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Saber como poder: a formação na raiz do problema e da solução

Para análise das possibilidades de concretização de uma proposta como a sugerida no Manual da ATES é necessário refletir sobre a formação acadêmica dos profissionais envolvidos nas atividades. Até que ponto o conteúdo apreendido nas universidades conflui ou contrasta com algumas propostas centrais da ATES como a perspectiva da agroecologia, metodologias participativas, integração das várias dimensões (produtiva, social e cultural) que marcam os impasses e as potencialidades dos assentamentos rurais?

A partir do século XVII, destacam-se concepções e pensadores que influenciaram a constituição de um campo de conhecimento, hoje chamado de ciências agrárias, modificando a concepção acerca do saber. Essa revolução nas idéias modificou a forma mítica e religiosa de pensamento e de conhecimento acerca do mundo, rompendo com a idéia medieval de que o homem conhece apenas aquilo que é revelado por Deus. Justus Von Liebig (1803-1873), considerado o pai da agroquímica, dando início ao “quimismo” na agricultura, juntamente com Louis Pasteur (1882 – 1895), funda as bases para a compreensão da importância da matéria orgânica para a vida do solo e para a produção agrícola.

34 Para Santos (2006), a epistemologia do Sul a que se refere não é uma definição apenas

geográfica. Ela é fundamentalmente uma referência à construção das resistências e alternativas de diferentes povos do mundo às mazelas que o capitalismo tem gerado. Esse processo cria e recria um conhecimento, que é valorizado por aqueles que pensam e buscam as emancipações dessas sociedades.

Como afirma Sevila Guzman (2004), a visão científica se constituiu em uma ditadura da racionalidade instrumental, uma espécie de leviatã, que implica a exclusão de outros saberes que não respondam ao método científico, sendo assim considerado obstáculo para a modernização e o desenvolvimento. Por isso, a importância de um enfoque pluriepistemológico, que aceite a biodiversidade sociocultural, abrindo espaço para um diálogo horizontal, interativo e criativo. Assim, cria-se uma relação dialógica para construir um saber-fazer síntese, pois não existe uma linha demarcatória entre o especialista e o leigo. Os conhecimentos se entrecruzam e se potencializam à medida que as ações sejam definidas endogenamente, de forma participativa. Nesse sentido,

Os aspectos epistemológicos e metodológicos ocupam um lugar central em um conjunto de mudanças importantes que estão ocorrendo no processo de recriação da extensão rural latino- americana. A esse processo nós temos denominado “Extensão junto com a gente”. Este paradigma emergente de Extensão rural está muito sacrificado pelas visões modernizantes que, a partir do lema “Extensão para a gente”, impulsionam, na realidade, propostas que impõem recursos culturais externos (ALEMANY, 2008, p. 43). O processo de profissionalização agrícola no Brasil, a partir do saber científico na função das mudanças no processo de produção e transformação da natureza e da vida social no campo, delineou-se em duas fases e tipos de ciência, já consolidados para a agricultura: a ciência-experiência e a ciência-experimento. Apoiado em Coelho (2005), faz-se alguns comentários sobre essas duas concepções de fazer ciência na agricultura:

a) Fase da ciência-experiência: hegemônica no Brasil até o final dos anos trinta, do século XX, foi a primeira forma de cientificação do saber agrícola no caminho da complexificação dos procedimentos de domestificação de plantas e animais, objetivando construir conhecimentos a serem partilhados – objetos, manejo ou procedimentos, pela experiência de algum processo de produção. A observação e o registro sistemático são suas características metodológicas mais marcantes.

b) Fase da ciência-experimento: esse período é marcado pela forte influência dos cursos de especialização nos EUA, que formavam profissionais, professores e pesquisadores do mundo inteiro, para atuarem e replicarem

101 essa concepção em seus países de origem. Dois conteúdos tornaram-se emblemáticos para a mudança de seus métodos de pesquisa: a estatística e a genética. As pesquisas passaram a ser realizadas em laboratórios, casas de vegetação ou em campo, com o estabelecimento de algumas condições de controle.

Caracteriza-se pela produção da ciência em um ambiente artificialmente produzido para controle de resultados. Esse tipo de ciência-experimento permite a produção de um segredo, que, por sua vez, dá a seus resultados as condições de sua transformação em mercadoria, quando a socialização se dará através da venda. Aqui também acontecem as primeiras diferenciações entre os profissionais: um segmento pesquisa; outro ensina, e um outro difunde o conhecimento em forma de mercadoria. Esse processo vai contribuir para o surgimento das lojas de comercialização de insumos agrícolas como as Casas da Lavoura ou Casas do Fazendeiro.

