C APÍTULO III
3. A INTEGRAÇÃO DE CUIDADOS DE SAÚDE E O SISTEMA DE SAÚDE PORTUGUÊS Este capítulo debruça‐se sobre o sistema de saúde português, com vista a elucidar sobre a questão da
3.5 Financiamento e contratualização dos cuidados hospitalares e dos cuidados de saúde primários em Portugal
Seguindo a tendência de outros países, em Portugal, a partir de 1996, iniciou‐se um processo de clarificação do papel do Estado financiador e do Estado prestador, com o começo do processo de contratualização, ou seja da realização de compromissos explícitos, tanto com as estruturas regionais de administração, como com os próprios dirigentes das unidades de saúde e até com os próprios profissionais. Estabelecia‐se assim uma nova lógica de distribuição de recursos no SNS assente em contratos, por oposição à lógica tradicional de actuação da administração pública. O contrato‐programa passou a ser, assim, a principal ferramenta a que a entidade pagadora passou a recorrer para incentivar os prestadores a responder às necessidades de saúde da população, onde estavam explícitos os objectivos de saúde a atingir, com uma maior responsabilização das administrações. Estes contratos constituíram assim a materialização do processo de contratualização e onde se passou a definir a relação a estabelecer entre o prestador e o pagador. A primeira agência de contratualização foi criada na região de Lisboa e Vale do Tejo em 1996, tendo sido criadas nos anos seguintes estruturas semelhantes nas restantes quatro regiões de saúde. Estas estruturas tinham como objectivos: identificar as necessidades da população, negociar objectivos e metas com os prestadores, monitorizar e acompanhar a actividade desenvolvida e avaliar os resultados alcançados (Escoval & Matos, 2009). Estes mesmos autores referiram, no entanto, que se verificou um desinvestimento no processo de contratualização a partir do ano de 2000, para ser retomado em 2005, quando se reconheceu de novo o valor deste instrumento e quando foram reactivadas as Agências de Contratualização e que, desde aí, terão vindo a ser adoptadas um conjunto de medidas que consideraram traduzir um claro investimento na continuidade deste processo. Destacaram‐se, nomeadamente, a negociação, celebração e a publicitação dos contratos‐programa estabelecidos entre a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), as ARS e os hospitais, passando também pelo estabelecimento de protocolos com Universidades
para o desenvolvimento de projectos de investigação nesta área, medidas associadas à própria reestruturação da ACSS, com a integração dos Departamentos de Contratualização.
Não se deixou, no entanto de considerar que, apesar de alguns desenvolvimentos organizacionais (e.g. a criação das ULS), a alocação dos restantes recursos financeiros do SNS continuava a ser feita numa base sobretudo histórica, mantendo os cuidados de saúde primários um ainda reduzido grau de autonomia. Daí se ter considerado importante dar força às USF e aos vários instrumentos relacionais com a administração, o que se considerou que seria crucial para a melhoria do desempenho deste nível de cuidados (Ferreira et al., 2010).
Relativamente à aplicação de fundos do SNS em Portugal, e atendendo à evolução da sua situação económico‐financeira, concretamente no período 2005‐2010, observou‐se (Tabela 5):
O peso das transferências para os hospitais, realçando a importância crescente das PPP a partir de 2007;
A diminuição, ainda que ligeira, do peso relativo das transferências para o domínio dos CSP, mesmo considerando o efeito ULS; A partir de 2007, o surgimento da nova realidade dos Cuidados Continuados Integrados (CCI), a assimilar cada vez mais fundos do SNS. Tabela 5 ‐ Aplicação de fundos do SNS (Ferreira & Teixeira, 2011)
Relativamente ao financiamento e contratualização dos cuidados hospitalares em Portugal, o modelo estava estruturado de acordo com os princípios gerais da Tabela 6 (GTRH, 2011).
