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A retomada da temática agrária a partir da redemocratização

O início da década de 1960 foi marcado pela seguinte polarização sobre a intervenção do Estado na questão agrária: modernização na produção, mantendo a estrutura fundiária, ou reforma agrária, através da democratização do acesso à terra como medida para promover a justiça social e o desenvolvimento nacional. A implantação do Regime Militar significou a vitória da primeira proposta, mesmo com o Estatuto da Terra propondo-se incorporar essas duas vertentes.

O modelo posto em prática impossibilitou uma reformulação na estrutura agrária, principalmente na Região Nordeste, tornando-se determinante para moldar as características da sociedade atual: de um lado, profunda concentração de renda e poder e, por outro, uma desigualdade que contribuiu para a constituição de um cenário de centros urbanos caóticos e comunidades rurais marcadas pelo conflito e carência de políticas públicas essenciais.

Nesse processo de modernização dolorosa (GRAZIANO DA SILVA, 1981), a proposta da reforma agrária foi abandonada pelos sucessivos governos, contribuindo para um grande fluxo migratório, tanto para o Sudeste do País, como para os centros urbanos das grandes e médias cidades do Nordeste. Feito de forma abrupta e sem planejamento e infra-estrutura social e produtiva, necessários para receber essa população, esse processo constituiu-se como alicerce dos desequilíbrios habitacionais que presenciamos nas capitais e cidades de porte médio.

31 Após ter apoiado o golpe militar enquanto instituição, uma grande parte da Igreja Católica brasileira, identificada com a Teologia da Libertação, inclusive a Conselho Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), foi um importante abrigo para manter a chama acesa da reforma agrária, ajudando a construir as condições, através dos seus trabalhos de base e de reflexão sobre as causas da pobreza, para que essa temática viesse a ressurgir na década de 1990.

Após um processo de discussão interna, com assessoria e apoio de intelectuais de diferentes áreas do conhecimento, em 1980, foi lançado um documento aprovado pela 18ª Assembléia da CNBB, intitulado Igreja e Problemas da Terra. Era uma forte denúncia sobre a gravidade da parcela da população que precisava da terra para viver, mas que se encontrava ameaçada de perdê-la ou impossibilitada de alcançá-la.

Esse documento foge do economicismo, centrando sua análise em aspectos sociológicos, antropológicos, políticos e mesmo religioso: “a terra de todos como terra de poucos”, “a terra é um dom de Deus a todos os homens”, em que coloca em xeque a noção de propriedade privada da terra, no lugar de recurso natural para trabalhar e viver. Outro aspecto relevante desse documento foi recolocar a problemática indígena, enfatizando os conflitos provocados pela invasão de seus territórios já demarcados, assim como a omissão do Estado nesses processos, geralmente marcados pela violência.

Igreja e Problemas da Terra vai mais além e critica o próprio modelo de desenvolvimento adotado pela modernização da agricultura, pois, segundo esse documento, as mudanças em curso estavam favorecendo o lucro ilimitado dos grandes grupos econômicos. Além disso, as técnicas modernas introduzidas na produção estavam sendo implantadas à custa da dependência externa, referente à tecnologia, energia e capital, resultando em uma enorme concentração do capital e do poder.

Certamente, essa postura crítica e de apoio efetivo da Igreja Católica ao campesinato, em um momento histórico marcado pela repressão política e auge do modelo produtivista, foi um marco determinante para que a bandeira da reforma agrária não caísse no esquecimento. Deu condições para ser retomada no período seguinte, porém, agora, trazendo consigo, não apenas a questão fundiária, mas a importância para a cultura nacional em preservar a história e o modelo de vida dessas populações. Esse novo momento se dá com a participação de outros sujeitos

sociais, incluindo os movimentos sociais no campo, que surgiram e ressurgiram já com as marcas e as novas demandas provocadas pela modernização da agricultura9.

