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A inteligência utilitária e o método: o caso do possível

3. Circunscrevendo a vida entre instinto e inteligência.

3.2 A inteligência utilitária e o método: o caso do possível

Instinto e inteligência estão em relação direta com o que se pode compreender como elementos da individuação bergsoniana, assim como a matéria é parte necessária para a formação da ontogênese; elementos tais que convergem para a realização da duração como um devir que não se opõe mais ao ser. Como diz Bento Prado: “A teoria da vida e da adaptação à matéria não se faz, portanto, sob o signo da ‘reatividade’; ao contrário, a metafísica da vida e da matéria nasce de uma descrição da ‘atividade’ e da espontaneidade do ato de instauração; a afirmação é o dado primário” (Idem, p. 185). Isso pode explicar porque Bergson lança-se numa empreitada crítica ao comprometimento da ciência e da metafísica195 como um tipo de pensamento que é interessado na origem, no ato originário da inteligência, da matéria e da vida, ao invés de se instalar no processo, 195 No quarto capítulo de EC, Bergson defende a tese sobre o mecanismo cinematográfico da inteligência, a partir do qual será possível analisar a construção do devir em diversas passagens da história da filosofia. Bergson anuncia a problemática desenvolvida no capítulo IV como “ilusões teóricas” que advêm da submissão da razão pela condição utilitária da inteligência. Disso decorre que os problemas da metafísica como o vazio, o nada, a desordem e o negativo podem ser submetidos ao julgamento de uma inteligência comprometida em imobilizar o devir. Como se a história das doutrinas operasse o devir a partir de uma razão submissa ao utilitarismo da inteligência, aplicando conceitos que pouco traduzem a variação contínua da duração. Tais ilusões seriam investigadas pelo filósofo na intenção de, por um lado, afastar objeções e mal-entendidos decorrentes da limitação da totalidade da consciência a estados psicológicos, e, por outro, apresentar a duração como o “próprio tecido de que a realidade é feita”1 A inteligência seguindo a tendência de tomar por instantâneos imóveis compromete o devir e a especulação sobre o real: “ do devir, percebemos apenas estados da duração, instantes, e, mesmo quando falamos de duração e de devir, é em outra coisa que pensamos”(EC, tr. p. 296). Visto que a ação pretende ‘superar’ algo do qual nos privamos, tenderíamos naturalmente a ‘preencher’ o vazio desta falta, o que configuraria a ilusão da passagem do pleno para o vazio, da ordem para a desordem. “Assim como passamos pelo imóvel para ir para o movente, do mesmo modo nos servimos do vazio para pensar o pleno”2 (EC, tr. p. 297). A ideia de desordem é inteiramente prática: “Vamos da ausência para a presença, do vazio para pra o pleno, em virtude de uma ilusão fundamental de nosso entendimento” (EC. tr. p. 298)3. Semelhante equívoco recai sobre a noção de nada, como se a inteligência não reconhecesse a impossibilidade do vazio, pois “não há vazio absoluto na natureza”. (Idem, p.304)

na atividade mesma do pensamento e da duração. A ontogênese é favorável a reconhecer o processo do que ainda não se individuou, e não do já individuado. O esforço estéril da busca pela origem sucumbe metafísica e ciência a equívocos inconciliáveis, tal como a ideia do nada. Ilusão que seduziu as filosofias das formas e das ideias. Eis que a emancipação da filosofia dos falsos problemas oriundos de uma inteligência utilitarista começa pela gênese da própria inteligência. A crítica ao utilitarismo libera o pensamento para realizar a gênese de sua própria individuação. Tudo se passa como se fosse necessário ao pensamento pensar ele mesmo antes de se debruçar sobre outras individuações da qual o pensamento também é parte. Veremos em momento oportuno as semelhanças deste percurso em Simondon, ao propor a individuação psíquica como forma de conhecimento de si e de outras individuações. Se for possível uma gênese da inteligência, sua descrição deve sempre acompanhar a experiência continuamente nova de uma realidade que está sempre em vias de se fazer, e de uma inteligência que deve superar sua condição utilitarista.

