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Diferenciação e individuação

4. Elã vital e a criação de novas formas

4.2. Diferenciação e individuação

A diferenciação é menos a divisibilidade da duração e mais o processo pelo qual os elementos, inicialmente semelhantes, adquirem diferenças próprias e específicas na formação de um indivíduo. Ou seja, a diferenciação é a potência de singularização, de criação e emancipação do indivíduo dentro do próprio processo de individuação do qual ele emerge. A individuação bergsoniana é um processo pelo qual o indivíduo é levado incessantemente a divergir de si. Ao fim e ao cabo, a evolução criadora do filósofo é uma evolução em feixe e não uma evolução retilínea. Uma evolução que persegue a forma singular de cada espécie e em cada individuo. A relação da duração e da matéria se parece muito mais como o movimento das incessantes vibrações da matéria do que como categorias analíticas aficionadas pelo enquadramento mecanicista das teorias da evolução.

Desde Matéria e Memória a relação entre estes termos se coloca de maneira mais complexa do que um simples dualismo. A relação tensão-extensão, entre matéria e memória expressa a mediação do movimento que oscila entre os dois polos. São movimentos intensivos o suporte para as vibrações e tensões presentes na matéria. Acrescenta-se que cada vibração constitui um processo indivisível, o que prolonga a matéria para além dos limites da percepção, e o que ocasiona a coincidência com os momentos distintos das durações. O que implica dizer que o filósofo reconhece diferença entre as diferenças, mas não limites definidos na matéria. Em suma, a matéria como consciência, mesmo num nível mais diluído, garantiria a ela o poder de compartilhar uma diferenciação entre os diversos níveis de tensão da matéria, e não apenas uma repetição encenada num espaço homogêneo. Sem descartar sua natureza extensiva, Bergson oferece à matéria a ação do passado num presente que não para de recomeçar. A vida do espírito é uma oscilação perpétua entre dois limites extremos.

Esta análise está contida no curso de Canguilhem sobre a

Evolução Criadora, reeditado em razão da publicação das Ouevres de

Canguilhem. Este comentário é uma oportunidade de reconhecer que a filosofia bergsoniana tem um lugar de destaque na produção de Canguilhem enquanto historiador das ciências e filósofo. De fato, ler A

Evolução Criadora a partir da interpretação de Canguilhem inscreve na

obra uma amplitude atemporal. O processo de individuação é explicado a partir da relação entre matéria e duração e na ação criadora de singularidades e divergências.

No curso, Canguilhem mostra que a gênese da matéria não se localiza somente em A Evolução Criadora. O trabalho de interpretação da noção de materialidade em Bergson deve compreender toda a obra precedente e deve ser acompanhada pela análise sobre o tempo e a duração. Com efeito, a leitura de Canguilhem estimula um olhar sistêmico para o bergsonismo, o que a coloca distante de um mero comentário para se posicionar como uma interpretação que tem a força de oferecer uma nova mirada para esta filosofia. No caso da análise sobre a matéria e duração, o trabalho se faz em dois tempos. Primeiro, a materialidade sob a relação com a duração e, em seguida, a materialidade sob a relação com extensão. A interpretação segue o modelo do dualismo metodológico de Bergson para revelar passo a passo como matéria e duração mantêm uma relação absolutamente necessária. O movimento basculante entre o plano da ação impulsionada pela vida sensório-motora e o plano dos sonhos, devaneios por onde se estabelece a vida do espírito, enquanto manifestação da memória pura, estão implicados um no outro. Esta fórmula só é completa quando seguimos a passagem233 de Matéria e

Memória para A Evolução Criadora. Nesta passagem, Canguilhem

aposta ser necessário observar que, desde Matéria e Memória, a oscilação é continua entre os limites extremos234. Mas a oscilação aqui

233 CANGUILHEM, Ouevres, tome IV, p. 148-166 234 Idem, p.151

não quer dizer simplesmente alternância, como se um polo anulasse o outro. Na individuação bergsoniana o prolongamento de um estado a outro é contínuo. Não existem estados isolados, mas estados que se prolongam uns nos outros. O mesmo se passa para a matéria. Isolar a matéria é um recurso necessário à ciência, mas se a consciência e a memória estão presentes na matéria, mesmo num grau mínimo, existe também um prolongamento da matéria. Esta observação é feita por Canguilhem ao analisar os prolongamentos do estatuto da matéria entre as duas obras centrais da produção bergsoniana.