A volta da temática da reforma agrária na agenda brasileira, desde a década de 1990, está no bojo das conseqüências negativas do processo de modernização da agricultura, principalmente no tocante à exclusão social e produtiva de uma significativa parcela da população rural, que não conseguiu se inserir nas novas dinâmicas agrícolas baseadas no tripé monocultura-mecanização-quimificação, nem fazer a migração com sucesso para os centros urbanos. A alternativa foi buscar formas variadas para continuar no espaço rural, dentre elas, lutar pela terra historicamente negada.

Mesmo ainda insuficiente para contemplar as famílias que têm no acesso à terra a possibilidade para reconstituição de suas vidas e reinserção social, a reforma agrária realmente existente tem propiciado, a um número significativo de famílias, o acesso a uma faixa de terra bem superior ao minifúndio, marcante na agricultura familiar, principalmente na Região Nordeste. Além disso, o processo de multiplicação de assentamentos vem contribuindo para forjar uma série de políticas públicas para esse setor, a exemplo da assessoria técnica.

O surgimento em massa dessa nova categoria “assentados da reforma agrária” contribui para diversificar ainda mais o que hoje, no Brasil, tornou-se comum denominar de agricultura familiar. Para Buainain (2007), talvez seja um equívoco conceitual seguir tratando grupos com características e inserção socioeconômica tão distinta sobre essa mesma definição, apenas porque têm um traço em comum, o de utilizar majoritariamente mão-de-obra familiar. Essa espécie de guarda-chuva, denominado agricultura familiar, tem servido para nomear 85,2% do total dos estabelecimentos; destes, mais de 50% (2.055 milhões) estão localizados no Nordeste, dos quais 1.215.558 geram nível de renda inferior à linha de pobreza, constituindo-se principalmente, como reserva de mão-de-obra e em local de moradia, com uma pequena produção destinada ao autoconsumo (BUAINAIN, 2007).

9 A década de 1980 será muito marcante para a temática da reforma agrária sair da defensiva e

ganhar visibilidade e força social, impulsionada pelo nascimento, entre outros, do Partido dos Trabalhadores (PT), Central Única dos trabalhadores (CUT) e Movimentos dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

33 A reflexão crítica sobre os processos de desenvolvimento, impregnados de um viés urbano e industrializante (GOMES DA SILVA, 2002), em que a possibilidade de ser e viver no moderno estava restrita ao urbano, abre uma janela sobre o lugar do rural, que não o do atraso e do passado e recoloca a importância de valorização do espaço rural. Dá-lhe outras possibilidades, que não a sua desertificação social e ambiental que caracterizam o modelo da agricultura baseado em monoculturas da cana, da soja, do eucalipto e similares, transformando o rural em monótonos desertos verdes. Nesse sentido, a emergência da crítica, cumpre um papel de contraponto e de outra alternativa para o rural, portanto, que o seu futuro não está prescrito, será uma escolha da sociedade.

Essa nova abordagem ressignifica o rural, não apenas como lócus de produção de matéria-prima alimentar ou como fonte geradora de dividendos imediatos para aumentar a exportação nacional para sustentar políticas econômicas insustentáveis. Mas vislumbra esse espaço como possibilidade de florescer não apenas uma nova agricultura mais sustentável e sincronizada com as dinâmicas locais e regionais, mas junto com ela, potencialize o resgate de costumes e valores culturais que enriquecem a diversidade do País.

Nessa perspectiva, as questões e o destino do rural não são importantes apenas para a sua população. Portanto, o debate da reforma agrária no século XXI em países como o Brasil, abrange muitos elementos além da distribuição de terra, não interessando apenas aos camponeses dos países do Sul do mundo. Sua realização também interessa aos setores sociais urbanos, aos agricultores familiares dos países desenvolvidos, pois esses segmentos também se sentem ameaçados com o empobrecimento e expulsão dos camponeses, além dos profundos desequilíbrios ambientais e de destruição dos ecossistemas que o modelo centrado no produtivismo desencadeia.