Vale destacar o quão emblemático é o debate sobre o método da intuição em Bergson. Valorizamos as leituras que privilegiam o método fundamentalmente como uma atividade problematizadora, cuja tarefa primeira é a resolução de problemas, como propõe Deleuze. “Bergson mostra bem que a inteligência é a faculdade que coloca os problemas em geral [...]. Mas só a intuição decide acerca do verdadeiro e do falso nos problemas colocados, pronta para impelir a inteligência a voltar-se contra si mesma”196. A relevância da crítica aos falsos problemas atravessa toda a obra de Bergson e articular-se com os eixos fundamentais do método da intuição. Além disso, a denúncia de falsos problemas articula-se com as variadas formas de apresentação da duração. O método de Bergson também é crítico, pois persegue um novo problema, ao mesmo tempo em que denuncia os falsos. O

problema do possível em O possível e o real seria a mais exímia força da face utilitarista da inteligência.

O possível e o real parece sustentar-se numa estrutura

polissêmica de onde se pode extrair diversos modos de interpretá-lo, à luz de linhas indispensáveis do bergsonismo. Porém, em nosso caso limitamo-nos a apresentar aspectos do texto que nos permitam aproximá-lo da problematização sobre a questão do surgimento de novas formas de vida. Neste sentido, Jankélévitch inaugura uma interessante interpretação ao propor a distinção entre possível lógico e possível orgânico.

Em primeiro lugar, poderíamos extrair da crítica ao possível um entrave inicial, aquele do pré-conceito que comungam filosofia e senso comum, o qual o possível representa uma condição precedente ao acontecimento; isto é, o acontecimento deveria, retrospectivamente, ser considerado como possível, e que, a partir da necessidade ou contingência, o acontecimento possível poderia realizar-se. Os hábitos intelectuais, como diz Bergson, nos forçam a dizer que um fato era possível até que ele se realizasse, como se o peso do real fosse adicionado ao possível para autorizar o acontecimento, deixando para trás tantos outros possíveis abortados, para sempre confinados a um tipo de realidade subterrânea, nunca atualizada. E, justamente o que filósofo reclama dessa visão, é que o real não pode ser reduzido às opções de possíveis.

No texto tardio de O Pensamento e o Movente (1930)197 esta versão do senso comum é representada pela sagaz referência ao contexto jornalístico de uma entrevista concedida a respeito do futuro da arte dramática no pós-guerra. Num tom irreverente Bergson conta- nos sobre o espanto de seu interlocutor quando ouviu do filósofo: “se soubesse o que será a grande obra de amanhã eu o faria”198. Bergson parece querer chamar a atenção sobre o modo como os hábitos intelectuais se vinculam a formulações de sentenças impróprias que mantêm o futuro preso a estáveis possibilidades anteriormente configuradas. Nas palavras do filósofo tudo se passa como se a arte futura estivesse guardada num “armário de possíveis”. Com o intuito de reverter essa compreensão, o possível bergsoniano autorizaria que ele estivesse ligado uma declinação expressa pelo futuro anterior, na língua francesa, equivalente ao nosso futuro do pretérito. Neste caso, uma obra de arte não é possível, ela teria sido possível apenas caso ela se realize. Portanto, não é o possível que precede o real, ou seja, o possível não se realiza como uma escolha entre outros possíveis, ele se efetiva na medida em que o acontecimento é realizado. Ao desmontar este pré- conceito Bergson neutraliza seu efeito diante das pretensões de uma espécie de futurologia instaurada pelo senso comum e largamente difundida entre variadas filosofias. Neste caso, uma obra teria sido 197 Vale mencionar que este texto é uma versão desenvolvida em 1930 de uma conferência pronunciada em Oxford. Essa versão definitiva ainda carrega a marca de ser o texto mais tardio de O Pensamento e o Movente onde os demais textos são datados entre 1903 a 1922. Esse fato histórico anuncia uma questão intrigante no bergsonismo. Porque este texto tardio é o texto que abre a coletânea, imediatamente na sequência das duas introduções? Uma resposta poderia ser esboçada levando em consideração que seu lugar estratégico na coletânea dos textos ditos metodológicos se afirma em razão de seu movimento interno, num estilo extasiante na construção de um texto curtíssimo, de apenas quinze páginas, levando ao limite a exploração basculante entre metafísica e as práticas da filosofia bergsoniana da experiência e do tempo que permeiam toda a coletânea. Apesar do objeto manifestadamente especulativo que o sustenta no exame das categorias da modalidade, o ensaio também se inscreve no esforço renitente do filósofo para aproximar a filosofia da vida. Com efeito, O possível e o real aparecerá como o anúncio dos problemas correntes nos demais textos ditos metodológicos de O pensamento e o movente, notadamente em A

