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5.3 Qual a concepção ou para que mesmo assessoria?

5.3.3 A visão dos assentados

A literatura sobre o desempenho dos mediadores em comunidades rurais é bastante enfática no papel que esses exercem como liderança natural a partir dos seus conhecimentos, mesmo nem sempre tendo essa consciência. Isso é bastante problemático pela tendência em exercitar uma postura autoritária e desrespeitosa perante os costumes tradicionais da localidade (CAVALLET, 1999). Já para Martins (1989) as populações rurais e os agricultores com suas práticas, são colocados em uma condição de subalternidade na relação com os mediadores; que estes são os portadores de um projeto para os subalternos, nem sempre compreendendo o contexto e os desejos dessas populações. Mesmo assim, se arvoram do direito de falarem por elas, a partir de suas concepções do que seria as melhores alternativas

para o enfrentamento das questões colocadas no cotidiano dessas populações rurais.

A razão principal do processo de legitimação da assessoria é motivada porque ela tem uma dupla função, para dentro e para fora da comunidade. Para dentro, é responsável para viabilizar os recursos econômicos e simbólicos, principalmente através dos projetos que significam o progresso e o moderno. Para fora, a assessoria tem o papel para fazer com que os desejos e insatisfação das comunidades assessoradas cheguem até aos órgãos competentes, essencialmente àqueles do Estado, na viabilização desses intentos.

Nesta fala de um assentado, essa perspectiva de liderança e facilitador de processos por parte da assessoria se faz presente. É ela que faz a mediação nos problemas e relações tensas entre os assentados, além de dinamizar espaços para discutir os problemas e oportunidades do assentamento.

O assentamento nunca mais se reuniu. Têm vários novos assentados que estão em condições de fazer o Pronaf A. Quando tinha ATES ela chamava para se reunir, discutir os problemas do assentamento. O presidente que é quem tem que fazer isso, parece que ele tem medo de chamar os assentados para discutir. A ATES que quer trabalhar ela se envolve, ela vai à luta, traz informações. Ela chama um assentado, ela chama um presidente. E isso nós estamos perdemos muito. Estamos isolados, a ver navios (Assentado de Canto da Ilha de Cima – Pesquisa de campo, 2009). Para D‟Inácio (1995), há três fatores que contribuem para o processo de legitimação da assessoria nos assentamento da reforma agrária perante o público ao qual assessora. O primeiro relaciona-se à racionalidade burocrática exigida em uma área que sofreu a intervenção do Estado, para se constituir e com uma série de políticas públicas de ordem produtiva e social em que a assessoria detém uma imprescindibilidade para que elas cheguem às famílias; o segundo, é motivado pela possibilidade de Projetos de investimento, que exercem uma condição quase mágica para os assentados saírem do estágio em que se encontram e adentrarem na modernidade produtiva; a terceira razão de legitimação da assessoria é o aporte do saber científico e técnico, colocado como verdade absoluta, dando poder à assessoria de definir o que é o melhor para o assentamento e as famílias.

A função dos mediadores, seja com qualquer uma das denominações que se tornou conhecida: assistência técnica, extensão rural, agente de desenvolvimento ou assessoria, tem em comum ser historicamente uma intervenção externa ao contexto

189 local. Porém, segundo Novaes (1994) em estudo sobre mediação, essa atividade tem três categorias: os mediadores externos, que seriam constituídos por aqueles pertencentes à igrejas, universidades, ONGs, Estados. Nesses contextos, o termo mediação ganha singularidade, já que se propõe a desenvolver uma ação mais no campo da assessoria, que pode aportar recursos financeiros e humanos e, junto com estes, são trazidos recursos simbólicos e novos valores.

A segunda categoria seriam os técnicos do Estado, considerados mediadores “de cima”, por sua função de impor nas comunidades os projetos definidos externamente a partir de uma visão hegemônica no interior do aparelho do Estado, sem nenhuma mediação com a cultura local. Nesse aspecto, uma boa ilustração foi a adesão aos pressupostos tecnológico e metodológico da revolução verde, que foi assumido pelas instituições estatais de assistência técnica. Além destes, teria uma terceira forma de mediação, que ele define como “de dentro”, impulsionado por sindicados e movimentos sociais.

Dentro dessa nomenclatura, aonde se encaixaria a experiência de assessoria técnica desenvolvida nos assentamentos e investigada nessa pesquisa? Parece mais evidente que ela é um misto desses formatos. Tem uma influência do Estado, já que é financiada e coordenada por instituições estatais, mas sofre muitas intervenções sociais na sua definição e concepção, além disso, as instituições executoras tem vínculos com as comunidade. É por isso que a ATES tem sido um jogo de tensão e contradição no processo de sua execução, inclusive na dificuldade de encontrar modelos de funcionamentos, que atendam, ao mesmo tempo, as exigências e interesses da política de Estado e das entidades e movimentos sociais, que reclamam pela implantação de uma concepção agroecológica e participativa dessa política pública.

