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A insuficiência dos instrumentos para concretizar o concebido

5.1 Concepção do programa: foco na agroecologia

5.1.2 A insuficiência dos instrumentos para concretizar o concebido

A fragilidade do ambiente institucional53 para o funcionamento das políticas públicas voltadas para a agricultura familiar e o desenvolvimento do espaço rural são um dos principais problemas para alcançar as metas pelas quais elas são criadas. Geralmente, não fica muito claro o que é necessário, em termos de estruturas, mudanças e processos necessários para sair de um estágio que se pretende mudar e alcançar um patamar, com capacidade de impactar o público para transformar sua realidade. As políticas voltadas para as áreas de assentamentos, com ênfase para aquelas destinadas à assessoria técnica, também terminam por trilhar esse caminho.

Tanto durante, como posteriormente ao Projeto Lumiar, muitas avaliações foram feitas, detectando seus problemas estruturais que terminaram por comprometer significativamente os objetivos dessa experiência. Como exemplo, pode-se citar a ausência mínima de estabilidade para os profissionais, assim como a necessidade de que ele contribuísse para o fortalecimento institucional, estruturando as entidades parceiras que executavam essa política, numa perspectiva de consolidá-las para desempenharem o trabalho de assessoria com mais qualidade e contribuírem na constituição de um amplo e diversificado tecido social formado por organizações, envolvidas com a dinâmica da reforma agrária em curso.

Essa questão diagnosticada como essencial para dar capilaridade aos programas de assessoria, já analisado na experiência do Lumiar, permanece no Programa de ATES. Não se conseguiu até o momento o trivial, que seria manter as equipes técnicas no campo com uma certa estabilidade e condições de trabalho. A descontinuidade, provocada pelas sucessivas interrupções, continua sendo a principal característica do seu funcionamento, impedindo assim que as energias dos agentes e atores envolvidos voltem-se, não no sentido de perseguir a concretização de seus objetivos em termo de concepção de construir processos de transição agroecológica, mas de impedir que o programa não seja mais uma vez interrompido.

Segundo representante do INCRA, as razões para esses problemas são as dificuldades encontradas para desenvolver um modelo que desse a tranquilidade de

53 Usado aqui dentro da perspectiva da teoria social que busca a vinculação entre as estruturas

159 pensar a ATES nos seus aspectos político, metodológico e de concepção. Sempre o mais importante são aspectos básicos, como corrigir o problema dos convênios, garantirem recursos e condições burocráticas, para que no próximo exercício a ATES permaneça funcionando, sem maturar um modelo operacional que desse solidez e estabilidade ao programa.

Se, por um lado, a ATES avançou na sua concepção, quando se compara ao Projeto Lumiar, no aspecto tão básico como o funcionamento sistemático, aconteceu um retrocesso. Uma das justificativas, segundo o INCRA, é que, no período do Lumiar, as exigências legais impostas pelos órgãos de controle não eram tão incisivas como atualmente.

A descontinuidade na atividade de assessoria tem pelo menos dois impactos bastante negativos: o primeiro é em relação ao trabalho de campo, já que se torna impeditivo de se constituir um processo baseado em ações planejadas a partir de uma compreensão mais precisa da realidade, problemas e potencialidades do assentamento, essencial para definir ações para mudanças estruturais em um horizonte mais estendido. Na incerteza de futuro, resta um trabalho centrado no superficial e no imediato.

O segundo impacto é a ameaça permanente de suspensão, provocando um desestímulo entre os profissionais, por não conseguirem avanços no seu trabalho em que só o tempo poderia mostrar. Esse insucesso faz com que muitos deles terminam por buscarem outras inserções de sobrevivência, em uma relação pragmática em que ficam apenas enquanto não surge uma outra oportunidade de trabalho. Junto com as constantes paralisações do programa, o rodízio dos profissionais é mais um elemento para a atividade de assessoria nos assentamentos estar sempre recomeçando.

Numa perspectiva de mudança de atitude e concepções no modo de fazer agricultura, buscando a transição agroecológica e uma nova maneira de se comportar e de estar no mundo, como sugere o Manual de ATES, em que a assessoria teria uma função de facilitadora e estimuladora desses processos, a questão do tempo é determinante, pois as suas construções não se dão de forma imediata; exigem horizontes mais longos, e, na contramão, o funcionamento da ATES e das demandas das comunidades são no curto prazo.