percepção da mudança e Introdução à Metafísica, e retoma também passagens

fundamentais de A Evolução Criadora sobre o vazio e a desordem, criação, fabricação e individuação.

possível caso não existisse nenhum obstáculo que a impeça de ser

realizada. A futurologia não interessa a Bergson porque a ilusão retrospectiva não explica a raiz do acontecimento. A genealogia do possível está comprometida com o mecanismo cinematográfico da inteligência que recorta o real para acomodar os mais obscuros ou ingênuos propósitos. Ao se referir à produção shakespeariana, Bergson diz: Hamlet, “seria sem dúvida possível antes de ser realizado, se entendemos por isso que não houvesse obstáculo insuperável para sua realização”199. Este é o sentido do possível como ausência de impedimento200. De todo modo, isso não deixa de ser um truísmo, uma verdade tão trivial quanto afirmar a existência de uma obra como Hamlet. Ou seja, o possível não explica o real nem no passado nem no futuro. Quando muito, o possível nos informa que o real tal como ele se apresenta é a expressão de uma realização livre de impedimentos. Em suma, o possível não é uma condição apriorística.

A partir desta problematização uma segunda face da crítica bergsoniana recairia diretamente sobre uso dado à representação pela filosofia. O alvo dessa crítica está no modo como a representação é utilizada para definição dos indivíduos, ignorando a indeterminação à qual todo ser vivo está exposto. A representação é a forma mais bem acabada do mecanismo cinematográfico da inteligência, a partir da qual se impõem limites muito aquém da realidade do próprio indivíduo. Este, como ser vivo, possui uma realidade infinitamente mais vasta do que a representação pode supor. Por isso, a geração de um esforço não é apenas uma chave de interpretação ligada ao método, na decifração dos fenômenos da vida. O esforço também está presente na dinâmica vivente, e com ele se introduz o máximo de indeterminação na matéria. Apoiando-se no que há de estável e regular no fluxo do real, a representação só poderia oferecer uma imagem enfraquecida diante da riquíssima elaboração que constitui o dinamismo vital.

199 Idem, p. 112, 200 Idem.

Isso posto, recorremos a uma questão que ressoa continuamente no bergsonismo, a partir do tilintar de A Evolução

Criadora, qual seja, a crítica à inteligência subsistente na distinção entre

organização e fabricação. Com efeito, a inteligência, sóbria operadora da ação se empenha na formulação do possível, para fazê-lo funcionar como uma espécie de operação necessária para a dita invenção do real, a qual fundamentaria a larga base para distintos projetos metafísicos.201O filósofo parece levar ao limite sua crítica: “originalmente, pensamos apenas para agir. É no molde da ação que nossa inteligência foi fundida”202. Na história da filosofia, o finalismo e o mecanicismo comungam o mesmo fundamento; seja para realizar um plano que deve se enquadrar nos moldes da causalidade, seja para o manuseio de elementos combinados para a realização de um modelo. Nesta crítica encontraremos a clivagem fundamental entre fabricação e organização. A marca da fabricação é aderente aos processos da inteligência; gérmen fecundado no encontro das tendências para realizar os pressupostos da causalidade. Marca esta que atende também ao pensamento do progresso e do desenvolvimento203, ou ao “geneticismo criador”204, nas palavras de Jankélévitch, pelo qual os

mistérios do ser seriam esclarecidos em função de uma decupagem gradual.

