experiência de Futebol de Estado na Itália fascista, e apresentava-a por muito tempo como o exemplo ideal de regime de esporte a ser seguido pelo Brasil. Por possuir uma postura francamente favorável ao controle estatal dos esportes, era titubeante em relação à questão do profissionalismo no futebol, já que sua premissa era a de que os interesses do Mercado no futebol deveriam estar submetidos aos da sociedade, representada pelo Estado – em sua perspectiva pessoal.

A principal diferença entre Mazzoni e Mário Filho diz respeito ao olhar que cada um deles possuía em relação ao papel que o Estado deveria ter sobre os esportes de um país. Mário Filho possuía, como desenvolvido anteriormente, uma visão de esporte que pendia para o Esporte para Mercado. Sua linha editorial era essencialmente orientada para as vendas. Era defensor do crescimento do futebol brasileiro, mediante profissionalismo dos jogadores. Via na popularização do esporte uma forma de alavancar seus lucros e também de levar adiante os interesses possuídos por alguns de seus sócios no mundo do esporte, especialmente José Padilha e Arnaldo Guinle.

Mário Filho concebia o esporte como instrumento de integração social interclassista e inter-racial; Mazzoni o concebia como um elemento construtor de moralidade, isto é, o esporte como elemento de transformação pedagógica daquele que o pratica e/ou assiste. A oposição entre as ideologias esportivas de Mário Filho e Mazzoni é comparável à existente no início da década entre o próprio Mário Filho e Netto Machado nas páginas d’O Globo, embora o jornal de Mazzoni não abordasse o esporte com o viés aristocrático de Netto Machado.

O editor-chefe da GE condenava a utilização dos meios de comunicação esportivos como forma de fomento de rixas e rivalidades interclubísticas, interestaduais ou mesmo pessoais – quando referentes a dois dirigentes ou dois jogadores –, pois ele estendia à imprensa a missão moralizadora presente na concepção de esporte defendida por ele. Segundo essa concepção, a imprensa não deveria insuflar os ânimos de dirigentes, jogadores e torcedores rivais, mas fomentar a comunhão entre todos para a conquista de um bem maior: a harmonia e o sucesso do esporte brasileiro.

O ideal de Mazzoni pela moralidade no esporte o levou a ir além das páginas do jornal. No ano de 1939, por exemplo, ele publicou um livro, intitulado Problemas e Aspectos do Nosso Futebol177, no qual, a partir de sua perspectiva, apontava todos os aspectos falhos do futebol nacional e a solução que lhe parecia mais eficiente. Entre diversas críticas, seus alvos mais

177 MAZZONI, Thomaz (sob o pseudônimo Olimpicus). Problemas e aspectos do nosso futebol. São Paulo: A Gazeta, 1939.

constantes são o espírito clubista ou faccioso dos dirigentes esportivos brasileiros e o instinto sensacionalista de parte significativa da imprensa esportiva. Sobre o facciosismo dos dirigentes esportivos, Mazzoni escreve:

O presidente de um nosso clube [...], quando é necessário, atira-se contra as próprias entidades superiores, desrespeita leis, provoca cisões, faz uso do Judiciário, enfim, o presidente clubista é sem tirar nem pôr o chefe da tribo, cuja única política que adota consiste em exterminar o próximo, julgando que resulta em progresso próprio.178 Sobre o sensacionalismo de parte da mídia esportiva:

[...] Se a imprensa foge de sua verdadeira missão, se é escandalosa e perniciosa, envenena o ambiente. Os jogadores vão a campo mal-intencionados, os torcedores ficam de prevenção contra tudo que não seja do seu lado, degeneram, e a tara da indisciplina, que é horrivelmente antiesportiva quando se manifesta no futebol indígena (sic), tudo desvirtua, tudo arruína.179

Mazzoni reconhecia a mídia esportiva como um ator cujo comportamento influenciava de forma decisiva o desempenho do esporte brasileiro. Em sua compreensão, a mídia esportiva era tão responsável pelo fomento das boas práticas no esporte quanto todos os outros atores envolvidos, inclusive técnicos, jogadores e dirigentes. O editor da GE conseguia enxergar o "lado bom" e o "lado mau" da imprensa esportiva, e esforçava-se para que seu veículo fosse sempre reconhecido como a "boa imprensa esportiva do Brasil", como pode ser conferido na seguinte citação:

A boa imprensa esportiva do Brasil tem combatido essa tara [clubismo, indisciplina, e etc.]. Às vezes esse trabalho tem sido inútil, mas outras vezes tem feito milagres para o nosso meio, sempre desde muito tempo afetado de maus educadores e orientadores na imprensa especializada, os quais são, em grande parte, culpados pela atrasada mentalidade, pelos maus hábitos, pela nossa indisciplina esportiva.180

Possivelmente, o principal marcador prático de diferenças entre as concepções de esporte vislumbradas pelo carioca e pelo ítalo-brasileiro pode ser avaliado no período do dissídio esportivo. Do lado do Rio de Janeiro, Mário Filho era um dos maiores fomentadores do movimento ao lado de alguns jogadores e de seus sócios Arnaldo Guinle e José Padilha. Do lado paulista, Mazzoni ressentia-se dos prejuízos esportivos de ordem nacional causados pela briga entre amadoristas e profissionalistas, e clamava por uma ordem de consenso que trouxesse sucesso e progresso para o esporte brasileiro.

178 Mazzoni, Problemas e aspectos, p. 179. 179 Mazzoni, Problemas e aspectos, p. 31. 180 Idem.

Não é necessária muita reflexão para concluir que a postura de Mazzoni era muito mais simpática aos propósitos do Estado do que a de Mário Filho. A proximidade de Mazzoni com os valores estatais para o esporte ganhou um importante atestado em 1938, quando por ocasião do encerramento da Copa do Mundo o editor da GE publicou o livro O Brasil na Taça de 1938, cujo Prefácio foi escrito pelo próprio presidente da CBD, Luiz Aranha181.

É pertinente pontuar que Mário Filho, à época muito mais influente que Mazzoni, também esteve na França para a cobertura esportiva da Copa de 1938. O fato de o presidente da CBD, homem de confiança de Vargas, ter tomado parte na publicação do paulista é um indicador do início de uma mudança na correlação de forças entre Estado brasileiro e mídia esportiva ao final da década de 1930.

O Jornal dos Sports tinha, tal como A Gazeta Esportiva, uma linha editorial de perfil bastante nacionalista. No jornal carioca, o nacionalismo se manifestava com um viés popular- integracionista via esporte, notadamente o futebol. No jornal paulista, o nacionalismo se manifestava de forma moralista. O carioca era franco defensor do regime profissional de futebol. O paulista tinha simpatia pela ética do esporte amador.

Mazzoni expressava seu nacionalismo de forma idealista, no sentido de acreditar no progresso do esporte nacional e colocar seu jornal a serviço dessa proposta. Estava genuinamente interessado no desenvolvimento do esporte no país e se incomodava profundamente com os desmandos ocorridos no campo esportivo brasileiro entre os anos 1920 e o início dos anos 1930. Por outro lado, Mário Filho estava fazendo muito dinheiro para si e para seus sócios com o estilo sensacionalista de seu jornal, e não tinha pudor em fomentar a polêmica e a discórdia, externando em seu jornal os pontos de vista mais diversos e controversos.

O protagonismo de Mazzoni na mídia esportiva em nível nacional tornou-se mais evidente quando o regime de Esporte de Estado foi definitivamente instalado no Brasil.