A visão da permanência da relevância do espaço rural ganha força a partir da crítica à ideologia que embalou o processo de modernização da agricultura, que preconizava a morte da agricultura de base camponesa e familiar e de todo o seu significado cultural no modo de vida das populações rurais, propagado como atrasado, arcaico e responsável pela miséria no campo. Para Dias (2004), esse pensamento vai ter visibilidade no Brasil a partir de três setores, com fortes repercussões na discussão sobre a reforma agrária e a agricultura familiar:

Academia: ganham espaço nas pesquisas as análises que reconhecem o papel histórico da agricultura familiar, mostrando que, em muitos países europeus, ela foi fundamental para o impulso do desenvolvimento socialmente articulado e mais harmônico com o meio ambiente. Ao contrário, nos países periféricos, principalmente com o impulso da revolução verde, a agricultura familiar e camponesa foram sacrificadas para a consolidação de um tipo de agricultura intensiva em capital, insumos químicos e recursos naturais, que resultou na formatação de sociedades com graves desequilíbrios sociais e ambientais.

Nessas duas experiências, a pesquisa acadêmica apontava que o Estado teve papel fundamental. Na primeira, apoiando fortemente a agricultura familiar, inclusive através de subsídios; na segunda, investiu em um modelo concentrador que promoveu um desordenado êxodo rural, inibindo as possibilidades de reforma agrária e viabilização da agricultura familiar.

Movimentos sociais: no Brasil, as conseqüências negativas da modernização da agricultura e o fim do Regime Militar propiciaram o reaparecimento dos movimentos sociais que estavam no limbo em virtude da repressão, tais como o sindicalismo rural. Além disso, surge, em 1985, o MST, constituído pela massa de excluídos da agricultura modernizada, pois, além de não terem terra, não entraram na categoria dos trabalhadores rurais assalariados e também não foram absorvidos no espaço urbano. Através de variadas formas de lutas, esses movimentos conseguem chamar a atenção da sociedade e pressionar o poder público, fazendo com que o debate em torno da reforma agrária e da agricultura familiar voltasse a ter visibilidade.

Agências Internacionais: o balanço da modernização da agricultura, feito pelas principais agências internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) foi que, apesar do aumento da produção, ela gerou graves desequilíbrios ambientais (solos degradados, águas contaminadas, florestas devastadas) e sociais (uma legião de excluídos no campo e na cidade). Reconhece a agricultura familiar como mais eficiente no trato dos recursos naturais, além de propiciar mais possibilidade de ocupação e melhor

35 distribuição da riqueza produzida. Essa análise não pretende romper com o pensamento que impulsionou a revolução verde; busca apenas ajustes que contemplem setores da agricultura familiar, já inseridos nos mercados.

Para Rosset (2004), há três fatores que contribuem para essas agências assumissem a defesa da reforma agrária em países da América Latina, África e Ásia. O primeiro é o crescimento econômico a partir de estudos comparativos entre países que demonstram que a concentração da terra retarda as taxas de crescimento. Nesse sentido, um reordenamento fundiário, através de uma melhor distribuição, pode contribuir para esse crescimento. O segundo é o investimento em áreas rurais, por acreditarem que algum processo de reforma agrária iria estimular o fluxo de investimento privado nessas áreas. O terceiro está mais no campo da legitimação diante da realidade socioeconômica, ou seja, a necessidade, por parte dos governos nacionais, de medidas de redução da pobreza, sendo uma delas o acesso à terra.

Nesse contexto, a reforma agrária defendida pelo Banco Mundial seria aquela dirigida pelo mercado, por acreditar que esse viés reduziria a resistência das elites locais e, conseqüentemente, o conflito social em torno dessa temática. Em síntese, o que está no bojo dessa concepção é que o processo de reforma agrária sairia do âmbito da política para o âmbito do mercado.