C APÍTULO III
3. A INTEGRAÇÃO DE CUIDADOS DE SAÚDE E O SISTEMA DE SAÚDE PORTUGUÊS Este capítulo debruça‐se sobre o sistema de saúde português, com vista a elucidar sobre a questão da
3.1 A integração de cuidados de saúde e a organização do sistema de saúde português
“ (…) A política de saúde tem âmbito nacional e obedece às diretrizes seguintes: (…) Os serviços de saúde estruturam‐se e funcionam de acordo com o interesse dos utentes e articulam‐se entre si (...); A gestão dos recursos disponíveis deve ser conduzida por forma a obter deles o maior proveito socialmente útil e a evitar o desperdício e a utilização indevida dos serviços; (…); O sistema de saúde assenta nos cuidados primários, que devem situar‐se junto das comunidades. Deve ser promovida a intensa articulação entre os vários níveis de cuidados de saúde, reservando a intervenção dos mais diferenciados para as situações deles carecidas e garantindo permanentemente a circulação recíproca e confidencial de informação clínica relevante sobre os utentes. (…)”. Este excerto da Lei de Bases da Saúde (Lei nº 48/90 de 24 de Agosto ) é já revelador de uma preocupação em assegurar aos utentes do SNS cuidados integrais propondo um caminho de maior coordenação entre níveis de cuidados, no sentido de garantir uma maior adequação da oferta às
necessidades da procura, bem como uma maior eficiência na afectação dos recursos disponíveis. Realçam‐ se neste extracto, e com particular relevância para este trabalho, aspectos como o interesse dos utentes, a articulação intra e interinstitucional, a eficiência na gestão dos recursos, os cuidados de saúde na comunidade, bem como a importância da circulação de informação clínica relevante sobre os utentes. Não deixa de ser importante recordar que a Lei de Bases da Saúde, na Base XXXVI, no que se refere à gestão dos hospitais e centros de saúde, afirma que “(...) a lei pode permitir a realização de experiências inovadoras de gestão, submetidas a regras por ela fixadas.”, o que veio a resultar, nomeadamente, na posterior proposta de criação das unidades integradas de cuidados de saúde, no Decreto‐Lei nº 11/93 de 15 de Janeiro‐Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, com o objectivo de assegurar a continuidade na prestação de cuidados de saúde, através de uma maior articulação entre cuidados primários e cuidados hospitalares.
Posteriormente, e considerando‐se que este modelo não garantiria uma articulação flexível e adequada às necessidades das populações, entre hospitais, centros de saúde e outras instituições da mesma área geográfica, instituiu‐se por decreto‐lei (Decreto‐Lei nº 156/99 de 10 de Maio), um modelo de articulação/integração de cuidados de saúde, com a designação de sistemas locais de saúde, enfatizando‐se aspectos como “a articulação de recursos com base na complementaridade”, a organização da prestação de cuidados de acordo com uma lógica “geográfico‐populacional” e “a participação social em articulação com a rede de referenciação hospitalar”. Campos e Simões (2011) consideraram, no entanto, ter havido, com a criação no mesmo ano, pelo Decreto‐ Lei nº 207/99 de 9 de Junho, da Unidade Local de Saúde (ULS) de Matosinhos (integrando o Hospital Pedro Hispano e centros de saúde do concelho), uma opção evidente do legislador pela introdução de um novo modelo de organização da prestação de cuidados de saúde primários e diferenciados. Estes autores, ao elegerem também a integração de cuidados como um dos temas centrais a ter em conta nas políticas de saúde, enfatizam a necessidade de serem alcançados níveis superiores de eficiência e de eficácia na articulação entre os cuidados primários e hospitalares. Estes autores apresentam o modelo das ULS como um exemplo de integração vertical de cuidados de saúde, tendo subjacente uma lógica de maior responsabilidade pelo estado de saúde de uma determinada população, a quem deveriam ser prestados cuidados integrados de saúde, realçando‐se o aspecto da indivisibilidade da saúde através de uma gestão conjunta dos cuidados primários e hospitalares, o que consideram ter sido inovador à data da sua criação. Este modelo de organização apareceu, no entanto, ainda segundo os mesmos autores, como um dos modelos possíveis de integração de serviços, recordando que a ULS de Matosinhos correspondeu, de 1999 a 2007, a um exemplo isolado deste modelo de integração de cuidados primários e hospitalares já que, só depois dessa data, foram criadas outras ULS.