Tabela 6 ‐ Princípios gerais do actual modelo de financiamento dos cuidados hospitalares em Portugal (GTRH, 2011)
Concretamente, no que se refere aos hospitais EPE, e tal como já foi referido neste trabalho, Ferreira e Teixeira (2011) salientaram que, nos processos de contratualização anual o Estado, comprador de serviços, teria reconhecido o excesso de custos em relação ao financiamento disponível para o nível de cuidados que se entendeu necessário adquirir, tendo‐se admitido, portanto, à partida, um défice anual no sector. Várias análises, aliás, evidenciaram que, por comparação com outros países, o SNS português estava subfinanciado, atendendo ao seu grau de abrangência e nível de serviço prestado (Ferreira & Teixeira, 2011). Neste contexto, considerou‐se ser fundamental salvaguardar as vantagens da introdução de formas inovadoras de gestão e da generalização da contratualização, privilegiando sempre a dimensão de equidade. Portanto, num cenário de reforço da contratualização e de mais autonomia organizacional dos prestadores em sistemas mais descentralizados, considerou‐se que seria fundamental desenvolver sistemas de incentivos e mecanismos de avaliação de desempenho adequados, bem como novas formas de regulação. Foi, inclusivamente, sustentado pela ACSS que o modelo de financiamento hospitalar implementado em 2003 se encontrava técnica e economicamente obsoleto, o que levou este organismo a propor em 2009 a sua actualização, com vista a ultrapassar alguns constrangimentos do modelo de financiamento vigente, assente em técnicas de clustering, que considerou estatisticamente desactualizadas
e que resultava em grupos de hospitais para efeitos de financiamento o que, do seu ponto de vista, estaria excessivamente orientado para a compra de produção, não incentivando devidamente a contenção de custos ou o alcance de metas da qualidade no SNS. O facto de os clusters de hospitais para efeitos de financiamento já não reflectirem a situação das entidades (em termos de estrutura de custos e complexidade), terá tido, para a ACSS, como consequência o subfinanciamento de algumas instituições, resultado da sua subclassificação para efeitos de financiamento, bem como o sobre‐financiamento de outras instituições, face às características de eficiência com as quais comparam. No caso particular das ULS, considerou‐se ter sido já possível introduzir inovações no modelo de financiamento, nomeadamente com a adopção em 2010 de uma metodologia actualizada de capitação com base no risco de morbilidade, que incorporava já, em paralelo, incentivos adicionais à contenção de custos, à sustentabilidade económico‐ financeira e à qualidade, cujos efeitos se considerou ser relevante avaliar (Ferreira & Teixeira, 2011). Não se pode deixar no entanto de ressalvar que, a partir de 2011, e como resultado da imposição de medidas restritivas do gasto público propostas no ME, a despesa pública em saúde tem vindo a diminuir. Concretamente, a despesa corrente pública em saúde diminuiu 1,1% em 2013, após registar reduções significativas em 2011 (‐8,2%) e em 2012 (‐9,9%) (INE, 2014). Eterá sido, concretamente nos hospitais que terão sido estabelecidas as medidas mais complexas e aplicadas um conjunto de medidas mais restritivas com vista à redução dos custos operacionais, assistindo‐se a uma redução da despesa nos hospitais públicos (‐7,7% em 2011 e ‐8,2% em 2012) (INE, 2014). Este esforço de redução de custos operacionais, com uma forte pressão sobre os gestores hospitalares, que terão visto reduzida a sua autonomia na gestão destas instituições, tem tido consequências nomeadamente na área dos recursos humanos e na área das compras (Campos & Simões, 2014).
No caso dos cuidados de saúde primários, pode‐se afirmar que têm ocorrido mudanças significativas desde a criação dos centros de saúde em 1971. Silva (2010) recordou o percurso feito e destacou, nomeadamente, a criação do Regime Remuneratório Experimental (RRE) dos Médicos da Carreira de Clínica Geral (Decreto‐ Lei 117/98, de 5 de Maio), cuja adesão era voluntária e que tinha como principal objectivo diferenciar o desempenho dos médicos, constituindo a sua remuneração também uma medida desse mesmo desempenho. Concretamente, a remuneração dos médicos que aderiram a este regime era composta por uma componente fixa ‐ em função da categoria e escalão do médico, bem como da dimensão da lista de utentes ‐ e uma componente variável, dependente de um conjunto de factores, nomeadamente da prestação de cuidados domiciliários, do alargamento do período de cobertura e da tipologia de utentes da lista (e.g. grávidas e crianças no primeiro ano de vida). Este modelo remuneratório acabou por inspirar mudanças posteriores nos modelos de pagamento aos profissionais das actuais USF. Em 1999 estabeleceu‐ se também um novo modelo organizativo para os centros de saúde, os designados “centros de saúde de terceira geração”, com uma matriz baseada na unidade de saúde familiar (Decreto‐Lei 157/99, de 10 de Maio) e em 2003 foi criada uma rede de cuidados de saúde primários, assente em princípios como o da
diversidade da oferta e liberdade de escolha, em que se previa a possibilidade de celebrar contratos de gestão de centros de saúde com entidades públicas, sociais ou privadas, com ou sem fins lucrativos (Decreto‐Lei 60/2003, de 1 de Abril), assente num diploma legal que acabou por ser revogado. A partir de 2005, a Missão para os Cuidados de Saúde Primários (Resolução do Conselho de Ministros nº 157/2005, de 12 de Outubro) assumiu a condução da estratégia de reconfiguração dos centros de saúde e implementação das USF (Despachos Normativos 9/2006, de 16 de Fevereiro e 10/2007, de 26 de Janeiro), dotadas de autonomia organizativa, funcional e técnica, compostas por equipas multiprofissionais (especialistas em medicina geral e familiar, enfermeiros, administrativos e outros). Tal como acontecia no RRE, foi aplicado aos profissionais da equipa nuclear um regime de suplementos associados a vários factores, nomeadamente: a dimensão da lista de utentes, ponderada pelas suas características; a contratualização anual de actividades específicas de vigilância a determinados utentes; o alargamento do período de cobertura assistencial; e carteira adicional de serviços. Passou ainda a ser obrigatória a avaliação de desempenho destas unidades, com recurso a indicadores, relativamente a ganhos de eficiência, ganhos em saúde e níveis de satisfação de utilizadores e profissionais.
