• Nenhum resultado encontrado

Pensamento em duração e a ordem vital

4. Elã vital e a criação de novas formas

4.1 Pensamento em duração e a ordem vital

O paradigmático terceiro capítulo de A Evolução Criadora transfere toda a potência da singularidade gerada em cada processo de individuação à responsabilidade do tempo. Dizer que cada indivíduo se modifica sem cessar é dizer que o passado e o futuro caminham em direções divergentes. A decisiva posição sobre o elã vital como a duração que se diferencia suscitada por Deleuze e Canguilhem222 em seus comentários sobre o capítulo III de A Evolução Criadora traduz a relevância desta articulação para o futuro das teorias da vida que procuram superar ou aperfeiçoar o bergsonismo. Em primeiro lugar, recordamos que Deleuze dá vazão a aspectos da filosofia da vida que foram negligenciados por sucessivas leituras do bergsonismo. O que pode parecer contrassenso em Deleuze demonstra uma profunda intimidade com os conceitos trabalhados. É possível ver que o filósofo levou adiante a tarefa de superação da inteligência utilitária, que enquadra o bergsonismo intelectualista demais ou espiritualista demais. “A história da filosofia deve, não redizer o que disse um filósofo, mas dizer o que ele necessariamente subentendia, o que ele não dizia e que, 222 Recordamos o comentário de Canguilhem sobre o capítulo III de A Evolução

Criadora onde encontramos importantes articulações das passagens deste capítulo

com as demais obras e textos de Bergson. O problema central de Canguilhem parece ser conciliar as proposições acerca da matéria espiritual, ou da personalidade como ele determina, e da matéria física ou geométrica. Mais do que uma conciliação há uma verdadeira integração do espírito ou duração com a matéria. Cf. CANGUILHEM, G.

Commentaire au troisième chapitre de L´Evolution créatrice, in Bulletin de la Faculté des letres de Strasbourg, t XXI, n 5-6, 1943, p. 126-143, reeditado em Annales bergsoniennes III, Paris, PUF, p. 113-160.

no entanto, está presente naquilo que ele diz”223. Vale notar que o bergsonismo depois de Deleuze reaproximou Bergson do debate emergente das filosofias da segunda metade do século XX que se dedicaram aos problemas da vida. É Deleuze quem se empenha em alargar as concepções de matéria e intuição, dois conceitos centrais para a teoria da individuação nascente com a filosofia da duração. Por exemplo, a ideia da matéria como imagem irá provocar nas expressões deleuzianas uma nova imagem do pensamento224. Além disso, é na diferença de natureza entre matéria e duração que são possíveis os intercâmbios entre matéria inerte e matéria intensiva. No limite da ontologia bergsoniana significa dizer que a operação de diferenciação é responsável por modelar o intercâmbio entre o virtual e a atualização. Acrescenta-se a fundamental contribuição da tinta deleuziana para alargar a noção de intuição como um método capaz de fazer confluir o pensamento em duração e o engajamento problematizante. Neste caso, o filosofar bergsoniano se resolve na predileção filosófica mais original, onde filosofar e problematizar são verbos que sentenciam ações recíprocas.

O curso de Deleuze da década de 50 contribui para encontrar as proposições mais fundamentais de um bergsonismo preparado para enfrentar o tema da individuação. A mesma colaboração está presente em Bento Prado, que nos aproxima do debate sobre uma consciência coextensiva à vida. Tema fundamental para compreender que o problema de Bergson está para além da negatividade da matéria e do peso que a inteligência utilitarista impõe sobre a vida. Mantemo-nos atentos para não criar uma filosofia da duração melancólica que alimenta uma psicologia da alienação, como diz Bento Prado, em que a consciência está “em contato com a exterioridade através da

223 DELEUZE, Conversações, p. 186, tr. p. 174

224 Sobre os usos da imagem na filosofia de Deleuze ver a tese de Cíntia Vieira, Corpo

e Pensamento, alianças conceituais entre Deleuze e Espinosa. Editora Unicamp,

inautenticidade de um tempo que espacializa”225, e que se enclausura na construção de generalizações.

