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O papel da memória na individuação

Para uma filosofia da vida que se dedica a refazer os passos da constituição da individualidade, a memória desempenha um papel- chave. Não há indivíduo sem memória e a memória não pode ser reduzida a um esquema de causalidades físico-químicas como proposto pelas doutrinas mecanicistas das teorias evolucionistas e da psicologia da Gestalt. As análises sobre a memória desenvolvidas por Ruyer nos

Elementos estão em oposição com as noções que reduzem a memória a

um quadro de categorias, que apenas se sustentam para justificar as hipóteses de um ultra-racionalismo. Neste quadro analítico a memória não pode ter mais que algumas funções como: soma de excitações sucessivas, adaptação às novas circunstâncias, associação de antigas experiências à circunstância análoga e faculdade de aprendizagem. Porém, ao descrever a memória nestes termos, as teorias se baseiam num princípio neolamarkista que, segundo Ruyer, deve ser superado caso se queira assimilar a memória como uma realidade própria, a saber, a memória como função geral da matéria organizada. A principal consequência de enquadrar a memória nestes limites é ignorar que a memória é uma realidade não material, assim como é o tempo não espacializado, que dinamiza as ações da individuação sem que isso dependa de um reconhecimento dos fenômenos dessas ações. A memória tem uma realidade fora do tempo-espaço, diferente do kantismo impresso nas teorias biológicas consolidadas na contemporaneidade de Ruyer.

A partir de uma nova noção do tempo, a individuação estará dentro da chave transespacial assimilada com a substituição do atual pelo potencial. Adiante, veremos como se dão essas proposições na teoria ruyeriana. Por enquanto, nos propomos mostrar as raízes e implicações de uma noção de memória articulada à dinâmica de constituição do indivíduo. A memória assume traços assimiláveis, ao que o autor denomina de formação orgânica. A memória do psiquismo primário deve ser tão fundamental como o dinamismo que anima. O psiquismo primário se define pelo reconhecimento de uma consciência que sustenta a realização e agrupamento dos elementos realizadores da forma individualmente; como vimos é a base para o panpsiquismo de Ruyer. Ela é anterior à consciência secundária que é a consciência em relação ao seu exterior, caudatária de um posicionamento que o indivíduo tem em relação ao eu (je) que se articula com o mundo. Será preciso marcar a diferença entre a memória orgânica e a memória psicológica. Sem a pretensão de refazer as categorias metafísicas sobre o tempo, movimento, forma e matéria responsáveis pela conceituação clássica sobre a memória, Ruyer reinvindica a existência de dois tipos de memória, qual sejam, a memória orgânica e a memória psicológica. A memória orgânica garante que a individuação responda a um tipo de realismo científico encontrado na biologia capaz de superar as especulações metafísicas sobre a memória.

Pois bem, a memória orgânica não é estritamente material. Mesmo quando atualizada, ela é, antes, parte de uma memória primitiva que porta cada indivíduo de acordo com o ambiente a que está submetido, comprovada pela existência dos caracteres não espaciais de continuidade.

“Longe de ser ligada às estruturas persistentes através do tempo e por consequência à inercia material, a memória orgânica – e a memória psicológica que é apenas um outro aspecto da mesma realidade – é uma realidade fundamental, mais fundamental mesmo que o tempo. Se a memória orgânica deve ser subordinada a alguma coisa, é

a esta memória, mais geral ainda, que nos aparece em

toda a série principal, como linha de continuidade”279

A memória não é uma faculdade de reter impressões e informações de conhecimentos adquiridos, e tampouco é uma função ou propriedade. Na assimilação desta perspectiva às ciências biológicas encontra-se um nó górdio que só pode ser desfeito a partir de uma concepção não mecanicista dos fenômenos da hereditariedade do tipo darwinista, como proposto por Weismann. A superação dos modelos darwinistas de hereditariedade é realizada a partir da teoria do plasma germinativo apresentada por August Weismann que, em 1889, apresenta esta tese que pretende superar a noção de herança dos caracteres adquiridos.

Na tese de Ruyer elaborada a partir das referências difundidas pelo biólogo Étienne Wolf, as referências a Weismann fundamentam as proposições sobre a memória orgânica. As proposições de Weismann apresentam uma distinção entre células germinais e células somáticas e permitem livrar a organização celular de cada espécie dos avatares espaço-temporais. A repetição hereditária deve ser apresentada a partir da abordagem genética das células germinativas, e não a partir de um atual que explica a continuidade do organismo ao germe.

Para Ruyer, na base de todos os problemas científicos da hereditariedade subsiste um problema lógico que não pode ser resolvido quando se isola os fenômenos em quadros esquemáticos. O filósofo apresenta um exemplo para demonstrar o erro lógico do paradigma evolucionista da hereditariedade na imagem de um pai com seu filho caminhando na areia da praia. O traço deixado pelo pai na areia determina a forma de seu pé, e é a marca de sua passagem na areia. Este fenômeno mecânico não explica a semelhança da marca deixada na areia pelo filho. Donde, a estrutura genética infinitamente complicada do pai deve passar para o filho a partir de uma célula germinal em que os caracteres não são transmitidos, mas sim 279RUYER, Éléments, p. 54