Descrever uma noção de matéria e duração articuladas pelas novas possibilidades de se pensar o indivíduo em ciência e filosofia, implica em prolongar essas noções para refletir os limites do indivíduo. Limites estes que devem ser alargados, expandidos a favor de um processo permanente de preservação da vida. Note-se que preservar a vida não significa presertre consciência e universo material. Esta problemática é emblemática nas proposições de autores da virada do século XIX, notadamente em Whitehead, Gabriel Tarde e Nietzsche onde vemos um esforço de articulação entre a unidade cosmológica, consciência e a multiplicidade material. A inquietação destes autores vem ao encontro de uma compreensão sobre a necessidade de rearticulação entre filosofia e vida, que desponta como um dos debates emergentes da filosofia contemporânea. No caso de Bergson, trata-se de atribuir ao universo material a mesma natureza que o eu (moi). Numa conferência em 1908, Bergson assume o risco do projeto: um dos objetos de A Evolução Criadora é mostrar que o Todo [Tout] é (...) da mesma natureza do eu [moi], e que nós nos apossamos por um aprofundamento cada vez mais completo de nós mesmos?.”235 O quadro geral da constituição do universo material em conexão com a consciência começa a ser esboçado no Ensaio a partir da distinção das multiplicidades como vimos anteriormente.

Quando nos voltamos para as problematizações de A Evolução

Criadora deparamos com uma definição primordial de duração: ela é,

como mencionamos anteriormente, uma heterogeneidade. Por isso, para falar em duração, em termos de heterogeneidade, acreditamos ser necessário ir às primeiras formulações da teoria das multiplicidades descritas no Ensaio. Em linhas gerais, uma heterogeneidade pode ser definida filosoficamente como a produção de um conceito plural, instaurador da diferença236. A relação entre duas multiplicidades repousa sobre a relação entre o pensamento e a matéria. E ela repousa ainda sobre um termo crucial para uma filosofia da individuação, a saber, a diferenciação.

Com efeito, esse duplo sentido do múltiplo, qualitativo (substantivo, da duração e da mudança) e quantitativo (materializante, atual, discreto e descontínuo) transformam inteiramente a questão da ontologia da vida. Tornou-se consenso entre os estudiosos de Bergson que esta dualidade corresponde primeiramente a um problema metodológico237. Porém, acreditamos que ela também corresponde a uma tentativa de escrever a ontologia da vida presente no terceiro capítulo da Evolução Criadora. Este parece conter o gérmen da posteridade do filósofo comandando também a atração da filosofia contemporânea ao problema da vida, por meio da noção de forma e de matéria, e, por conseguinte, de individuação.

Em outros termos, trata-se de uma consideração da duração como uma totalidade que se transforma perpetuamente. No âmbito da teoria das multiplicidades os dois sentidos da multiplicidade correspondem aos dois sentidos da duração. Por um lado, explora-se a multiplicidade quantitativa, entrópica, material, fonte da unidade e da representação na inteligência, e de outro a multiplicidade qualitativa, 236 Deleuze em O Bergsonismo considera que o essencial na filosofia de Bergson é distinguir dois tipos de multiplicidade tal como aparece no Ensaio: a multiplicidade qualitativa - heterogênea e intensiva - e a multiplicidade quantitativa - homogênea, extensiva e numérica. Cf. também o ensaio de Deleuze que marcaria definitivamente a inscrição da diferença no seio da duração bergsoniana em A concepção da diferença

em Bergson, in A Ilha Deserta. Iluminuras, São Paulo, 2006, pp. 47.

virtual, em devir. Este duplo sentido do múltiplo oferece-nos uma primeira observação: uma multiplicidade já está toda feita (quantitativa) e a outra está se fazendo (qualitativa). A multiplicidade da justaposição (quantitativa) é uma multiplicidade do particípio passado, uma multiplicidade da língua já dita, em que a matéria apodera-se da duração, e por onde a inteligência necessariamente tramita. Já a multiplicidade qualitativa é dada pela criação indistinta, caracteriza-se pelo jorro de imprevisível novidade, como diz Bergson.

