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A duração entre as multiplicidades

2. A gênese do tempo na teoria das multiplicidades

2.1 A duração entre as multiplicidades

O risco de oferecer considerações quantitativas às percepções qualitativas é iminente. A teoria das multiplicidades definida no segundo capítulo do Ensaio responde à necessária distinção entre os dois tipos de multiplicidade. O objetivo desta formulação circunscreve a estratégia utilizada pelo filósofo para desfazer falsos mistos. As multiplicidades não podem ser submetidas ao mesmo processo de observação, análise e delimitação. Em outros termos, a matemática e a física mecânica não dispõem do método mais adequado para observar os dados imediatos da consciência. A multiplicidade é uma noção matemática embutida na definição numérica. Esta observação elementar extraída da matemática se prolonga na investigação dos estados de consciência e na descoberta de um outro tipo de multiplicidade, a qualitativa, ligada ao psiquismo e à dinâmica vital. Trata-se de emprestar a multiplicidade quantitativa para o reconhecimento da multiplicidade qualitativa que responderá pela operação de diferenciação presente nos processos vitais. Vale ressaltar que as proposições bergsonianas são a expressão de uma filosofia que quer se aproximar das evidências da experiência real a partir da qual corpo e pensamento se percebem enlaçados pela duração. Por isso, os estados de consciência são a primeira evidência da multiplicidade qualitativa; é a capacidade do pensamento pensar a si mesmo que torna a multiplicidade dos estados de consciência um tipo de prova sobre a existência de uma realidade não assimilável pela física-mecânica.

Além disso, quando submetida ao julgo da representação, como acontece na psicologia da Gestalt, sua exteriorização ou objetividade por meio da linguagem é feita ao custo de transformar o que havia de heterogeneidade em homogeneidade. Por isso, estaria em jogo não apenas o risco iminente de transformar as multiplicidades dos estados de consciência em coisas. De fato, esta é uma crítica que subjaz à psicologia71, que tenderia a perceber os estados de consciência como objetos definitivos. Mas, existiria algo de mais surpreendente, que nos leva à questão: o que garantiria à multiplicidade qualitativa atualizada pela consciência a preservação de suas qualidades próprias como continuidade e sucessão indistinta? Observemos a passagem abaixo:

“[...] seria preciso admitir duas espécies de multiplicidade, dois sentidos possíveis da palavra distinguir, duas concepções, uma qualitativa e outra quantitativa, da diferença entre o mesmo e o outro. Ora, esta multiplicidade [qualitativa], esta distinção, esta heterogeneidade, não contém o número senão em potência, como diria Aristóteles; é que a consciência opera uma discriminação qualitativa sem qualquer preocupação em contar as qualidades ou até produzir várias”72

Vê-se, então, que a consciência, quando atualiza o processo de penetração contínua dos próprios estados de consciência, o faz por meio de uma distinção qualitativa; parece mesmo que a própria consciência se mistura a esses estados. Parece ser o caso de observar que a própria consciência e os estados que a ela são subjacentes se coadunam na formação da multiplicidade qualitativa73. Trata-se,

71 Cf. BERGSON, E, pp. 117-120, tr. pp. 121-124. 72 Idem, p. 90 tr. p. 95. [grifos do autor]

73 Vemos que Worms se aproxima desta concepção, na medida em que afirma a ideia de multiplicidade qualitativa como “o efeito produzido por um conjunto indivisível e indistinto de elementos [...] Como um conjunto de elementos, trata-se de uma multiplicidade; enquanto indivisível e indistinta, ela forma, no entanto, uma unidade, por um vínculo que está numa realidade de ordem sucessiva e temporal”. Le

efetivamente, de considerar a multiplicidade qualitativa como o resultado da mistura composta pela consciência (unidade com vínculo na sucessão espaço temporal), e pelos próprios estados de consciência (conjunto indivisível e indistinto). Desse modo, a consciência ganha uma centralidade a respeito da compreensão da multiplicidade qualitativa. O atualizar e o diferenciar-se de si mesmo em sua heterogeneidade se realizam na medida em que esta multiplicidade se envolve com a consciência. Compõe-se, deste modo, um jogo em que atualização e diferenciação, ora se afastam ora se aproximam da consciência.

Este jogo de aproximações insere a multiplicidade qualitativa na problemática objetivo/subjetivo, subscrita na própria composição da multiplicidade qualitativa. Esta análise é inteiramente transposta para

Matéria e Memória, como destaca Deleuze em O Bergsonismo. O

subjetivo tende a encontrar-se com a multiplicidade heterogênea e com o virtual. Mas o encontro só pode ser admitido por meio da atualização, parte indissociável do processo que compõe o contínuo da multiplicidade qualitativa. Ou seja, a multiplicidade qualitativa só tem validade para a consciência se ela é atualizável, se ela se realizar enquanto um virtual que encontra sua face no real. Vale notar a apreciação de Deleuze:

“Há outro sem que haja vários; número somente em potência. Em outros termos, o subjetivo ou a duração é o virtual. Mas precisamente é o virtual, na medida em que se atualiza, que está em vias de atualizar-se, inseparável do movimento e sua atualização, pois a atualização se faz por diferenciação, por linhas divergentes, e cria pelo seu movimento próprio outras tantas diferenças de

natureza”74. (grifos do autor)

Parece que a fundamental contribuição de Deleuze reside em explorar a ideia de que a duração só pode se realizar enquanto multiplicidade heterogênea, e apenas se a diferenciação que a compõe for atualizada, isto é, apenas num estado presente. Compreendemos 74 DELEUZE, G. O Bergsonismo. Paris, PUF, 1966, p. 36 [tr. p. 32]

com Worms o sentido da interpretação da leitura deleuziana e sua incisiva posição a favor da coexistência das duas multiplicidades:

“Bergson não pode, certamente, eliminar inteiramente a operação subjetiva da síntese ou da construção de um número determinado. De fato, e está lá o impulso frequentemente despercebido deste texto [Ensaio], Bergson considera a construção do número como resultado, não somente da forma geral do espaço, mas do ato instantâneo do espírito. [...]. Tal é a passagem fundamental, sobre a qual Deleuze não deixa de prestar atenção, em que Bergson distingue o que é objetivo e

subjetivo no número”75.

