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Psicobiologia e embriogênse: alianças conceituais para repensar o indivíduo.

“Meu corpo está em continuidade, pelos meus ancestrais humanos e animais, com os viventes os mais primitivos. Ele dura desde as origens da vida. E podemos dizer o mesmo de tudo o que vive hoje sobre a terra: não há uma

talo de mato que não remonte ao começo da vida”268

A noção de interdependência transindividual abre o conjunto de teses que sustentam a filosofia panpsiquista de Ruyer apresentada nos Elementos. Esta primeira sentença expõe o problema da continuidade da vida que será perseguida durante a longa apresentação de teses sobre a consciência, a memória, a formação e atualização, individualidade e diferenciação que compõe a trama de sua tese maior, a saber: “há algo em comum em todos os seres. Eles têm uma individualidade, uma forma própria, persistente, tendendo a se reconstituir e a reaparecer ao longo do tempo na medida em que sua estrutura é alterada”269. De outro modo, a interdependência da vida é um tema importante, pois, a partir dele, é possível estabelecer a crítica em biologia aos modelos do tipo mecanicista. Quando se trata de compreender as estruturas biológicas e psicológicas de um indivíduo, os esquemas explicativos270 da física não são capazes de abarcar a densidade desses processos. A linha de continuidade que há entre um organismo simples como a ameba e o humano não pode ser explicada pela redução sucessiva à menor parte, nem tampouco pela hipótese que faz do organismo humano o resultado do agrupamento multicelular cuja menor parcela pode ser reconhecida numa ameba. Diante do atual

268Idem, p. 1 269Idem, p. 2

270 Por esquemas explicativos assimilamos a definição feita por Michel Morange em

Les Secrets du Vivant. Contre la pensée unique en biologie. Editions La Decouverte,

2005. O autor, refletindo sobre a necessidade de superar o modelo único de explicação científica, apresenta 3 modelos que são igualmente válidos para as pesquisas em biologia. Nenhum dos modelos é capaz de conter a totalidade das explicações dos fenômenos biológicos. Os esquemas de explicativos são: mecanicista, darwinista e da física não causal.

estágio da embriologia e da biologia molecular, este modelo de explicação perde sua validade. Ruyer, que acompanhava atento aos avanços das ciências da vida, percebia que essas novas ciências ainda não haviam se livrado dos riscos de submissão generalizada aos modelos da física.

Junto a esta primeira percepção, de que as linhas de continuidade devem ser exploradas a partir da embriogênese e não da simples causalidade física, Ruyer acrescenta uma linha a mais em sua problemática, a saber, a singularidade dos indivíduos. Nada é mais estranho à filosofia de Ruyer do que a imagem de uma massa de organismos cuja função seria apenas repetir os mesmos processos para sua perpetuação. Reconhecer que um molusco é tão indivíduo quanto um humano é o primeiro passo para explorar o problema da formação e continuidade e da interdependência das formas de vida.

“… seria mesmo ridículo recusar o título de ser a não importa qual individualidade verdadeira – átomo ou molécula – sob o pretexto de que, em massa, essas individualidades só alcancem efeitos dinâmicos simples e calculáveis. É como se recusássemos admitir que os milhares de moluscos, que constituiriam suas conchas com os sedimentos calcários, tivessem uma vida e uma consciência individual sob o pretexto de que os sedimentos, como tais, obedecem à leis físicas de uma ordem elementar e conforme o nível do determinismo o mais banal”271

Garantir a singularidade nos processos de formação do indivíduo não deve anular o efeito finalista que a atividade vital preserva. De fato, o finalismo é preservado não para atualizar a querela moderna que criou entre os adeptos do finalismo e do mecanicismo um verdadeiro campo de batalhas. A tarefa de Ruyer, mais modesta, é apresentar a força da interação que atravessa a formação dos indivíduos, fortalecendo a noção de dependência. A força da interação

restitui a relação de ordem interna compartilhada pelos seres272. O que traz à tona a renovada ideia de uma cadeia de seres garantida pela unidade entre eles. A noção de individualidades singulares é a noção fundamental que permitirá explorar os processos de individuação a partir de um panpsiquismo que reconhece a existência da consciência em toda a entidade da natureza. Diferente, portanto, do panpsiquismo idealista para o qual as entidades da natureza seriam de ordem mental. Na verdade, esta noção passa por diferentes estágios na obra de Ruyer, nos Elementos, obra da qual partimos para investigar Ruyer, a noção do indivíduo portador de consciência e de memória orgânica é a mais importante contribuição para seu panpsiquismo. Diferente da obra póstuma, A Embriogênese do mundo em que a noção assume filiação idealista. “O panpsiquismo anuncia que só pode haver verdadeira consistência ontológica psíquica”.273 Não se trata aqui de defender visão definitiva sobre esta noção em Ruyer, apenas destacamos que, no contexto dos Elementos, esta noção favorece a investigação de elementos importantes como a memória orgânica, a atualização e o potencial.