Essa característica de portador do conhecimento científico faz do técnico um sujeito diferenciado do assentado. Manusear os normativos das políticas públicas, construídos em formato burocrático impossível de compreensão pela maioria dos beneficiários da reforma agrária, coloca-o como o tradutor indispensável entre os atores, pois o domínio dessa linguagem é conferido ao técnico por suas habilidades na escrita e no saber adquiridos na universidade (PIMENTEL, 2007).

O exemplo que pode evidenciar melhor essa situação é a política de crédito para a produção em que só é possível ser acessada pela família assentada com a intervenção do técnico que elabora e assina os projetos, muitas vezes sem

problematização. No limite, está presente mais fortemente a concepção do técnico do que do próprio agricultor, que é quem vai implementar e se responsabilizar pelo pagamento do projeto, podendo ficar posteriormente inadimplente perante as instituições financeiras. Apenas os iniciados são capazes de entender as normas bancárias, econômicas e financeiras, que estão imbuídas em termos como custeio, investimento, capacidade de pagamento, negociação da dívida, etc.

Essa relação de aparente superioridade da assessoria diante do agricultor tem como base a própria lógica, construída desde a formação profissional e permeando as instituições públicas, da existência de um tipo de agricultura atrasada, desenvolvida pelos agricultores tradicionais, e uma outra moderna, baseada na introdução de insumos e tecnologias exógenas, a ser perseguida como condição para alcançar o progresso. Esse contexto contribuiu para que a assessoria construa ou reproduza nos assentamentos um discurso e uma prática sem mediação com a cultura local. Esse depoimento de um assentado sobre a dificuldade de compreensão sobre o que o técnico explica nas reuniões é bem ilustrativo neste sentido. Mesmo considerando inteligente e esforçado, termina por se caracterizar o que Freire (1971) define enquanto uma relação anti-dialógica.

Eu admirava, é esforçado. Só lamento uma coisa [pausa]. Não é falando mal dele não. Ele falava muito [pausa], assim [pausa], chegava numa reunião, gostava de botar aqueles óculos escuros. Aí ele falava muita palavra que ninguém entendia, quem não tinha aquele conhecimento. Ele tinha que falar [pausa] ele é um homem sabido, mas ele tinha que falar da nossa iguala, prá gente entender. Ele falava muitas palavras que a gente saía sem saber nem o que danado ele tinha falado, com licença da palavra, porque aqui só tem agricultor que tem pouquinho estudo. Era isso que eu ignorava dele, porque ele é um homem muito inteligente, mas tinha esse problema (Assentado de Antônio Conselheiro – Pesquisa de campo, 2009). Importante realçar que não há unanimidade entre os assentados de uma visão pragmática da assessoria. Existe também, geralmente naqueles que tiveram alguma participação de liderança ou envolvimento em grupos que estão realizando processos produtivos sustentáveis, uma compreensão que vai além da elaboração do projeto. Acham que é muito difícil o desenvolvimento do assentamento sem uma assessoria técnica que possa facilitar os processos de construção de alternativas.

Muita gente acha que assessoria é para buscar dinheiro todo dia para projeto e, na verdade, o seu trabalho não é só isso. Ele tem

191 que orientar e facilitar para a gente construir as nossas soluções. É como se fosse um professor. Ele propicia um encontro, uma troca de idéias com os outros. Mas esse pensamento é muito forte. Dizem “se não resolver o problema do banco (inadimplência que impede acessar outros créditos), ah, essa assessoria não presta (Assentado de Antônio Conselheiro – Pesquisa de campo, 2009).

Para os grupos agroecológicos analisados nesta pesquisa, a assessoria tem se mostrado determinante no desenvolvimento dessas experiências, não apenas no aspecto agronômico, mas também no sentido da orientação e do estímulo para que os integrantes seguissem em frente, mesmo com a desistência de alguns dos componentes que participaram da sua origem. Uma integrante do grupo de mulheres de Bonsucesso relembra a motivação da assessoria para ela continuar persistindo, admitindo que foi essencial para continuar e chegar ao estágio atual. Também, em forma de diálogo, improvisa as constantes conversas que tinha com as outras mulheres do grupo, para que elas continuassem no grupo.

Eu agradeço primeiro a Deus e depois aos homens da terra como a TECHNE e os meninos (referência aos assessores: assistente social e agrônomo) que me deu muita forma; que dizia Nicinha, agüenta, tenha fé. Aqui era um pai-nosso: num desista, num desista...

Eu tentava repassar esse ânimo para as outras mulheres do grupo. (reproduzindo o diálogo)

- Minha gente, vamos ter fé

- Que fé nada. Fé numa coisa que não está dando em nada - Mulher, um dia a gente chega lá

- Chega lá quando? (Assentada de Bonsucesso – Pesquisa de campo, 2009)