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Sobre criação, indeterminação e imprevisibilidade

4. Elã vital e a criação de novas formas

4.3 Sobre criação, indeterminação e imprevisibilidade

"O elã da vida de que falamos consiste, em suma, numa exigência de criação. Não pode criar absolutamente, uma vez que encontra a sua frente a matéria, isto é, o movimento inverso ao seu. Mas apossa-se dessa matéria, que é a própria necessidade, e tende a introduzir nela a

maior soma de indeterminação e de liberdade.”240

A noção de criação é um tema central no bergsonismo. Toda a obra é atravessada por proposições que tematizam e exploram a criação como uma expressão da duração, como ato livre, como meta da intuição, como meio de superar a natureza utilitária da inteligência e 239 EC. tr. p. 288

como parte do processo de individuação. Mesmo que não haja uma obra dedicada à noção da criação, seu conjunto a torna central para a ontologia bergsoniana. Não é apenas a estética que se beneficia desta reflexão. Os diferentes modos de existência, os processos de individuação diversos, as existências plurais, e, enfim, a diversidade das formas de vida também se inserem no plano mais sistemático sobre a criação. A duração e sua definição de um jorro de imprevisível novidade correspondem a um domínio da criação através da vida. “Toda obra humana que contém uma parte de invenção, todo ato voluntário que contém uma parte de liberdade, todo o movimento de um organismo que manifesta espontaneidade traz algo de novo para o mundo”241.

Mas, como é possível que algo novo apareça se a percepção que deveria reconhecê-lo está imersa no sono profundo do utilitarismo? É por isso que a reabilitação da percepção ocupa a centralidade para salvaguardar a chance de ver mais de perto e transpor para a filosofia os fenômenos da vida. Neste sentido, a criação se torna endógena à filosofia, de modo que uma reflexão acerca do que pode a filosofia também deve refletir o novo, o que a vida imprime de novidade no mundo. As qualidades pertinentes à duração expõem a natureza criadora do Ser. Para percebê-la, a reflexão deve reorientar-se sobre o sensível. A criação se dá como correlato da natureza temporal do Ser e a duração é a própria temporalidade imanente à existência da vida. A criação se dá pela transitoriedade temporal aberta à imprevisibilidade, invadindo o mundo com aquilo que é novo. A individuação é o resultado da gestação de novos significados, novos sentidos e novas formas.

A imprevisibilidade e a indeterminação que acompanham a criação devem ser assumidas como uma função a partir da qual permite que a criação seja equivalente ao crescimento. Como vimos, entre o mecanicismo e o finalismo, Bergson constrói uma via alternativa na qual a filosofia pode apropriar-se dos elementos que circunscrevem a organização do vivo a partir da ontogênese. É parte do processo de 241Idem, tr. p. 260

individuação não suprimir o que há de imprevisível em seu curso. A filosofia da vida deve refutar a presumida proposição ontológica de que tudo está dado de um só golpe [tout est donné] ou que a matéria seja eterna242. Os desentendimentos estão por toda a parte. A ciência que recusa a diferença de natureza entre vida e matéria, compromete a criação e a matéria ao único e mesmo determinismo, sustentada pelas leis físico-químicas. A filosofia reduz a noção de criação a uma gênese onde tudo é dado de antemão, como se a relação da vida com a matéria fosse apenas um jogo de arranjo e não uma verdadeira ação criadora. Para Bergson estes dois domínios só podem adotar a fórmula do tout est

donné porque eles ignoram a noção do tempo como instaurador da

diferença, como a própria regulação da dinâmica vital. Tudo se passa como se o dinamismo dos processos vitais não fosse mais do que fórmulas rigorosamente aplicadas. Para Bergson, o todo nunca pode ser dado de antemão, pois ele está em vias de se fazer, ele está aberto para sua própria duração.