É a psicobiologia que investiga os modos de diferenciação e singularização presentes na ontogênese. Mas o que é esta unidade que garantiria, a um só tempo, os processos de diferenciação e a manutenção de um fio de vida comum a todos os indivíduos? Teria a psicobiologia uma solução para a busca desta unidade? Estas questões só são compreensíveis quando se considera que o projeto ruyeriano conjuga teses ontológicas e científicas a partir de um empirismo que escapa às classificações tradicionais da filosofia. Não se trata de impor à psicobiologia a verdade última sobre a vida, mas sim de construir uma alternativa aos modelos hegemônicos em filosofia e em ciência, os quais 272A problemática finalista se realiza também a partir de uma noção de teologia racional onde se preserva a necessidade da unidade, de domaine de survol, sem o que não haveria linhas de continuidade entre os seres. CONRAD, A. Repenser la finalité. Critique. 804. mai, 2014. p. 388-401

273 Cf. COLLONA, F. Présentation in RUYER, R. L’embriogenese du monde. Klincksieck, 2013. p. IX

limitam os indivíduos a um encadeamento determinista realizável a partir de uma estrutura mecanicista. É verdade que Ruyer não abre mão de um certo determinismo, mas é um determinismo de outro tipo, a exemplo daquele que se faz nas grandes linhas da vida, um determinismo que se define pelo equilíbrio das formas. Equilíbrio este que está no tempo, que não é apenas o atual da versão espaço- temporal. Passados quarenta anos de A Evolução Criadora, o autor ainda reclama: “não é fácil se habituar a esta ideia da unidade da forma através do tempo, e é preciso tomar conta da tentação de voltar às hipóteses auxiliares que relacionam instantaneamente e por técnicas físicas um estado instantâneo a outro”274.

O tempo, na teoria de Ruyer, é tematizado segundo a investigação da forma impressa num indivíduo. Para superar a forma- gestalt é preciso equacionar a passagem entre a forma embrionária e a forma adulta. A embriogênese é o eixo científico que permite Ruyer refutar o mecanicismo e suas variações em biologia para pensar os indivíduos. É o que acontece no exemplo dado por Ruyer para introduzir o tema do potencial equacionando um esquema explicativo do tempo diferente do espaço temporal. A bolha de sabão considerada em sua forma esférica se realiza por meio do equilíbrio das fases organizadas em torno da resistência das moléculas de água que a compõem. Essa resistência dos elementos que a compõem só se realiza no tempo, não no sentido da física, mesmo que ela se traduza por uma estrutura espaço temporal. Trata-se de assimilar que a forma que se compõe a partir da cadeia de elementos só se realiza por meio da temporalização dos elementos envolvidos e não pela natureza das forças que estão em relação para o equilíbrio desta forma. Por isso, a observação das formas deve traduzir as estruturas verdadeiramente temporalizadas e não somente o espaço-temporal275. Evidencia-se a construção de uma noção de indivíduo articulado transespacialmente e transindividualmente a

274 RUYER, op. cit., p. 15. 275RUYER, Éléments, p. 13

partir da memória e o potencial como a sucessão de estruturas que aparecem no tempo.

Quando se trata de observar os fenômenos biológicos a partir do critério de temporalização, a forma deve ser reconhecida pelo conjunto das fases que compõem um indivíduo, do embrião à vida adulta. Ou seja, a estrutura ou anatomia de um indivíduo não pode ser reconhecida apenas a partir da forma adulta, comumente atribuída aos indivíduos em biologia. Apenas quando se considera o embrião como parte da forma do indivíduo se completa a descrição de sua estrutura e a temporalização de seus elementos. “A estrutura formal de um organismo manifesta uma ordem formal dominante às estruturas através do tempo”276. Isso significa que não se pode considerar uma estrutura orgânica somente através de um equilíbrio atual, pois a anatomia e a forma não estão ordenadas apenas no tempo, mas também no espaço, ou seja, a forma adulta é apenas um recorte de uma dinâmica mais ampla que abriga todas as fases de um indivíduo. Veremos adiante os desdobramentos da sucessão coordenada das estruturas no tempo, e como elas se ligam a um eixo central da individuação na teoria de Ruyer, qual seja, o potencial como o acesso à memória orgânica e à consciência.

Por hora, chamamos a atenção do tema da psicobiologia como um modelo que permite a integração de dois parâmetros das ciências do vivo. Os dois parâmetros conciliados são os modelos da física e da ciência biológica, que, quando combinados, favorecem a observação das passagens entre os estados ou fases dos indivíduos. A combinação dos dois modelos está presente nas proposições de Ruyer a partir da influência de Étienne Wolf, especialista em biologia experimental e seu colega no cárcere; o filósofo assumirá esta combinação ao longo de toda a sua obra.

