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Um outro igual não é o mesmo: a diferenciação na individuação

As proposições sobre a atualização se completam com a exposição que promove a observação dos limites entre diferenciação e individuação. Este tema é central não somente para completar o esquema ruyeriano da individuação, mas também para fazer valer a combinação entre as perspectivas da psicologia e da biologia sobre os indivíduos. As duas disciplinas oferecem uma definição particular de indivíduo. A biologia deve superar a definição de indivíduo como um objeto que na sua passividade apenas recebe e recolhe as determinações da sua espécie ou do seu gênero. E a psicologia por sua vez deve abrigar uma noção de indivíduo capaz de assimilar as diferenciações no nível vital, transformando-as num conteúdo para a individuação no atual da dimensão espaço-temporal. Esta análise só é possível quando o indivíduo, tanto para a biologia quanto para a psicologia, for considerado um centro de ação, um sujeito que age. Trata-se de considerar o sujeito como centro de atualização como um centro de pesquisa de sentidos vitais. Isso quer dizer que o sujeito ou indivíduo ruyeriano não é da ordem da explicação, como se fosse o resultado de uma ordenação de elementos. Ou seja, o indivíduo não pode ser explicado na chave da realização de uma meta. Ele tem uma formação significante e válida e deve se exprimir nessa formação. A individualidade existente aparece pela comunicabilidade de um sentido de formação – o potencial – da espécie e com os valores que estão para além da existência atual295.

As teses sobre a diferenciação em Elementos são repletas de exemplos oriundos da biologia e das teorias da ortogênese, que não deixam de ser o resultado de um esforço do autor em comprovar a existência de elementos ou fases da formação individual que são melhores compreendidas a partir da psicologia. A definição de diferenciação individual não se realiza sem a diferenciação para a 295Idem, p. 131

própria espécie. Cioso das análises da biologia, o filósofo explica o fenômeno da diferenciação, segundo uma resposta a um anseio da espécie, que também é atravessada por um impulso de diferenciação. Não se podem levar a sério as impressões de que as espécies se atualizam por conta própria, sem que houvesse um esforço dos indivíduos que compõem para torná-la autônoma e distinta. Isso implica em dizer que a semelhança específica não quer dizer que os indivíduos sejam idênticos. Assim como a semelhança entre nuvens nunca as transformaram nas mesmas nuvens. “Não se pode pensar na semelhança entre indivíduos como se explica a semelhança de dois exemplares de um jornal”296. Pode-se dizer que, na organização realizadora da espécie, não existe semelhança fora do atual, e mesmo no atual a semelhança é explicada pela convergência das fases do desenvolvimento e não pela diferenciação no plano do potencial. O potencial deve preservar um grau de inventividade que traduz a diferença entre as espécies. Ruyer é sumariamente contrário à ideia de que a semelhança entre os seres vivos pode ser explicada fora do atual a partir de uma noção de tipos individualizados concebida apenas no plano das ideias. Os tipos não servem para expressar as individualidades, e tampouco para explicar sua semelhança. O que importa nesta discussão é assimilar que a realidade das espécies se concilia com as linhas de continuidade individual. Por um lado, o indivíduo atual remonta a uma linha de vida contínua longa o bastante para borrar a fronteira entre as espécies. Por outro lado, a multiplicidade entre os indivíduos comunica uma normatividade preenchida por um sentido cosmológico. Esse espelhamento não idêntico entre as espécies promove um outro paradoxo na teoria ruyeriana, a saber, o paradoxo da individualidade, que a um só tempo se apresenta e se explica:

“É precisamente porque as fronteiras entre indivíduos são flutuantes e relativas é que há todos os graus de possibilidades de individualidade, isto é, de ‘fechamento’

do indivíduo do ponto de vista de outros indivíduos contemporâneos a ele, que cada indivíduo por sua vez, no sentido de suas relações com a fonte de todo ser, é um absoluto. Isto é, que ele se comunica diretamente com

esta fonte como se ele fosse o único”297

Isso significa que a relação entre a espécie e o indivíduo é que torna ele mesmo um caso único, singular, porque a fonte de todo ser, nos termos desta teoria, é o potencial mnêmico que atravessa a espécie. Portanto, é possível concluir que o indivíduo não esgota o potencial da espécie, ou que a espécie se concilia com as linhas de continuidade individual. A obviedade deve ser mencionada para não nos esquecermos de que nenhuma vida emerge do nada; a individualidade se comunica com a fonte comum da memória orgânica. O potencial é comum a um número cada vez maior de indivíduos. Mas, esse circuito ainda não responde à necessidade da força organizadora em promover a diferenciação e a individuação entre os indivíduos. Mas, como compreender a distinção entre individuação e diferenciação se no fundo esses processos levam à mesma fonte, ao potencial? A resposta está em reconhecer que atualização acontece nesses dois níveis. A diferenciação está para a forma biológica assim como a individuação está para a forma psicológica do indivíduo; são duas expressões do mesmo processo de atualização. Em psicologia, a individuação conduz à formação da alteridade e, em biologia, a diferenciação é um tipo de multiplicação do potencial.

Para o autor, individuação e diferenciação são dois lados da mesma moeda, que roga acima de qualquer definição teorética a necessidade do polimorfismo - função biológica que mais enriqueceu as teorias contemporâneas da individuação. “Ninguém hesita considerar indivíduos distintos, como dois indivíduos de sexo diferentes de uma mesma espécie, e, portanto, não é menos claro que a oposição de dois sexos, se inter-relacionando e se colaborando, é, de fato, uma