Relativamente à organização actual do sistema de saúde português, esta é caracterizada pela coexistência de três sistemas: o SNS, os subsistemas públicos e privados e os seguros privados de saúde, representando a Figura 26 as várias relações que se estabelecem entre as partes. No que diz respeito à organização da prestação de cuidados de saúde, esta traduz‐se numa rede de prestadores públicos e privados, assumindo o Ministério da Saúde o papel da coordenação e do financiamento. A maior parte da população, para além de poder recorrer ao SNS, pode optar ainda por ter um seguro privado de saúde e, parte da população portuguesa tem também a cobertura de um subsistema que, para alguns beneficiários, foi obrigatória1. Relativamente à prestação propriamente dita, esta pode ser assumida por prestadores públicos ou privados, e os modelos de pagamento variam entre pagamentos retrospectivos e prospectivos.
A principal fonte de financiamento do sistema continuam a ser os impostos, ainda que os pagamentos diretos correspondam já a uma parcela com algum significado no que diz respeito aos fluxos financeiros (Barros, Machado, & Simões, 2011). E é de esperar que o peso das despesas directas com a saúde aumente como observado nos últimos anos (de 27,4% em 2010, para 28,9% em 2011 e 31,7% em 2012) (Ferrinho et al., 2014), propondo a OMS uma taxa igual ou inferior a 15% (ACS, 2011b). A este respeito, Campos e Simões (2014) alertam para as possíveis consequências no estado de saúde das populações e no respectivo acesso aos cuidados de saúde, com este aumento do encargo financeiro com a saúde que recai hoje sobre as famílias portuguesas. Ainda segundo estes autores, a redução da responsabilidade pública com os encargos financeiros dos cuidados de saúde e o seu crescente financiamento pelas famílias pode pôr em causa princípios como o da universalidade e o da tendencial gratuitidade do SNS. 1 Até à aprovação do Decreto‐Lei n.º 234/2005, de 30 de Dezembro, a inscrição na ADSE era obrigatória para os funcionários e agentes da Administração central, regional e local, bem como de outras instituições e organismos públicos, passando a partir de então a ser facultativa para os funcionários e agentes que iniciassem funções após o dia 1 de Janeiro de 2006 (ERS, 2009).
Figura 26 ‐ O Sistema de Saúde Português (Barros & Simões, 2007)
“O Serviço Nacional de Saúde (SNS), enquanto organização, tem como missão assegurar que a população portuguesa recebe os cuidados de saúde de que necessita quando necessita” (Barros, 2011b, p.51), objectivo que, para este autor, não poderia ser alcançado por uma única via e que, exigiria, provavelmente, mudanças pontuais na forma como este está estruturado. Apesar de o SNS se ter vindo a desenvolver no sentido de garantir melhor acesso aos cuidados de saúde e mais equidade na prestação de cuidados de saúde, isso não significa que se deva manter imutável, nomeadamente no que diz respeito à sua organização já que, de acordo com A.C. Fernandes (2011), se não fossem implementadas mudanças, o sistema estaria condenado ao fracasso.
O SNS dirige‐se a toda a população residente em Portugal, acumulando, para o efeito, um conjunto de papéis, nomeadamente o de prestador direto de cuidados de saúde, bem como o de comprador e de financiador desses mesmos cuidados. Assume, na qualidade de prestador direto de cuidados de saúde, as actividades de cariz preventivo, bem como a gestão directa de hospitais, centros de saúde e outros cuidados diferenciados. Apresenta‐se também como comprador, quando comparticipa no custo de alguns medicamentos e quando contrata com terceiros a prestação de alguns cuidados de saúde. Trata‐se, concretamente, do sector convencionado da saúde, um modelo de aquisição de serviços de saúde pelo SNS que, desde os anos 80, se manteve relativamente inalterado no seu modelo de organização, funcionamento e financiamento até 2008, com a introdução, por exemplo nos cuidados de hemodiálise, do modelo de pagamento por preço compreensivo (ACSS, 2012a). Já em 2013, o regime do sector convencionado sofreu alterações relevantes com o Decreto‐Lei n.º 139/2013, de 9 de Outubro que, de acordo com a ACSS (2015) teve, entre outros objectivos, o propósito de flexibilizar o modelo de convenções nomeadamente no que diz respeito aos procedimentos, privilegiando‐se a figura do concurso ao modelo do contrato de adesão, passando ainda a ser permitida a celebração de convenções que abarcassem um conjunto integrado e/ou alargado de serviços. Este modelo passou ainda a permitir colocar todos os prestadores privados e do sector social perante regras e mecanismos de aplicação uniformes, procurando garantir‐se desta forma um “(…) ambiente de actividade transparente e com adequado funcionamento das regras de mercado.” Hoje, existem no SNS três níveis de prestação de cuidados de saúde: primários, hospitalares e continuados. O modelo está desenhado para que cada um destes três níveis assuma um determinado papel no processo de prestação de cuidados de saúde, que se deseja orientado para disponibilizar os cuidados de saúde necessários e quando necessários. Assim sendo, o SNS está organizado da seguinte forma: cada pessoa deve ter um médico de família, a quem recorre quando necessita de cuidados de saúde. Consequentemente, este médico trata a pessoa ou, caso seja necessário referencia‐a para outro tratamento especializado, nomeadamente no hospital. Em casos de emergência, é disponibilizado um acesso direto às urgências hospitalares. Depois da alta hospitalar, o doente regressa à comunidade e deve aí ser seguido de novo pelo seu médico de família ou, caso necessite, poderá usufruir de cuidados continuados, adequados às suas necessidades específicas.