permanecem de um gérmen a outro. Em primeiro lugar, a distinção entre células germinais e células somáticas (não reprodutoras que formam o corpo do organismo) permite pensar a transmissão e transformação fora do eixo da causalidade espaço-temporal. As células germinativas permanecem, não importando se há transmissão. Trata-se de percebê-las como uma constante de cada espécie. É como se houvesse um livreto genético que perdura independente da transmissibilidade. Portanto, o que demonstra a teoria de Weismann são linhas de continuidade que se deslocam de um gérmen a outro e não de um organismo a um gérmen. Finalmente, a hipótese da hereditariedade mecanicista, ilustrada pelo exemplo da caminhada na areia, pode ser refutada porque não há transmissão de estrutura por impressão, mas permanência do gérmen com o desenvolvimento num sentido único de células que perpetuarão a atividade formadora. Ou seja, a estrutura do organismo adulto deriva dos genes, mas os genes não derivam da estrutura do organismo. Esta proposição desmonta a hipótese darwinista de herança dos caracteres adquiridos. Não há herança, há permanência; e as variações que acontecem na repetição respondem aos fatores que combinam gérmen, estrutura e meio. A noção de memória orgânica se impõe, pois é na repetição de uma memória transespacial que deslinda um sistema dinâmico autônomo de anagramas para manter a forma temática de sua complexidade280.

A continuidade então é garantida a partir da atividade formadora dos indivíduos, da atualização e do potencial comunicado pela memória orgânica. Ao tratar da memória orgânica e seu aspecto não espacial Ruyer enfrenta considerações científicas que ainda estavam em disputa. A biologia molecular ainda não era uma ciência consolidada, mas o debate promovido por Ruyer trazia à luz do campo filosófico considerações incontornáveis sobre um novo modo entender a formação do indivíduo. Consideram-se, então, elementos e combinações

científicas para produzir um efeito filosófico e refazer o vocabulário de entendimento sobre o que se denomina vida.

A memória orgânica apesar de não se submeter à vedete espaço-temporal tem uma ligação estreita com as formas realizadas no espaço. Daí que a memória temática aparece em Ruyer como a conjugação da memória orgânica com a atualização e a forma. Se a memória orgânica é o potencial, a passagem à forma e ao atual se realiza a partir da memória tema. Aqui a embriologia se curva ao desenvolvimento do indivíduo adulto, pois é para realizar o sentido da formação do organismo que a memória orgânica preserva aquilo que garantirá as linhas de continuidade.

O problema da memória-tema não aparece nas teses sobre a memória orgânica apresentada nos Elementos. A solução da memória- tema, como aquilo que provoca a continuidade do desenvolvimento individual e também da manutenção da espécie, só é apresentada nos manuscritos que dá origem em A Embriogênese do Mundo. A memória- tema se torna uma solução para o problema da comunicação das memórias biológicas e psicológicas, e também para a comunicação no domínio da memória orgânica entre os caracteres somáticos e o gérmen. Trata-se de introduzir a combinação de elementos para a ação organizadora da memória. Já nos elementos, Ruyer descreve o que será tematizado mais tarde em sua teoria da embriogênese.

“A forma do nosso organismo também inclui, aparentemente, a conjuntura histórico-geográfica geral, isto é, as condições cosmológicas de vida sobre este planeta: a memória orgânica prepara os pulmões, o que está em consonância com a existência do oxigênio no ar terrestre; ela constrói olhos, que possui um sentido dado à existência da luz solar […] Dizemos então que se gostaríamos que ela se lembre – este é o papel da memória orgânica – não apenas de fabricar o pulmão e os

olhos, mas que existe o ar e a luz para utilizar”281.

A memória orgânica e o psiquismo primário são os elementos do mesmo conjunto do que podemos agora definir como elementos para 281Idem, p. 66.

uma teoria da individuação na filosofia da vida de Ruyer. A memória orgânica se aproxima de uma perspectiva que descentra o humano do suposto privilégio da razão. Ruyer vai argutamente reposicionando este pré-conceito em favor de uma concepção menos antropocêntrica das ciências da vida e da filosofia. As plantas, animais e humanos compartilham da mesma memória orgânica e estão sujeitos a um posicionamento no mundo, limitados ao dinamismo psicovital que lhes é próprio. Em outros termos, a inteligência biológica não pode ser julgada pela inteligência verbal, psicológica e sensorial. “Um protozoário manifesta tanta inteligência e memória inteligente caçando e comendo suas presas de acordo com sua cultura específica. Todavia, ele seria incapaz de empunhar uma micro caneta para preencher uma micro folha de testes dando bons resultados”282. O exemplo pode parecer cômico ou mesmo ofensivo para aqueles que defendem a inteligência humana no topo de uma hierarquia que o próprio humano construiu para si. Porém, vemos o esforço do filósofo em provocar uma rachadura irreparável na concepção antropocêntrica da memória e da inteligência. Se este é um assunto geralmente superado pela biologia, para a filosofia, dizer que os indivíduos de todas as espécies e gênero compartilham inteligência e memória, ainda pode parecer uma afronta ao racionalismo secularizado. Dar o contorno de uma teoria da memória ao mesmo tempo empírica e ontológica é tarefa realizada por uma aliança conceitual oriunda de uma engenhosa filosofia da vida.

5. Continuidade e invenção biopsíquica: o potencial e a