No Rio Grande do Norte, o Projeto Lumiar funcionou por três anos (1997 a 2000), praticamente ininterruptos, com um razoável arranjo por meio de convênio do

Governo Federal, através do MDA, que aportava o recurso para Fundação da Universidade de Brasília – UnB, que, por sua vez repassava para uma agência bancária (no caso do Estado, o Banco do Nordeste - BNB). As associações dos assentamentos faziam mensalmente um ateste, no próprio assentamento, da prestação dos serviços pela instituição de assessoria para o pagamento ser efetivado. Porém, com a pressão dos órgãos de controle, em parte respondendo a uma pressão, inclusive midiática, dos setores contrários à reforma agrária, tornou-se mais difícil de encontrar flexibilidades em arranjos, como o que acontecia com o Lumiar. É o que afirma o superintende do INCRA.

Entramos em um novo período em que os órgãos de controle têm exercido um novo papel, inclusive na condução e implementação das políticas públicas de forma muito determinante em que aquele modelo operacional do Lumiar não é mais possível, e nós não conseguimos desenhar um modelo que atenda, ao mesmo tempo, a legalidade que os órgãos do Estado tem de cumprir e que desse segurança ao sistema (Superintendente do INCRA – Pesquisa de campo, 2009).

Essa dificuldade em definir estruturas razoáveis de funcionamento compromete a essência do que foi concebido em termo de objetivos. Se as propostas em si são bem construídas, mas sem clara definição dos meios para alcançá-las, desconsiderando a realidade de ausência de infra-estrutura para as equipes de assessoria desempenharem o trabalho no cotidiano, terminam por ser algo considerado muito distante do mundo real, conseqüentemente, não levadas em consideração no exercício cotidiano do trabalho. Nesse caso, parece claro que, na construção de uma determinada política pública, como no caso em tela da assessoria técnica, para não ficar meramente no campo das intenções, a definição dos seus objetivos não deve estar descolada das estruturas e condições essenciais para a sua concretização.

Como exemplo prático da insuficiência das condições para o funcionamento razoável da ATES, foi citada por alguns assessores entrevistados a ausência de recursos financeiros como instrumento metodológico, mesmo que pequeno, para desenvolver experimentos com os grupos que surgem no percurso do trabalho, através das ações com jovens, mulheres e grupos produtivos.

Os balanços sobre os resultados positivos da intervenção da assessoria têm mostrado que elas acontecem quando se aportam algum investimento no percurso

161 das ações de assessoria e capacitação. Segundo essa análise, os grupos e as novas experiências que dialogam com uma nova concepção de agricultura, com foco na agroecologia, surgem em torno de alguma coisa concreta, de uma ação prática.

Em síntese, o Manual aponta para muitas mudanças ousadas, porém sem indicativo de um rumo de como isso deve ser feito, quais as mudanças necessárias nas instituições e nas políticas públicas para que esses objetivos possam ser alcançados. A elaboração de onde se quer chegar é boa, mas não se construiu a estrada para garantir a travessia.

Outro obstáculo está relacionado com a estrutura legal para a execução da ATES. Atualmente, não existem normativos legais que dêem a possibilidade de colocar em prática a proposta tal como ela foi concebida, reforçando a análise do vácuo entre os objetivos almejados e os caminhos necessários para o êxito desse processo. Como exemplo citado por uma funcionária do INCRA, responsável pelo monitoramento da ATES, é que essa instituição não tem condições de fazer, de forma razoável, o acompanhamento do programa, visto que o formato das exigências legais e burocráticas dos relatórios e pareceres atende mais aos órgãos internos e externos de controle do que a uma avaliação propositiva de superação dos problemas, para atingir o avanço qualitativo que prega o Manual54.

Um aspecto relevante que prejudica o desempenho da ATES é a falta de sincronia entre as ações desenvolvidas pelas instituições executoras desse programa com as instituições públicas estatais que, direta e indiretamente, têm muita influência na dinâmica do assentamento, principalmente, o INCRA. No lugar de serem complementares, na prática, assumem uma postura de concorrência, como pode ser confirmada nesse depoimento abaixo:

A parceria entre INCRA e as entidades da ATES não tem sintonia, é tudo muito desencontrado. Às vezes a equipe está realizando um trabalho no assentamento, e o INCRA chega e não leva em consideração o que está sendo feito pela equipe, não busca dialogar e interagir. Se tivesse mais aproximação com a equipe, discutindo e planejando as ações e tomada de decisões de ambas as partes, os resultados seriam bem melhores (Assessora da Terra Viva – Pesquisa de campo, 2009).

54 Existe uma discussão no interior dos movimentos sociais, no governo e no próprio Congresso

nacional, de construção de um Marco Legal para o terceiro, que permita mais flexibilidade de execução de políticas públicas por esse segmento. Porém, essa proposta enfrenta muitas dificuldades para se concretizar.