A realidade, no entanto, era em 2011, percepcionada por Barros (2011b) como sendo bem mais complexa. Apesar de, teoricamente, o primeiro ponto de contacto do doente com o sistema público ser o médico de família nos cuidados de saúde primários, que deveria assumir o papel de gatekeeper, na realidade o que este autor sustentava que acontecia era que os doentes acediam directamente aos serviços de urgência hospitalares, uma prática que se considerou poder estar relacionada com a dificuldade na obtenção de consultas em determinadas especialidades. Já em 2004 se estimava que cerca de 25% das admissões nos serviços de urgência hospitalares não necessitavam deste tipo de cuidados (Barros et al., 2011).
Outro problema levantando pelo autor (Barros, 2011b) era o facto de nem todos os residentes em Portugal disporem de médico de família e, apesar de os movimentos de reforma nos cuidados de saúde primários (e.g. unidades de saúde familiar) e das experiências com novos modelos organizacionais nos cuidados hospitalares (e.g. unidades locais de saúde), não existia ainda a articulação necessária entre os centros de saúde e os hospitais. A estes dois níveis de prestação de cuidados foram ainda acrescentados os cuidados continuados, a jusante dos cuidados hospitalares.
Concluiu‐se, portanto, que existiam problema de acesso a algumas tipologias de cuidados de saúde e que a organização do SNS era caracterizada pela sua grande diversidade, diversidade essa que, segundo este autor (Barros, 2011b), deveria ser aceite e até estimulada se esta produzisse resultados satisfatórios, ou seja, que se deveria incentivar uma certa flexibilidade organizativa. Considerava ainda, a este respeito, que deveria existir uma maior liberdade para, em cada região, e face a situações concretas, se organizasse a prestação da forma mais favorável à respectiva população, ou seja, da maneira que melhor respondesse às suas necessidades e expectativas, o que não poderia deixar de ser acompanhado por um rigoroso desenho do modelo de pagamento às várias entidades prestadoras de cuidados de saúde do SNS.
Segundo A.C. Fernandes (2011), o sistema de saúde português evoluiu bastante nos últimos 30 anos no que se refere à universalidade, garantindo um razoável nível de cobertura no território nacional. No sector público, assistiu‐se a uma requalificação da rede de cuidados de saúde alargando‐se, inclusivamente, a cobertura em áreas como a saúde oral e dando início à implementação de respostas na área dos cuidados continuados, onde a parceria com o sector social teve um papel central. No entanto, considerava existirem muitas incertezas quanto ao futuro, nomeadamente no que respeita às garantias de acesso conquistadas até à data. Existiam, segundo este autor, de facto, dúvidas sobre a sustentabilidade económica e financeira do SNS face às adversidades, nomeadamente resultado das dificuldades económicas do país, para além de questões como o envelhecimento da população, a redução do índice de fecundidade, a inovação tecnológica e a difícil gestão das expectativas dos cidadãos. Haveria, por isso, de acordo com o mesmo autor, que introduzir mudanças o que, a não acontecer, teria como resultado a “(...) desintegração, desinvestimento e desagregação levando, no limite, à erosão do sistema, com consequências muito graves no médio e no longo prazo” (p. 87). Considerava ainda que seria fundamental planear, coordenar e integrar cuidados, ponderando rigorosamente os investimentos em recursos materiais e nas opções de gestão dos recursos humanos o que, a não ser feito, poderia conduzir a duplicações dispensáveis e ao incremento dos custos. Recordou ainda alguns aspectos que não deveriam ser esquecidos nos processos de gestão da mudança necessária, “(...) corrigindo no presente para garantir no futuro” (p. 90). Um dos aspectos estava relacionado com a necessidade de se definir com rigor os termos da relação entre os sectores público, social e privado, defendendo que o serviço público não poderia deixar de assumir a responsabilidade de gerar diversidade, competição e um padrão de resposta adequado, com o objectivo de utilizar melhor os recursos e elevando o padrão da qualidade na prestação. Outra questão a merecer o seu destaque foi a da
regulação no sector da saúde, defendendo, por um lado, que deveriam ser exigidos iguais critérios de controlo e qualidade, bem como o mesmo nível de exigência nos padrões de acesso, quer ao sector público quer ao sector privado e, por outro lado, que deveriam ser reforçados os mecanismos de contratualização, acentuando‐se assim o papel do Estado enquanto financiador e comprador de cuidados de saúde, constituindo esta uma oportunidade importante para introduzir medidas de desempenho.