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Esforço para repensar a vida

2. A gênese do tempo na teoria das multiplicidades

2.5 Esforço para repensar a vida

A noção de matéria como imagem de Matéria e Memória não foi assumida em A Evolução Criadora, seja pelos contrassensos suscitados, seja pela necessidade de exteriorizar a duração na organização concreta das dinâmicas vitais. Todavia, a imagem tornou-se o acesso a uma concepção de pensamento em duração e criação que sustenta teses fundamentais sobre a intuição, esforço, simpatia e emoção. Além disso, a imagem guarda uma certa supremacia no trabalho de organização conceitual. Se uma única imagem ainda é 145 É notável que os desdobramentos dessa perspectiva deleuziana sejam inteiramente utilizados nas construções da imagem-movimento em que Deleuze apresenta a heterogênese das imagens a partir de suas variações com os movimentos que as engendram, assumindo ainda que essas imagens-movimentos são incitações permanentes, ou ininterruptos “cortes móveis” agitados em um “todo que muda, uma duração ou um devir universal”. Cf. DELEUZE, Imagem-movimento, p. 101.

146 Em francês, o termo extensão pode ser traduzido de duas maneiras étendu e

extension. Esta distinção é feita por Bergson no capítulo II do Ensaio a propósito da

definição das multiplicidades intensivas e extensivas. Cf. p. 61, tr. p. 68. Os dois termos serão novamente assimilados no capítulo final de Matéria e Memória para apresentar a matéria tanto como étendu, que significa aquilo é estendido no espaço homogêneo e também como extension que reconhece na matéria sua qualidade e se distingue da duração por níveis de tensão, ou um tipo de escoamento da duração. O intensivo (inétendu) por sua vez designa o que é qualidade pura e é a expressão da relação do movimento com suas qualidades.

147 BERGSON, Matéria e Memória, p. 202, tr. p. 212. 148 Cf. Idem, p. 92, tr. p. 73

imprecisa para expressar uma ideia, um conjunto delas é a expressão mais fiel da ideia: “nenhuma imagem substituirá a intuição da duração, mas muitas imagens diversas, tomadas de empréstimo a ordens de coisas muito diferentes, poderão, pela convergência de sua ação, dirigir a consciência para o ponto preciso no qual há uma certa intuição a apreender.”149. De outro modo, a imagem é o recurso segundo o qual é possível chegar mais próximo da temporalidade aberta pela duração. Isso nunca acontece por meio de uma única imagem, mas por meio de múltiplas e multifacetadas imagens que confluem para uma convergência significativa. Movimentos alternados de equilíbrio e desequilíbrio, dominação e subordinação, cooperação e individualidade presentes no fluxo das imagens transformam-nas num componente especial do método. As imagens possibilitam a expressão do intuído, concretizado a partir de um esforço de criar modos de perceber a vida em seus processos orgânicos e subjetivos. Para tanto, é preciso um esforço laborioso associado a um impulso, desejo, vontade de transpor a condição utilitarista da inteligência: “Para isso é preciso que se violente, que inverta o sentido da operação pela qual habitualmente se pensa, que revive, ou, antes, refunda incessantemente suas categorias”150. O propósito do esforço é agir no refluxo da inteligência; é responsável pela expressão que acompanha o movimento de exteriorização da duração. Além da exigência criadora, o método prescreve a conservação a realidade intuída.

O esforço intelectual, explorado no texto homônimo de 1902, sistematiza a atividade pela qual a inteligência se relaciona com a criação. Para tanto, Bergson apresenta os diferentes níveis de esforço aos quais a inteligência é habitualmente submetida, a começar pelo esforço da rememoração. Existem lembranças que são evocadas num certo grau de horizontalidade, dadas por associações imediatas utilizando os recursos fundados na analogia, presentes em abundância

149 BERGSON, PM, p. 192.

nos imperativos pragmáticos da vida. No entanto, o trabalho de rememoração pressupõe a existência de planos de consciência diferentes, “desde a lembrança pura, ainda não transformada em imagem, até a mesma lembrança atualizada”151. Ao evocar uma lembrança, entram em ação, concomitantemente, automatismo e reflexão; assim temos “imagem evocando imagem ao mesmo tempo em que o espírito trabalha com representações menos concretas”.152.

Existem lembranças que, ao serem evocadas, mobilizam vários planos, cujo esforço de rememoração nos coloca no fluxo do tempo. O sentido perseguido pelo esforço mnemônico é representado pelo esquema

dinâmico153, dado por uma representação simples a qual se desenvolve

em ideias e palavras. No entanto, não se trata de uma representação constituída arsenal de imagens. O que importa no esquema dinâmico é o sentido, a entropia das imagens que se interpenetram e se condensam em outras imagens. Esse sentido é dependente do esforço para que o esquema se faça ativo, e ao mesmo tempo seja um estímulo para mobilizar as imagens das quais será preenchido. O esquema que movimenta as imagens não é pré-determinado, não é fixo, tampouco “imutável [e] ao longo da operação é modificado pelas mesmas imagens que procura preencher. Às vezes, na imagem definitiva, não resta mais nada do esquema original”154. Por isso, a definição do esquema dinâmico não se define puramente nas imagens, “tal