Seria a crise da metafísica que assombra os modernos uma comprovação do esgotamento de um modelo de pensamento que se esforça a todo custo para fixar em conceitos uma realidade cujo limite é inesgotável? Uma filosofia contrária a isso deve ser aquela que violente, que inverta “o sentido da operação pela qual habitualmente se pensa, que revire, ou antes, refunde incessantemente suas categorias”226. Em suma, a gênese da inteligência de que falávamos tem uma relação direta com a reformulação do problema da vida em que a diferenciação e a divergência da matéria, ela mesma sob o fluxo da duração, representa também a afirmação de uma filosofia que não quer seccionar o mundo num quebra-cabeça. A filosofia da duração permitirá no máximo a construção de um móbile cujas peças se alternam em suas posições no espaço e no tempo. Em outros termos, trata-se de uma consideração da duração como uma totalidade que se transforma perpetuamente. O que então resta à filosofia? Um esforço para aproximar intuição, instinto e inteligência, elã vital e matéria, a fim de deixar apossar-se (saisir) do todo da duração.

Com efeito, o elã vital está inscrito na problemática da diferenciação das formas de vida. O trânsito entre o virtual que representa o elã vital e sua atualização é justamente o ponto-chave para assimilar o evolucionismo bergsoniano como um processo que, antes de tudo, carrega a força que o indivíduo possui para divergir de si. A gênese da inteligência tem o papel de reinserir o humano na duração, na pura heterogeneidade para fazer ver que a inteligência ela mesma é um caso de diferenciação, de uma individuação que está sempre a ponto de divergir de si mesma. Por isso, se há condição humana ela deve mostrar o caminho de superação desta condição, deve superar a “imutabilidade” da consciência de si para encontrar a consciência em si.

225 PRADO, Bento. Presença e Campo Transcendental, p. 176 226 BERGSON. PM, p.213 [tr. p. 221].

A filosofia não deve ser um caso de realização da condição humana, mas sim um caso de reposicionamento da inteligência em relação à vida da qual ela faz parte. “A filosofia não pode, não deve aceitar a relação estabelecida pelo puro intelectualismo entre a teoria do conhecimento e a teoria do conhecido, entre a metafísica e as ciências”227. Pois, o esforço que a cabe à realização de uma inteligência que se reinsere na duração é trazer de volta a especificidade de um conhecimento integrado ao que margeia a inteligência, e que, no entanto, a compõe. Esforço que nunca será individual, tampouco obra de um espírito privilegiado, uma visão global do todo. Ao contrário, o esforço em filosofia que Bergson reclama está mais próximo de reabsorver a inteligência pelo princípio da duração, até reviver a sua gênese.228 Por isso, filosofar será uma tarefa “coletiva e progressiva. Consistirá numa troca de impressões que, corrigindo-se entre si e superpondo-se umas às outras, acabarão por dilatar em nós a humanidade [...]”.229 Por isso, a realização da gênese da inteligência em paralelo à gênese da matéria contribui para a efetivação do esforço que cabe à filosofia: absorver-se na duração e de lá construir uma visão das coisas mais coerente com a fluidez do todo que se transmuta incessantemente. Tudo isso, resulta na consolidação de um método em filosofia que seja capaz de, a um só tempo, estabelecer os limites de um problema e reinserir a inteligência na duração para daí decidir sobre o que pode servir de matéria de especulação.