Diante disso, resta-nos uma questão incontornável: como compreendemos esta dualidade? De pelo menos três maneiras; a primeira é que existe uma passagem entre a multiplicidade qualitativa multiplicidade e a quantitativa. Esta passagem é caracterizada pela criação. Caracteriza-se pela criação imanentista da vida, como acontece no problema da repetição238 e na diferença, no que concerne à transmissão de uma característica por meio de hereditariedade. Esta dinâmica faz da vida uma instância da repetição, porém, ao mesmo tempo, vê-se que a evolução biológica não é somente a repetição do mesmo. Trata-se de uma queda de entropia que enfraquece a potência da duração criadora, mas é uma queda necessária, pois ela permite a criação da forma na matéria.

Um outro modo de considerar a multiplicidade, e que acreditamos estar diretamente ligado aos propósitos de nosso, estudo diz respeito à coexistência entre os dois tipos de multiplicidades. São coexistentes sob o modo da divisão, da diferenciação, acompanhada imediatamente de sua entropia, da atenuação do elã vital. Por isso, sob esta perspectiva podemos dizer que se trata de uma posição monista, insistindo sobre o fato de que as duas multiplicidades coexistem sempre que a criação se efetiva. Neste caso, a relação entre duração e matéria não é somente reduzida a uma atenuação; não se trata somente de uma inversão, se relaciona também a uma coexistência vibrante de

238 O tema da repetição na dinâmica da organização vital aparecerá já no primeiro capítulo de A Evolução Criadora. pp. 33-36 [ tr. pp 36-40]

mudanças. Bergson apresenta muitos elementos que sustentarão essa leitura monista, e, de fato, A Evolução Criadora parece servir para medir o contraste desses dois valores simultâneos, que envolvem contração e distensão, criação de novas formas e atenuação do elã vital.

Esta dualidade da multiplicidade implica diretamente uma terceira leitura no contexto da crítica à inteligência dinamitada no terceiro capítulo de A Evolução Criadora. Leitura que consiste em dizer que a diferença entre multiplicidade quantitativa - que responde à espacialização material - e a multiplicidade qualitativa - da continuidade e da criação - não são mais do que os dois modos de leitura do impulso vital. Trata-se, por isso, da diferença entre a inteligência sensório- motora que estabiliza o devir, e a multiplicidade da duração capaz de apoderar-se do impulso criador, na sua potência contínua e indivisa. Em outros termos, pode-se considerar essa diferença como dois modos de atuação da inteligência, um que recorta e espacializa os objetos de análise, e um outro que tende a se misturar com a multiplicidade heterogênea que a envolve desde sua formação.

Mas a consciência e a inteligência animada por ela são apenas um caso entre as direções por onde a vida se espalha. Com efeito, a diferenciação é o resultado do contato do elã com a matéria. O que torna o indivíduo um ser único, singular, é a potência do elã e suas tendências que introduzem na matéria a chance de criação de uma nova forma orgânica, mas também psicológica. A forma humana não é um caso privilegiado nesse permanente processo de diferenciação.

“[…] seria um equívoco considerar a humanidade, tal como nós a temos diante de nossos olhos, como pré- formada no momento evolutivo. Não se pode nem mesmo dizer que ela seja o ponto de chegada da evolução inteira, pois a evolução se realizou em várias linhas divergentes e se a espécie humana está na extremidade de uma delas, outras linhas foram seguidas, com outras espécies na

ponta. É num sentido bem diferente que tomamos a

humanidade como a razão de ser da evolução”239.

As séries animal e vegetal são igualmente preenchidas pelas pausas e indeterminações da diferenciação. Todavia, a individualidade é a ponta de um processo mais vasto que acontece na espécie inteira; a diferenciação é como se o resultado em cadeia desse uma pressão pela resolução de problemas que vida impõe. A vida oscila entre um polo individualizante e um polo associativo, onde “a individualidade aparente do todo é composto de um número não definido de individualidades virtuais, virtualmente associadas.” (EC, tr. p. 283). Isso quer dizer que o movimento de diferenciação individuante se conecta a um movimento de associação, seja na formação orgânica, seja na organização social ou coletiva. Ou seja, o elã que atravessa as mais variadas formas de vida é capaz de interferir a um só tempo no processo de individuação tanto na singularidade individual quanto na coletiva. O que se vê na condição individual é a disposição de afetar-se pelo elã e projetar este impulso ao redor de sua individuação.