151 BERGSON, EE, p. 155. 152 Idem, p. 156

153 O exemplo do aprendizado da dança apresentado no Esforço Intelectual, é esclarecedor para a compreensão do esquema dinâmico. “Como procedemos para aprender, sozinhos, um exercício complexo, como a dança? Começamos olhando dançar. Obtemos assim uma percepção visual do movimento [...]. Confiamos essa percepção à nossa memória; e a partir daí nosso objetivo será obter de nossas pernas movimentos que deem aos nossos olhos uma impressão semelhante à que nossa memória havia guardado... a imagem de que vamos servir-nos não é uma imagem visual definitiva, visto que vai variar e precisar-se no decorrer da aprendizagem que está encarregada de dirigir. Mais adiante: Na verdade, a parte útil dessa representação não é nem puramente visual, nem puramente motora; são ambas ao mesmo tempo, estando o desenho das relações principalmente temporais, entre as partes sucessivas do movimento a ser executado”. Op. cit., tr. p. 178

representação contém menos que as imagens propriamente ditas do que a indicação do que é preciso fazer para reconstruí-la”155.

Cabe aqui incluir na análise do esforço expressivo uma componente necessária para a promoção do esquema, qual seja, a emoção criadora, explorada em As duas fontes da moral e da Religião. Gênese da criação, a emoção reverte os aspectos originais da inteligência e a conduz para superar sua condição; a emoção criadora toma de assalto a inteligência, contamina, por assim dizer, a esfera da racionalidade que age imbuída por um impulso turbilhonante.156:

“Essa impulsão, uma vez recebida, lança o espírito por um caminho no qual ele reencontra não apenas as informações que havia colhido [no caso do romancista, para a composição literária], como também outros detalhes mais; essa impulsão desenvolve-se, analisa-se a si mesma em termos cuja enumeração prosseguiria sem nunca ter um fim; quanto mais longe vamos, tanto mais descobrimos e nunca conseguiríamos dizer tudo: e, no entanto, se voltamos bruscamente contra a impulsão que sentimos atrás de nós para apreendê-la, pois não era uma coisa, mais uma incitação ao movimento e, ainda que indefinidamente extensível, ela é a própria simplicidade.”157

Dado então que a emoção é indispensável para mobilizar o esforço criador, as características que fundam esse esforço são percebidas conforme se desenvolve o processo de criação descrito acima, preservando em seu desenvolvimento duas características: da organização e da imprevisibilidade. O esforço criador é diferente do esforço intelectual que está voltado para uma ação regida pelo controle e pelo utilitarismo. Não se trata de hierarquizar os efeitos da criação, seja nas artes, filosofia ou ciência. Notamos que o dinamismo criador é uma combinação da emoção criadora, impulsiona o necessário para 155 Idem, p. 161

156 A emoção criadora ganhará contornos mais definidos na obra Duas Fontes da

Moral e da religião.

traduzir a temporalidade da duração e o esforço intelectual que transpõe expressivamente o conteúdo da criação. Por isso, a inteligência também é um recurso necessário para o esforço criador, como é o caso da linguagem que engendra formação do universo simbólico e social. Se forem possíveis novas formas de perceber a dinâmica vital, é necessário um esforço que combine emoção criadora e esforço intelectual, a fim de assimilar a vida em sua fonte de permanente transformação. O trabalho de criação se sustenta também por aquilo que Lapoujade define como simpatia, que

“consiste em encontrar o que existe de “espírito” ou de ‘consciência’ no interior de uma realidade dada, determinando assim o que ela tem de comum conosco. Mas isso só é possível porque a intuição determinou previamente aquilo que temos em comum com ela. Na realidade, a primazia é atribuída à alteridade, ao dessemelhante: é porque o outro – o não humano – está em nós, que podemos encontrá-lo no exterior sob a forma de consciência ou de intenção”158

Então, se um conhecimento sobre o vivo é possível, é necessário que ele inclua o que não é humano. O esforço para se aproximar de uma realidade mais vasta que o humano abriga o sentido que a inteligência deve perseguir para a realização desta tarefa. Este sentido está fora do humano; está na alteridade, no estranho, no não idêntico a ela mesma. É possível falar em encontro de durações, quando a consciência humana toca em temporalidades de um mundo que transborda as mais variadas formas de vida. A simpatia pode ser então um esforço para repensar a vida, e o humano em contato com o não humano do mundo:

“Não é o universo que é dotado de uma memória, de uma consciência humana, de um movimento, mesmo alterados; pelo contrário, é o homem que, graças à intuição, entra em “contato” com os movimentos, as memórias, as consciências não humanas que estão no

fundo dele. No fundo do homem não existe nada de

humano159. É porque a intuição atinge as tendências não

humanas no homem que ela pode, reciprocamente, dar a impressão de humanizar o não humano. Mas, convém repetir, foi preciso primeiramente que ela fosse buscar no fundo do homem as tendências não humanas que o constituem. Aliás, é por isso que a intuição exige um trabalho tão longo e difícil. É necessário chegar aos limites da experiência humana, ora inferiores, ora superiores, para atingir os puros planos material, vital, social, pessoal,

espiritual através dos quais o homem se compõe”160.