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5.1 Concepção do programa: foco na agroecologia

5.1.1 O que se escreve não se lê?

Se para os segmentos identificados com a perspectiva agroecológica o conteúdo do Manual de ATES representa uma importante conquista, por definir uma linha orientadora para o trabalho de campo da assessoria, isso não significa que, a priori, o sentido da ação cotidiana caminhe nessa direção. Como diz o dito popular, “no papel cabe tudo”, significando que, nem sempre, o que está escrito e anunciado torna-se referência para a prática, pois muitas vezes, a execução vai em direção contrária ao pensado.

Esse parece ser o principal problema da política da ATES: a centralidade do seu conteúdo não é perseguida pelos diversos agentes e atores que atuam e influenciam na sua dinâmica. Ao fim e ao cabo, sobressai não seu caráter inovador, mesmo reconhecendo a sua existência, mas a permanência das práticas convencionais. Isto se dá, porque a inovação contida, por exemplo, na opção pela agroecologia é permanentemente constrangida pelas condições reais do funcionamento do programa e nos arranjos institucionais em que ele está inserido.

155 Um obstáculo fundante se encontra no próprio responsável pela gestão do Programa de ATES, no caso o INCRA. A maioria dos funcionários dessa instituição, hoje lotados no Rio Grande do Norte, entrou na década de 1970, tendo como exigência profissional conduzir o processo de colonização nas fronteiras do Brasil, recrutando famílias do Nordeste, deslocando-as para essas novas áreas e oferecendo desde a comida até a casa, a terra, saúde e educação. Já na década de 1980, com o fim do regime militar, a política de colonização perde fôlego, fazendo com que essa instituição entre em crise pela falta de perspectiva.

Nos anos de 1990, quando a luta pela reforma agrária é retomada em todo o País, tendo como conseqüência prática as vistorias, desapropriações de terras consideradas improdutivas por não cumprirem sua função social, e a criação de vários assentamentos, exigem dessa instituição que se volte para coordenar processos de desenvolvimento nessas áreas, dentro de uma nova perspectiva de valorização dos conhecimentos locais, processos participativos, numa nova matriz produtiva, que leve em consideração a questão ambiental de preservação dos recursos naturais.

Essas novas demandas são colocadas sem um processo de renovação, qualitativo e quantitativo, da instituição, que possa atender à altura esse novo papel que lhe é exigido. Essa declaração de uma funcionária é esclarecedora desse dilema:

Aqui no RN tem um conjunto de servidores muito heterogêneo, inclusive os que são responsáveis pela ATES. Tem um pessoal novo que vem com uma perspectiva inovadora, simpatizante da reforma agrária, mas sem nenhuma experiência. Alguns deles nunca tinham pisado num assentamento, sem falar que outros não têm nenhuma identidade com a reforma agrária e desenvolvimento rural; que acham que é jogar dinheiro fora, além de tudo isso, tem uma dificuldade operacional, os recursos são insuficientes, a fragilidade da instituição e poucos profissionais para acompanhar com tempo para dialogar com esses agricultores (Chefe da divisão de Desenvolvimento do INCRA/RN – Pesquisa de campo, 2009).

Para as instituições executoras da ATES, que são objetos desta pesquisa, pela sua identificação como os princípios da agroecologia, foi percebido que o Manual não se constituía em uma referência no cotidiano do trabalho. As razões para isso podem ser organizadas em dois argumentos. O primeiro é que seu conteúdo foi fruto de um reconhecimento das atividades já desenvolvidas pelas

entidades identificadas com a agroecologia, deixando perceber nas entrelinhas que ele não traz muitas novidades em relação ao que já vinha sendo feito, portanto, sem necessidade de tê-lo como um norteador; o segundo argumento é por achá-lo muito idealizado e distante das condições reais em que o trabalho de ATES é desenvolvido. O cotidiano das demandas terminava afastando dos seus propósitos na dinâmica da assessoria. Nesse sentido, a concepção podia até estar presente como horizonte na lógica de uma assessoria que privilegia formas participativas, observando os anseios das famílias e com o norte na agroecologia, mas, na realidade, ele não se constituía como parâmetro sistemático a ser seguido.