A noção de possível lógico é interessante para compreender a fundo a crítica bergsoniana. Tal noção se afasta de qualquer experiência atual ou particular, criando um mundo povoado por entes matemáticos. 201 BERGSON, EC, p. 48 [tr. p. 52] “Nossa razão, incuravelmente presunçosa, imagina possuir por direito de sangue ou de conquista, inatos ou aprendidos, todos os elementos essenciais do conhecimento da verdade. Ali mesmo onde confessa não conhecer o objeto que lhe é apresentado, crê que sua ignorância verse apenas sobre a questão de saber qual de suas categorias antigas convém ao objeto novo”.

202 Idem, p 44 [ tr. p. 48.]

203 JANKÉLÉVITCH, op. cit. p. 201

204 O sentido dessa proposta se fortalece quando lemos em EC: “Platão foi o primeiro a erigir em teoria que conhecer o real consiste em encontrar sua Ideia, isto é, fazê-lo entrar em um quadro preexistente que já estaria a nossa disposição - como se possuíssemos implicitamente a ciência universal. Mas essa crença é natural para a inteligência humana, sempre preocupada em saber sob que antiga rubrica irá catalogar todo e qualquer objeto novo, e em certo sentido se pode dizer que nascemos todos platônicos”, Op. cit. p. 49 [ tr. p. 53.]

O tempo é o primeiro ponto de acesso a esta realidade improvável; o instante não passa de um artifício pelo qual passamos a imobilizar o tempo, por isso, as distâncias, deslocamentos e contrações de trajetórias não passariam de virtualidades fantasmáticas. Mais uma vez, a célebre crítica ao paradoxo de Zenão ilustra um argumento, já que as infinitas divisões da trajetória, pelas quais Aquiles deve percorrer, não passa de um artifício que tende a imobilizar de uma só vez o tempo o movimento. É somente dentro do possível lógico que Zenão pode erigir seu paradoxo, o qual funciona como um consentimento, uma permissão que precisa livrar-se de todos os obstáculos. Em suma, o possível lógico é um tipo de abstração ideal, como se supusesse a posteriori o real constituído a partir das semelhanças com este ideal. Por isso, ele se designa como retrospectivo, já que isto denuncia uma ilusão da inteligência. Com outras palavras, apoiando-se sobre a realidade atual, o possível lógico extrai uma variante anterior, projetada pela inteligência interessada em explicar o tempo e o movimento. Eis uma fonte dos falsos problemas que entorpecem a metafísica que se funda na semelhança abstrata. Nas palavras de Jankélévitch:

“o possível é um ser ambíguo que está, de algum modo, cavalgando sobre o Nada e sobre Alguma coisa. E na possibilidade lógica é o Nada que prevalece. O possível é alguma coisa que não é nada. A ideia de possível exprime apenas que este nada poderia existir, que nenhum obstáculo lógico ou teórico se opõe a sua existência; e

isso é uma permissão[...]”205.

Ora, as consequências dessa arbitrariedade fundem as modalidades do possível e do real; o possível sendo a coisa apenas pensada, menos seu modo de existência real, e o real sendo a coisa mesma, que se mantém em dependência das condições de possibilidade do pensamento. Este é o círculo do possível modal que Bergson quer se afastar.

Por fim, como nossas últimas considerações sobre o caso do possível encontramos soluções definitivas da coexistência das multiplicidades a partir da chave do possível orgânico na letra de Jankélévitch, para quem “pode-se dizer que a infância da ação é mais rica ainda que a adolescência da ação”. O autor valoriza o que ele denomina de pensamento larvário explorado por Bergson. A possibilidade orgânica é uma coisa que existe, diferente do abstrato lógico, como as potências seminais de um adulto contido embrionariamente no vivo; “um possível que devora suas próprias tendências quando se embebedam de realidade, tal como a juventude contém a impaciência e o entusiasmo da vida”.206