Por isso que passagens como esta: “no caso da duração subjetiva, as divisões só valem se efetuadas, isto é, se atualizadas”76, são valiosíssimas para compreender o alcance da noção de duração e do virtual. Em suma, a diferenciação que compõe a heterogeneidade do subjetivo e de sua multiplicidade existe somente em razão de atualização. Trata-se efetivamente, no caso de Bergson e Deleuze, de um esforço para sair da abstração que elevaria o virtual ao dualismo ontológico que separa matéria e pensamento a uma distância intransponível. Veremos adiante que a ontogênese bergsoniana é dependente de uma concepção de matéria mais alargada do que a que roga o materialismo dualista.

Até aqui, podemos admitir que um dos traços da teoria das multiplicidades versa sobre a coexistência das duas multiplicidades; importa também dizer que elas coexistem nos diferentes níveis da consciência. Mas, se voltamos a perseguir nossa investigação sobre a relevância da teoria das multiplicidades para a ontogênese, caberia considerar mais um traço desta teoria que vale mais algumas palavras. Vejamos.

A multiplicidade quantitativa é considerada por Bergson como uma expressão legítima de uma síntese mental que ‘produz’ unidades indistintamente. A unidade numérica, como demonstramos

75 WORMS, Philosophie en France au XXe siècle, Paris, Gallimard, 2009, p. 157. 76 DELEUZE, O Bergsonismo, p. 37, tr. p. 32

anteriormente, privilegia-se por constituir-se de um material de mesma natureza. Em outras palavras, um número pode não ter outras qualidades além daquela que define suas ‘variações’ quantitativas; o que define o número 1, ou 2, ou 3 etc. Ou seja, a unidade numérica está inteiramente resolvida em sua objetividade, e a matéria é invariavelmente a mesma cuja mudança representa apenas o acréscimo dessa matéria em qualquer outra quantidade. Deste modo, a matéria numérica garantiria sua característica de impenetrabilidade, como diz Bergson,77 em que uma unidade se soma à outra, se avoluma e se acumula a uma dimensão de grandeza indefinida.

Neste caso, operação numérica de adição pode ser a síntese matemática da multiplicidade numérica; a impenetrabilidade da matéria estaria garantida para este tipo de multiplicidade na medida em que uma matéria adiciona-se à outra indefinidamente (1+1+1=3). Eis aqui mais um aspecto matemático associado à multiplicidade quantitativa: a adição. Contudo, quando esta noção é forçosamente aplicada a outros tipos de matéria vê-se altos equívocos, pois a matéria não pode ser reduzida a uma propriedade matemática que a transforma numa unidade impenetrável. Em termos bergsonianos esta crítica subjaz à ideia proveniente da lógica aristotélica de onde se lê a sentença que nos fala que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço78. Isso porque Bergson parece se interessar pelo movimento da matéria em nível molecular, recusando o imperativo lógico que tende a avaliar a penetração da matéria como um acúmulo residual e não como uma dissolução de uma matéria na outra. Esclarecemos com Bergson:

“Imaginai que um corpo penetra noutro: suporei logo nestes vazios em que partículas do primeiro virão alojar- se; por sua vez, estas partículas não poderão penetrar-se se uma delas se divide para encher os interstícios da outra; e nosso pensamento continuará indefinidamente esta operação, em vez de representar dois corpos no

77 BERGSON, E, p. 65 [tr. p. 72]

78 Cf. BERGSON, O que Aristóteles pensou sobre o lugar. [trad, Anna Lia A. de Almeida Prado] Campinas, Unicamp, 2013

mesmo lugar[...] De fato, não é uma necessidade de ordem física, é uma proposição de ordem lógica que se prende com a proposição seguinte: dois corpos não

podem ocupar o mesmo lugar no espaço.”79

Podemos considerar então que o proveito lógico de tal sentença não pode interferir na combinação de matérias de outros tipos, não numéricas. Esta será a defesa de Bergson: advertir sobre o despropósito de tal argumento quando aplicada aos fatos da consciência, perseguindo a tese da penetrabilidade dos estados de consciência. Por isso, se de um lado pode-se delinear a multiplicidade quantitativa como portadora da caracterização da operação da adição, a multiplicidade qualitativa deveria ser delineada a partir de uma operatoriedade não matemática, cuja expressão poderia ser a combinação de elementos que se interpenetram e se transformam indistintamente. Com efeito, Bergson parece defender a mistura dos estados da consciência, varrendo a possibilidade de definição absoluta de tais estados, conquistando assim o direito de insistir em sua crítica às grandezas intensivas exposta no primeiro capítulo do Ensaio e revista em Matéria e Memória a partir da noção de matéria intensiva e em A

Evolução Criadora a partir da gênese ideal da matéria, necessárias para

a criação de um novo modelo para a ontogênese.