Outro aspecto relevante, destacado por Barros (2009), no âmbito da ligação do hospital com o exterior, ao nível do financiamento, dizia respeito à referenciação de doentes. Concretamente, a referenciação de doentes dos cuidados de saúde primários para o hospital não implicava qualquer transferência financeira entre as parte o que, segundo Barros (2009), deveria acontecer, particularmente num contexto de evolução face a um modelo de pagamento prospectivo no pagamento aos hospitais e pagamento por capitação aos cuidados de saúde primários. Segundo este autor, quer pela via da integração funcional entre cuidados de saúde primários e hospitalares (e.g. ULS), quer através da replicação dos efeitos dessa integração, havendo um sistema de pagamentos de cuidados de saúde aos hospitais pelos cuidados de saúde primários, presumia‐se que ocorresse uma diminuição da taxa de referenciação. Do lado do hospital, era expectável que se verificasse um aumento do custo médio por doente tratado, mas também que acontecesse uma redução do número de doentes tratados neste nível de cuidados, efeito que, segundo este autor, deveria também ser reconhecido no próprio sistema de pagamento, para que não se avaliasse erradamente os ganhos de eficiência que poderiam ser alcançados com uma menor referenciação. Outra preocupação que este autor considerava que deveria existir, entre outras, relativamente ao sistema de pagamento prospectivo assente no sistema de classificação de doentes adoptado em Portugal (GDH), era a da necessidade de levar a cabo auditorias de classificação em GDH, por forma a garantir que não se assumiriam comportamentos de “ajustamento”, como o da reclassificação de doentes em tipos de episódios (GDH) mais compensadores financeiramente para o hospital.
Não se pode deixar ainda de recordar o recurso a modelos contratuais inovadores que têm procurado dar resposta a prioridades da política de saúde e que têm contribuído para aumentar a compreensibilidade do SNS, nomeadamente na área da saúde oral e na insuficiência renal crónica. No caso da saúde oral, foi a
partir de 2008 que, procurando melhorar o acesso à saúde oral de determinados grupos de utentes (e.g. crianças, mulheres grávidas em vigilância pré‐natal no SNS), foram‐lhes atribuídos cheques‐dentista com total liberdade de escolha do prestador que conste da lista de aderentes ao programa. Já na área da insuficiência renal crónica, também em 2008, se iniciou a aplicação de uma modalidade de preço compreensivo, considerado um modelo de gestão integrado da doença, em que prestadores públicos e privados passaram a concorrer por um preço compreensivo para a prestação de cuidados de saúde na área da diálise. A elegibilidade dos prestadores dependia, neste caso, do cumprimento de indicadores clínicos da qualidade (Ferreira et al., 2010).
Relativamente ao futuro, e tendo‐se assumido como evidente que a estratégia de financiamento de cuidados de saúde adoptada pelos países seria determinante nas opções de racionalização e de organização das instituições prestadoras de cuidados de saúde, era de esperar um investimento cada vez maior no processo de contratualização, ainda que se propusessem, de facto, alterações ao modelo vigente. Também Escoval e Matos (2009) tinham já sugerido mudanças, nomeadamente com a necessidade de existir uma maior responsabilização dos níveis intermédios de gestão, replicando‐se exemplos como o dos CRI. Genericamente, sustentou‐se que a lógica da contratualização externa que se tinha vindo a desenvolver em Portugal, com os hospitais e com parte dos cuidados de saúde primários (USF), devia ser transposta para o interior das organizações através da designada contratualização interna. Até porque, segundo as autoras, sendo este um modelo de gestão participado, e sendo os objetivos desagregados e contratualizados internamente, seria de esperar que a instituição ficasse globalmente alinhada, potenciando‐se assim a possibilidade de cumprimento dos compromissos assumidos. Esta já parecia ser, segundo as autoras, a realidade dominante nas USF. Considerou‐se, assim que, neste processo, era crítico, nomeadamente: a descentralização da estrutura interna; a liderança; a eficácia da comunicação organizacional; a adequação do sistema de incentivos e, transversalmente, os sistemas de informação. Para além da valorização das formas de contratualização interna, as autoras consideraram ainda que o modelo contratual vigente deveria ainda evoluir no sentido de uma análise mais prospectiva das necessidades em saúde das populações, do desenvolvimento de um sistema de recompensas e penalizações a nível gestionário e também para um processo de contratualização cada vez mais assente em resultados e não apenas em actividades e em aspectos de processo.