“Tudo é obscuro na ideia de criação se pensamos em

coisas que seriam criadas e em uma coisa que cria, como

se faz normalmente, como o entendimento não se impede de fazer. […] Mas coisas e estados não são mais que vistas do devir tomadas por nosso espírito. Não há coisas, há apenas ações. Mais particularmente, se considero o mundo que vivemos, descubro que a evolução automática e rigorosamente determinada desse todo bem amarrado é uma ação que se desfaz e que as formas imprevistas que a vida nele recorta, formas capazes de se prolongarem a

si mesmas e representam uma ação que se faz”243

Trata-se de considerar que os sistemas naturais não podem estar completamente submetidos a algo previamente determinado. É preciso romper com a ideia de que a mudança e o movimento expressos na dinâmica do vivo possam ser reduzidos a um cálculo de relações e probabilidades. O todo que não está dado é um todo aberto, 242Idem, tr. p. 261

cosmológico. Mesmo que natureza seja um sistema relativamente fechado, ainda assim haverá uma abertura que flerta com um sistema mais vasto, que o transforma incessantemente: “o universo não está feito, mas faz-se incessantemente. Cresce indefinidamente, sem dúvida, pela adjunção de mundos novos”244 A mesma reflexão se aplica à matéria, por onde a ontogênese elabora a composição solidária entre matéria e duração.

“O tempo é aquilo que impede que tudo seja dado de um só golpe”245. Se o todo não é dado de uma vez, é no tempo que a vida se elabora, e o tempo é ele mesmo o portador da indeterminação. Os indivíduos estão absolutamente submetidos à ação do tempo; ação que deve ter mais de elaboração, tateio, hesitação do que de invariabilidade e determinação. Caso contrário, estaríamos diante de uma imagem do vivo destituído do que há de consciência nele mesmo, que, como vimos, deve estar presente na matéria, mesmo num grau hiper diluído. “Suprimam o consciente e o vivo (e só poderão fazê-lo por um esforço artificial de abstração, pois, mais uma vez, o mundo material talvez implique a presença necessária da consciência e da vida), vocês obterão de fato um universo cujos estados sucessivos em teoria são antecipadamente calculáveis, como as imagens, anteriores ao desenrolamento [...]”246. Impossível para a filosofia da duração, suprimir a vida e a consciência da individuação. Por outro lado, se o tempo é elaboração e hesitação, parece ser razoável definir a individuação como um processo de diferenciação em que cada ser acentua cada vez mais suas próprias características, e por onde os viventes se lançam na aventura do imprevisível. O que é realizado na individuação não é parte de um programa determinado. O possível, não é um programa anterior a sua realização.

“Devolvemos o possível ao seu lugar: a evolução torna-se algo inteiramente diferente da realização de um programa; as portas do porvir abrem-se imensas; um

244EC. tr. p. 262

245 BERGSON, PM, p. 102 [tr. p. 106] 246 Idem, p. 101 [ tr. p. 105]

campo ilimitado oferece-se para a liberdade. O erro das doutrinas – bem raras na história da filosofia – que souberam abrir espaço para a indeterminação e para a liberdade no mundo, foi o de não terem visto aquilo que sua afirmação implicava. Quando falavam de indeterminação, de liberdade, entendiam por indeterminação uma competição entre possíveis, por liberdade, uma escolha entre possíveis, como se a possibilidade não fosse criada pela própria liberdade! Como se toda outra hipótese, pondo uma ideal preexistência do possível ao real, não reduzisse o novo a

ser apenas um rearranjo de elemento antigos”247.

Ora, não se deve estranhar que esta afirmação é extraída de uma filosofia que colocou o tempo no centro de seu pensamento. Um tempo que não se traduz numa realidade fugaz e inconsistente, mas que abre espaço para o domínio da novidade, que está em toda parte onde haja vida e consciência. Em suma, o possível não é aquilo que se torna real, mas é o real ele mesmo que se faz possível. A criação deve ser sempre qualificada como imprevisível, pois é a manifestação de um esforço crescente e contínuo. A criação contínua de imprevisível novidade se estabelece fundamentalmente pelo reconhecimento da diversidade de formas, de individuações e modos de existência, enfim, pelo aprofundamento das características singulares. Isso faz do processo de individuação um impulso para o novo.

Capítulo II

Notas sobre intersecções entre filosofia e ciências da vida

1. Alianças e deslocamentos entre filosofia e ciências