A sentença da autobiografia filosófica nas introduções de O

Pensamento e o Movente de Bergson alude às conquistas do método ao

longo da obra do filósofo e extrapola o próprio sentido de seu enunciado em A Evolução Criadora: “Pensar intuitivamente, é pensar em duração”230. O pensamento em duração teria aberto um vasto campo por onde as aproximações da filosofia com seu próprio território e 227 BERGSON EC, p. 195 [ tr. p. 211]

228 Idem, p. 193 [ tr. p. 209] 229 Idem, p. 193 [ tr. p. 209] 230 BERGSON, PM, p 30 [ tr. p. 32]

alhures seria impulsionada pela recomposição dos problemas, obrigando o filósofo a adotar, de saída, uma postura crítica. Bergson só aceitará a herança de um problema filosófico se este puder ser instalado no campo problemático que o próprio filósofo constrói. Trata-se de uma postura alternativa ao criticismo, à dialética e à fenomenologia. Primeiramente, faz-se necessário o questionamento da relação que o pensamento estabelece com os objetos dos quais se ocupa, e da afirmação libertadora da capacidade do filósofo estabelecer seus próprios problemas, que são construídos no seu tempo. Ou seja, o que está implicado no esforço em filosofia é a necessidade de repor os problemas incansavelmente231.

A crítica à desordem e ao nada do capítulo três vem resolver os casos de dois falsos problemas. A solução para o primeiro caso é uma teoria que equaciona a noção de desordem em dois tipos de ordem: a ordem vital e a ordem geométrica. Seria este o caso de especificar os dois tipos de multiplicidade tal como Bergson as descreveu no Ensaio? Primeiro, é preciso esclarecer que a ideia de desordem parte de um problema de percepção que é estimulada por uma expectativa intelectual que procura o que ainda é inexistente. Este problema se funde com a interpretação que temos dos fenômenos. Se eu digo que no livro em prosa não há verso é porque a percepção assimilou a expectativa intelectual em querer reconhecer o verso. O equívoco para Bergson será de projetar a negatividade em algo que é concreto, em projetar uma realidade ordenada em função de uma satisfação intelectual. A ordem não passa de um “acordo entre o sujeito e o objeto”232. Não há nisso nenhum estranhamento, nada de reprovável, quando consideramos que a ordem está a serviço da inteligência, ou melhor, que a noção de ordem é um subproduto de uma inteligência utilitarista que deve submeter a totalidade do real ao seu domínio. No limite, a desordem poderia ser um conceito positivo se não a

231 BERGSON, PM, pp. 7-9 [ tr. pp. 9-11.] 232 BERGSON, EC, p. 225 [ tr. p. 243]

relacionássemos a uma falta de ordem. Porém, o que há de reprovável nesta conduta é submeter o que é da ordem do vital à ordem geométrica, por onde a inteligência transita tão bem. Há uma diferença de natureza entre as ordens vital e geométrica que impõe a elas direções divergentes. O que Bergson não pode admitir é que um sistema definido de leis matemáticas seja a base da natureza, ou que a natureza seja construída por leis irrevogáveis assim como os axiomas constroem a geometria. Os dois gêneros de ordem devem, quando muito, ser relacionados com a cautela de não sobrepor uma ordem a outra. À sobreposição da ordem geométrica sobre a ordem vital, Bergson chama de inversão. Inversão que conduz a imprevisibilidade da criação de novas formas para a necessidade mecânica, ou que leva a tensão do vital se aniquilar em extensão inerte. Em suma, a distinção das ordens geométrica e vital não deve ser mais um caso de dualismo no bergsonismo, quando considerada a reformulação dos problemas concernentes à filosofia da vida. Com efeito, as duas direções da vida, neste caso, representadas pela ordem vital e pela ordem geométrica não devem se excluir, mas passar por uma requalificação das relações. Em muitas vezes as direções se alternam, num movimento basculante entre a distensão e extensão no qual a vida persiste. Ao fim ao cabo, a análise da ideia da desordem como um falso problema implica na construção de uma teoria da ordem que conjuga as ordens vital e geométrica e que implica o esboço de uma teoria do conhecimento que dá conta de pensar as diferenças de natureza entre a duração e o espaço, entre o elã vital e a matéria. Fazer a distinção entre as ordens vital e geométrica é também fazer a distinção entre a multiplicidade intensiva ou contínua e a multiplicidade quantitativa. Atribuir uma conexão entre estes extremos é fazer valer uma regularidade compartilhada por ambas as multiplicidades, a saber, a diferenciação.