Ferreira et al. (2010) consideraram que o comprador, em Portugal, tinha vindo a depender maioritariamente da capacidade instalada de prestação de cuidados de saúde, não se centrando nas necessidades em saúde das populações, considerando assim estes autores que, entre as diversas formas de alocar recursos no sistema de saúde, as de base populacional seriam as que melhor traduziriam as necessidades e garantiriam a equidade. Estes autores não deixaram no entanto de tecer algumas considerações para o futuro da contratualização em Portugal, nomeadamente:
A importância de sofisticar as modalidades de pagamento na contratualização, dando prioridade a modalidades de pagamento mistas, considerando a capitação ajustada pelo risco, associada a uma componente variável de pagamento por desempenho; Assumir como prioridade o estabelecimento de um conjunto de indicadores standard, assente num sistema de informação robusto, que permitisse determinar com rigor e regularidade a evolução da carga de doença entre diferentes populações; a ausência destes meios torna difícil a avaliação do valor que é criado com o investimento nos cuidados de saúde e compromete a relevância do seu financiamento; A necessidade de publicitar os métodos utilizados e os resultados alcançados pelos prestadores, o que facilitaria a sua comparabilidade e a competição por melhores resultados; A premência de promover a participação activa dos cidadãos na gestão da sua saúde, bem como da autonomia das equipas de saúde na gestão de saúde das populações;
A importância de adequar o processo de contratualização, já relativamente consistente para os hospitais, à reforma dos cuidados de saúde primários, nomeadamente qualificando e profissionalizando a gestão no âmbito dos ACES;
O interesse em considerar novos modelos de gestão de doença, nomeadamente da doença crónica, que possam beneficiar de contratualização adequada a essas novas realidades;
Na ausência de um modelo ideal de contratualização, e com as devidas adaptações, considerar outras experiências, nomeadamente de outros países, que possam inspirar e contribuir para aprimorar o modelo actual, necessariamente em evolução.
Alves (2014) tece algumas considerações sobre o sistema actual de financiamento dos hospitais em Portugal, considerando que “(...) o sistema atual promove a ligação dos recursos à produção dos hospitais, incentiva a diferenciação e induz algum risco nos prestadores”(p. 294) e que se sustenta em metodologias seguras, não deixando no entanto de lhe apontar um conjunto de problemas, nomeadamente: a má utilização do modelo, por exemplo com cobertura de défices; a manutenção do pagamento ao acto no ambulatório1 sem penalização da inapropriação; a insuficiência no que diz respeito aos incentivos à qualidade e ao tempo de resposta e o potencial desajustamento no financiamento de alguns hospitais. Relativamente à contratualização, meio pelo qual se faz a distribuição do financiamento, o mesmo autor considera que subsistem dúvidas sobre a sua eficácia, chegando a apontar algumas falhas ao modelo, tais como: formas de pagamento mais baseadas na oferta do que nas necessidades; fraca aproximação à
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qualidade clínica; exígua consideração do benchmarking e da coordenação dos cuidados; informação assente em dados administrativos e falta de auditorias sistemáticas; bem como a falta de quantificação das necessidades em saúde. Relativamente à questão concreta da informação, o autor questiona a fiabilidade da mesma, muito pelas limitações das aplicações informáticas que são utilizadas, que segundo ele são cruciais para a necessária integração da informação sobre o doente nos vários serviços de saúde, informação essa que é decisiva para medir a eficiência e a qualidade dos serviços e também para melhorar o sistema de financiamento. Está assim, dadas as limitações apontadas pelo autor, condicionada a definição de metas, bem como a avaliação dos serviços e da gestão. Relativamente à definição de objectivos, o autor considera ainda que seria fundamental a existência de objectivos nacionais, para garantir um maior foco em metas comuns, bem como um mínimo de equidade, eficiência e qualidade. O autor aponta ainda fraquezas à monitorização, que afirma incidir maioritariamente sobre aspectos económico‐financeiros e sobre o tempo de resposta, considerando que esta “(...) está prejudicada por debilidades na tecnoestrutura e no sistema de informação (...)” e “(...) pela auditoria quase inexistente (...)” (p. 296) e realça ainda o problema da não difusão sistemática de informação sobre o desempenho dos hospitais, bem como a não existência de avaliação e consequências para a sua gestão.