Mesmo para a assessoria que teve um contato maior com seu conteúdo para a elaboração da proposta, ou no sentido de tirar alguma dúvida no percurso do trabalho, o Manual não era um instrumento do cotidiano de campo que servisse como balizador. Talvez pela proposta ter sido concebida a partir do Manual, mas na execução em si raramente ele era instrumento de orientação e avaliação, como bem atesta esse depoimento abaixo.

Conheço porque participei da elaboração para a licitação, mas não conheço como um documento que a gente ficava se balizando. Sei que na nossa prática ele está presente: o conceito de agroecologia, economia solidária, segurança alimentar. Conheço como princípio da gente (Assessor da Coopervida – Pesquisa de campo, 2009). Na declaração a seguir afirma-se que o Manual é generalizante, por isso tem dificuldade de dialogar com a realidade dos assentamentos e os interesses imediatos das famílias.

Para ser sincero, eu mesmo não li, peguei algumas partes que me interessava para o trabalho. Para o trabalho, a referência era o dia- a-dia, a demanda. Realmente não conheço à fundo, mas acho que está muito distante da realidade. Ele é geral, e cada região tem suas particularidades. Para se levar o Manual ao pé da letra tem que ser feita uma adaptação e a comunidade não se propõe a fazer, pois ele não se encaixa no seu dia-a-dia e interesses imediatos (Assessor da TECHNE – Pesquisa de campo, 2009).

Já a equipe da Unidade de Articulação, mesmo considerando que o Manual está muito idealizado pela ausência de instrumento para concretizá-lo, foi quem mais mostrou preocupação em tê-lo como um referencial permanente do seu trabalho de acompanhamento do desempenho das instituições executoras. O monitoramento

157 das ações e as capacitações sob sua responsabilidade para as instituições que estavam executando o programa foi no sentido de fortalecer os princípios orientadores contidos no Manual, tentando, assim, que as ações não ficassem presas apenas às demandas cotidianas, mas se pautassem em uma mudança de concepção e metodologia no trabalho da assessoria.

No geral, pode-se dizer aqui que o Manual, mesmo servindo como referência, ficou secundarizado no percurso do desenvolvimento do trabalho das ATES. Não se constitui como balizador e ferramenta para a efetivação e avaliação dessa política. Para os segmentos mais identificados com o seu conteúdo, principalmente em relação agroecologia como foco, poderia tê-lo como instrumento de pressão para sua efetivação e negociação, perante setores mais resistentes a mudanças na matriz produtiva, como os agentes financeiros, responsável pelo crédito, e o próprio INCRA.

Não basta estar escrito. Sua concretização depende de uma luta ativa e permanente daqueles setores adeptos da sua proposta, assumindo a tarefa para que ele salte do papel para a dinâmica das instituições e dos assentamentos. Para isso, talvez seja necessário seguir o dito no final dessa intervenção abaixo em que o Manual se constituiria em um instrumento real de pressão.

O Manual não é incorporado por todo o mundo na própria equipe técnica. Alguns compreendem, outros não. Acho que não é uma responsabilidade só da equipe. Faltam incentivos do outros agentes como o INCRA e bancos. Se não você fica eternamente nadando contra a corrente. Nesse sentido, mais formação é importante para que a assessoria tenha mais jogo de cintura para convencer esses agentes. Também, talvez fosse importante colocar o Manual debaixo do braço e cobrar mais das partes. Porque não depende só da assessoria para avançar na proposta da agroecologia (Assessora da TECHNE – Pesquisa de campo, 2009).

Talvez, garanti-lo como normativo é apenas a primeira etapa e vitória de um processo de longo prazo. A disputa decisiva se dá na sua efetivação no cotidiano das ações a serem concretizadas como nos projetos de investimentos, que, na realidade é quem vai dando o sentido e o desenho de como o assentamento vai construir sua perspectiva de desenvolvimento. A possibilidade de concretizar um processo de transição agroecológica só é possível se as ações micro, desenvolvidas com pequenos grupos, ou mesmo famílias isoladas, estiverem em sintonia com os projetos estruturantes que estão sendo implantados.