As ciências agrárias têm passado por mudanças históricas na sua concepção, quando foca a produção de conhecimento sobre a atividade agrícola em modelos tecnológicos, desconsiderando que a natureza social da agricultura é marcada pela diversidade. Essa perspectiva termina por legimitar tais modelos agrícolas como uma única forma correta de fazer agricultura, deixando nas entrelinhas que outros métodos, principalmente aqueles que conservam práticas tradicionais, sejam considerados menos científicos (LONG & PLOEG: 2008).

Uma das características mais marcante do predomínio da lógica difusionista foi uma supervalorização dos conhecimentos advindos da academia, mesmo que descontextualizados, e uma desqualificação de saberes populares, tratados como superstição, magia ou misticismo. Dizer que o conhecimento científico é diferente ou mais complexo em seus procedimentos que o conhecimento cotidiano não significa afirmar que necessariamente ele é superior. Nesse sentido, “sacralizar a ciência é retirar dela uma de suas características ou crenças distintivas, ou seja, sua capacidade de conviver, de sobreviver e até de se transformar diante das críticas” (COELHO, 2005, p. 30).

Em estudo sobre a formação do profissional de agronomia, Moura (2006), analisou a Escola de Agronomia do Ceará, Escola Superior de Agricultura de Mossoró (transformada em Universidade Federal Rural do Semi-Árido) e a

Faculdade de Ciências Agrárias de Araripina, fundadas, respectivamente, em 1918, 1968 e 1986, significando diferentes fases da atividade agrícola e sua relação com o desenvolvimento. Como conclusão de seus estudos, a autora enfatiza que, apesar das intenções de mudanças curriculares, perpassa em todas elas, uma formação segmentada, com pouca ênfase no conhecimento social e voltada para a grande exploração. Nesse sentido, afirma essa autora,

Nossa hipótese central é que o agrônomo formado através de modelo de ensino departamentalizado, no qual se privilegia a especialização, voltado para atividades fragmentárias, que visa treinar técnicos para incremento da produção agrícola, não tem incorporado na formação as demandas e desafios da nova ruralidade (MOURA, 2006, p. 107).

Para Dias (2007), os extensionistas, quase como uma regra, formam-se em cursos que não os capacitam nem os habilitam para interagirem com agricultores. Pois concebem estes como meros “objetos de intervenção” ou “público-alvo”, e não como potenciais sujeitos do seu próprio desenvolvimento. São propostas de desenvolvimento geralmente definidas em gabinetes, em laboratórios, em estações experimentais ou nas instâncias governamentais.

Coelho (2005) vai enfatizar que é muito comum, entre estudantes da área técnica, a redução do conceito de cultura à idéia de tempo de escolaridade. Uma pessoa culta é aquela que acumulou muita informação, que não pode ser adquirida em outro espaço que não o ensino formal. Porém, cultura, é muito mais do que isso. É, essencialmente, um modo de ver o mundo, que engloba comportamento, valores e atitudes para se afirmar perante os desafios do contexto em que vive.

O problema da formação profissional não está restrito aos cursos ligados às ciências agrárias. Em termo de concepção, pelo menos nos manuais, a idéia de perseguir o desenvolvimento sobre o prisma diferente daquele predominante no auge da modernização da agricultura, incorporou a necessidade de equipes de assessoria multidisciplinares, dando ênfase à abordagem das questões sociais como centrais na busca do desenvolvimento rural. Porém, é notável que a formação dos profissionais da área social também exclui a reflexão sobre a questão agrária e o rural atual, tendo como conseqüência uma atuação profissional com um viés eminentemente urbano.

103 Enfim, aqui também é importante não departamentalizar a análise. Talvez, o mais correto é uma observação geral sobre a formação universitária, pelo seu distanciamento da realidade dos problemas e da vida da população e das localidades que não estão nos centros dinâmicos social, cultural e econômico. Com essa postura, fica difícil absorver para o cotidiano acadêmico a reflexão e a investigação sobre os obstáculos, potencialidades e singularidade que se encontram, por exemplo, em áreas geográficas como o rural e o semi-árido.

Por isso, pensar o rural como espaço com história singular e para além da produção agrícola, exigente de profissionais com formação para uma atuação de forma contextualizada para apreender suas especificidades, é um desafio que não se restringe aos cursos das ciências agrárias. Abrange a necessidade da formação acadêmica, com seus diversos cursos e departamentos, incorporar com mais efetividade a reflexão sobre a dinâmica, problemas e potencialidade presente no rural.