No pequeno diálogo entre o Espírito simples e o Espírito culto que abre a obra Embriogênese do Mundo, Ruyer apresenta as linhas mestras do livro, cuja ambição, para além do eloquente título, é propor 276Idem, p. 13

uma espécie de retorno aos elementos mais concretos da existência. O tom deste prólogo é dado justamente pelo Espírito Simples:

“Quando eu me pergunto: ‘Por que alguma coisa existe?’, eu entendo: ‘porque eu existo, eu, no ano de 1981, míope, mancando, tendo necessidade de um dentista?’ Seria tão simples que não existisse nada, nada disso, dessa parafernália, de todos esses sistemas complicados, caminhando desastrosamente, sempre atordoados, sempre bem ou mau remediados, às vezes bem, às vezes mal. Não se trata de compreender ‘a Coisa mais que o Nada’ ou ‘a bola branca sobre o fundo preto’, mas o

planeta terra de 1981 com sua desordem [tohu-bohu].”277

Este questionamento anunciado pelo Espírito simples reposiciona o projeto mais sistemático de Ruyer, no decurso final de sua própria produção. O espirituoso diálogo que abre o texto sugere que o relevo da obra perseguirá uma visão simples e mais imediata sobre processos de geração da vida sem cair nas disputas que marcam o debate entre evolucionistas e criacionistas. No fim, Ruyer mobiliza um esforço para compreender a embriogênese como uma ciência fundamental para que a filosofia possa abandonar a ontologia especulativa que produz teses não fundamentais sobre o ser e o nada, sobre o fundo e vazio. A embriogênese pode ser definida no uso ruyeriano como um tipo de linguagem, como uma gramática para a observação da vida em seu dinamismo, a um só tempo simples e complexo.

A comparação do embriologista com o linguista é uma aposta do filósofo para chamar a atenção sobre o papel que a memória desempenha para a perpetuação de processos vitais. Haveria um tipo de memória orgânica e imaterial responsável pela concatenação processual dos elementos materiais necessários à formação dos indivíduos. Além disso, a existência da língua não depende da existência de um falante em especial, responsável por transmiti-la. A linguagem é um fenômeno que coloca os indivíduos em relação, sem a necessidade de evocar a etimologia das palavras. Trata-se, portanto, de se dirigir ao 277RUYER, L’embryogenèse du monde. p. 6

meio, ao habitual, e não à Origem do universo ou ao Primeiro dia da bíblia.278 O mesmo pode ser identificado na memória orgânica, pois se trata de identificá-la no conjunto de fenômenos pelos quais ela se atualiza e não transformá-la no elemento primeiro da vida. A primordialidade é noção estranha à filosofia de Ruyer, sua filosofia é imperativa ao assumir que tudo está em relação.

Na série do que o autor chama de linhas de continuidade, todos os indivíduos, em todos os domínios e formas, contêm um potencial que pode determinar os modos de sua individuação. A memória orgânica não é uma faculdade, mas a condição de atualização do potencial. Tal memória se diferencia da memória psíquica e é parte de uma memória primitiva a qual carrega cada individuo de acordo com o ambiente no qual ele está inserido. A memória orgânica é essencial para garantir a repetição e o caráter transespacial da continuidade das características dos indivíduos. Ela não pode ser submetida à materialidade do gérmen, e não tem necessidade de mensageiros químicos. Assim como a linguagem, o processo de aprendizagem é um bom exemplo para ilustrá-la. A aprendizagem é uma característica do indivíduo e não está ligada às células germinativas que supostamente transmitiriam hereditariamente em um gene.

Tanto a embriogênese quanto a psicobiologia dedicam-se a introduzir o fenômeno da memória orgânica para estabelecer um modelo de organização do vivo que não expande os limites da observação realizada pela biologia presa aos processos físico-químicos. Não há indivíduo sem memória, não há manutenção dos processos de estabilidade e de continuidade da vida que não seja entrelaçado pela memória. E, mesmo na regularidade estável dos processos orgânicos, a memória se estabelece como um eixo necessário sem o qual a transmissão estaria comprometida. A memória orgânica é basicamente aquilo que permite a reunião dos elementos e a atividade dos processos formadores dos indivíduos. Não sendo a memória um caso específico 278Idem, p. 30

nos indivíduos, ela é uma generalidade que permite aos indivíduos se estabelecerem a partir da cadeia de conexões disponível nos circuitos da memória. O problema da memória em Ruyer está presente em todos os momentos em que o autor investiga os processos de individuação, em especial no Elementos de psicobiologia e em A Embriogênese do

Mundo.