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PARTE I – “ESTAMOS MUDANDO MODELOS”: A INTENCIONALIDADE E

1.1. A intencionalidade de mudança

Afirma-se em documentos oficiais que o modelo de atenção à saúde de Fortaleza inviabiliza a efetivação de princípios fundamentais do SUS. Ratifica-se que a ―organização do Sistema Municipal de Saúde de Fortaleza está de acordo com o modelo hegemonizado no Brasil, do tipo liberal privatista, com predomínio do conhecimento da biomedicina e centrado na prática hospitalar curativa e na atenção

especializada”. (FORTALEZA, 2006). Para contrapor esta realidade, propomos um novo modelo de atenção e gestão e algumas políticas estratégicas.

O propósito institucional de reverter o modelo de atenção à saúde do Município também foi trazido pelos informantes desta pesquisa. Uma ‗chefe de distrito‘, ao avaliar a gestão nos anos estudados, diz: Eu acho que foram muitas de mudanças de conceitos, mudança de prática, nós mudamos e estamos mudando conceito. Sua percepção é processual e de transformação, de encontro entre o conceitual e a ação. Além disso, o

“nós estamos mudando‖ aponta para a formação de uma coletividade e cocompromisso

na edificação do Sistema de Saúde. Assumir esta corresponsabilidade com a mudança de modelos traz conseqüências, dificuldades:

Isso pro gestor, principalmente para os gestores regionais, é

altamente desgastante, por quê? Porque nós recebemos a cidade num modelo antigo né, antigo assim, que há muitos anos a cidade

vinha daquele modelo. Num modelo tradicional, principalmente de atenção básica. Medicamentoso, médico centrado (...). Nesses quatro anos mudando essa prática, mudando esse conceito (...) então essa coisa da equidade, da universidalidade, todos esses princípios nós

podemos tocá-los e é como a gente pudesse pegar neles durante essa gestão. – Grupo Focal (GF) Regional

Sem dúvidas, essa intenção de modificar o „modelo tradicional‟ é um caminho que precisa atuar com ideologias, valores e poderes; exige reflexão, interação e comunicação, portanto torna-se mais ‗desgastante‘. Há, contudo, uma aproximação entre o discurso institucional e os significados trazidos pelos entrevistados, o que demonstra uma intencionalidade na transformação da cidade, mesmo diante das

dificuldades. Isto é fundamental neste estudo, em razão de a intencionalidade, segundo Freire (1980), ser propriedade fundamental da consciência.

A essência da consciência é ser com o mundo e esta situação é contínua e inevitável. Conseqüentemente, a consciência é, por essência, um ―caminho para‖ algo fora de si mesma, que a rodeia e que ela apreende graças a seu poder de ―idealização‖ (...) Os líderes revolucionários devem praticar uma educação co-intencional. (P.44)

A intencionalidade produz ação comprometida, a qual, neste caso da gestora regional, conseguiu perceber a concretude no que se almeja: „tocar os princípios de

SUS‟. A idealização pode ser alcançada por meio de atos, da observação de que há

algumas mudanças significativas que permitem reconhecer o resultado do trabalho. Em outro momento, outra informante regional complementa:

(...) eu acho que nós avançamos um bocado, com muito sofrimento como ela também bem disse, né? Porque não é fácil a gente mudar paradigmas, mudar modelo é sempre uma luta.

Transitou nesse grupo a ideia de que apenas o ‗gerir‘ seria mais fácil8. Garantir a infraestrutura, atuar como supervisores e controlar a produtividade, por exemplo, seriam tarefas que exigiriam menos esforços dos gestores regionais. O ato de gerar requer muito mais capacidade de articulação e criação. Assumir-se como gestor com características de liderança e que busca a transformação é ‗uma luta‘. O objetivo da eficiência não é eliminado, faz parte do escopo de suas atividades, mas é somada à efetividade do sistema de saúde9.

Ora, realizar um movimento que avança no trabalho em equipe, na cogestão, além de problematizar conceitos e práticas cristalizadas, exige uma superação, não só de práticas e de pessoas, mas também de si mesmo. É a própria reconstrução se fazendo nas tensões e contradições cotidianas, como veremos adiante.

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Onocko Campos (2003) traz essas duas dimensões da gestão: gerir e gerar. Gerir representa a gestão clássica com o predomínio do controle e preocupada com a produtividade, mais-valia e reprodução do status quo. Gerar é a criação e a instituição de espaços de tomada de decisão coletiva, de aumento da implicação nos processos e de formulação de projetos. Gerar, portanto, é o lugar da cogestão.

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Miranda (2009) reforça a noção de que gerar e gerir são uma contradição intrínseca na gestão em saúde. É preciso que a gestão seja prepositiva, criativa e participativa, mas há uma exigência permanente e inerente pela regulação e controle. (Anotações).

Assim, a intencionalidade de mudança em Fortaleza permitiu encantamentos, implicações e dificuldades. Provavelmente, esta intencionalidade foi iniciada por um direcionamento político, mas incorporada por algumas pessoas que encontraram neste propósito sentido para o trabalho em saúde e de sua própria reconstrução. Para Campos (2007, p.43), ―um sistema de co-gestão depende da construção ampliada de ‗capacidade de direção‘ entre um conjunto das pessoas de um coletivo e não somente em sua cúpula‖. Neste sentido, digo até que houve uma ―direcionalidade‖ no discurso dos gestores estudados, e que muitos demonstraram que agiram no sentido de ampliar os propósitos da gestão com outros atores. Conseguiram sempre? Tenho certeza de que não, no entanto, tornaram-se imprescindíveis para tensionar as mudanças.

Por fim, vejo a imbricação entre a intenção de transformar o modelo de saúde com a formação de sujeitos. Penso que esta propriedade da consciência é potencializada quando os princípios que orientaram esta busca por mudanças trazem o diálogo, o ‗encontro‘ entre as pessoas, a reflexão e a interação como condições sine qua non; e também a clareza das condições históricas que, quando compreendidas, facilitam a conscientização e, portanto, a implicação de agentes do SUS.