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PARTE III – ESPAÇOS POTENCIAIS DE FORMAÇÃO DE SUJEITOS

3.3. As rodas da gestão de Fortaleza: olhares e sentidos

3.3.2. Espaços para a participação

Outrora nenhuma cultura participativa ou democrática foi fomentada em nosso País, apesar de alguns ensaios. A maioria dos processos sociais na América Latina, historicamente, não é construída coletivamente, no sentido de agregar diversos saberes e interesses. Além disso, estamos num sistema mundial que privilegia o interesse privado em detrimento do coletivo. Nossa democracia é representativa, nem sempre

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Campos (2007) indica que o processo ampliado de cogestão se refere ao cumprimento de quatro funções: política, analítica, pedagógica e administrativa. O autor coloca a função terapêutica entre aspas; pareceu-me que é uma função atrelada à função pedagógica, pois está dirigida às aprendizagens formadas na produção da subjetividade. Não é dispositivo de cura ou reabilitação em sentido estrito, como ele afirma.

emancipatória. Convivemos com a lógica do controle e da competição. Portanto, não basta criar apenas espaços democráticos. Defendo a ideia de que é preciso radicalizar e perguntar o que entendemos por democracia, gestão, participação, autonomia.

Não é possível ser ingênuo e achar que numa roda haverá apenas a comunhão em favor do interesse comum. Diversos autores confluem na opinião de que os espaços democráticos não se isentam de conflitos e interesses individuais, mas também consideram ser possível proporcionar novos modos de relações, fundamentados na solidariedade e na responsabilidade social, viabilizados pela produção de compromissos. Nesta pesquisa, a necessidade de criar uma cultura participativa é expressa da seguinte forma:

O foco é só o coordenador... só o coordenador que resolve... eles não possuem atitude nenhuma de buscar solução.. sou eu quem resolvo. Tá centrado só no coordenador. Eles não propõem. Eles não estão preparados para isso.. Acho que tem que ter preparação‖. Coordenadora CSF.

E será que o coordenador está preparado? Outras falas permitem concluir que a necessidade de solidificação da participação, como competência pessoal e social (conhecimento, habilidades e atitudes), não é limitada à categoria dos profissionais de saúde. A experiência das Rodas da Gestão em Fortaleza demonstra o exercício de um arranjo democrático da gestão que visa à participação de todos os agentes, portanto com todos os desafios que o acompanham.

É valido dizer que a participação muitas vezes é entendida apenas no sentido de frequentar as rodas:

eu acho que nós não podemos de maneira nenhuma enfraquecer a roda, e muito me preocupou quando eu comecei a ver que os diretores não estavam vindo, que a gente tava aqui meio que titubeante... Rapaz isso aqui é importante!

Diretor de Hospital.

Alerta-se: a roda é importante! Lógico que a participação não se reduz à presença num encontro, mas penso que a presença é uma das condições que potencializa uma participação plena de sentido advindo da consciência em favor de si e do coletivo (GÓIS), haja vista o sentimento de pertença a um projeto coletivo e o fortalecimento do valor pessoal ser traduzido na capacidade de compartilhamento do trabalho, como acentua uma profissional do distrito de saúde: “Eu senti que eles se sentiram

importantes nisso, de estarem tomando esta decisão, e aí eles acreditam mais”.

Quando isto ocorre é sinal de democracia, de acordo com Campos (2007). Para ele, ter acesso às informações, tomar parte em decisões e na tomada de decisões é a possibilidade do exercício compartilhado do poder; trabalha o sujeito e as instituições, pois um interfere no outro.

Ainda sobre a presença nos encontros, não de forma generalizada, foi identificada uma situação que posso definir como exclusão:

(...) às vezes até eu chego a perguntar pra um enfermeiro,

“seria possível você colocar aí em papel pra levar em pauta pra roda de vocês?”. Porque se eu pudesse participar eu

falaria isso ou dava a idéia A ou B, porque eu acho que é muito importante, teria mais multiplicadores, (...), ficaria mais rico e ficaria bem melhor desenvolvido‖

É uma exclusão advinda da institucionalização do poder. A técnica de enfermagem sabe de seu valor pessoal e que poderia contribuir com a organização do trabalho, mas uma barreira que ela como sujeito tenta remover, encontrando estratégias de ter voz: busca um mediador que leve sua pauta.

Apesar de situações em que há uma redução das possibilidades de participação, existe outro ângulo da mesma questão.

Nós tivemos fortalecimento mesmo dos momentos de roda né, que a gente na verdade criou né esses momentos, então nós ampliamos o acesso dos profissionais na gestão, isso é nítido e ampliamos também o acesso da população né, eu acho que com esse novo modelo também de fortalecimento da participação das pessoas, do cidadão, do usuário, nós também proporcionamos – Gestor regional

Quando a gente faz até mesmo roda ele diz assim: "eu nunca fui ouvido" então isso pra gente é muito importante, aquela pessoa lá do SAME, aquela pessoa lá dos serviços gerais ta sendo ouvido. – Gestor Regional

As rodas ampliaram o acesso para os profissionais e para a participação. Criaram-se zonas de possibilidades da existência efetiva da participação. Portanto, em Fortaleza, as rodas ampliaram a integração de vários agentes, mas mantiveram-se desafios para a qualificação desses espaços. Dentre estes, uma considero um equivoco de garantia de participação.

Lembro-me de um dia da especialização da gestão, em 2007, quando facilitei as discussões de um subgrupo que debatia sobre as rodas. Havia um discurso de que todas as pessoas deveriam estar nas rodas dos CSF para garantir a participação. Além da necessidade de despertar interesse em alguns trabalhadores, havia também a preocupação com as unidades com um número muito grande de trabalhadores e em diferentes turnos de trabalho, o que ensejava dificuldades em agendar os encontros. Como solução, os coordenadores realizavam rodas em turnos diferentes para garantir a presença de todos. Ora, perguntei a uma das coordenadoras que exprimia a questão como a melhor solução: e quem toma as decisões? A resposta: eu (a coordenadora).

Por querer atuar de forma democrática e incluir todos os membros, tinha-se ainda uma forma centralizadora de organizar o trabalho. Neste modelo, as informações e opiniões podem ser potencializadas, mas a decisão não é compartilhada. E isto não enseja autonomia, nem transformação do modelo clássico da gestão.

Assim, fica evidente a necessidade de diversificar os desenhos das rodas com apoio na singularidade local. Em uma unidade de saúde com poucos trabalhadores, é possível encontrar um dia em que todos possam compartilhar as problemáticas do serviço e propor soluções conjuntamente, dentre outras coisas. Uma unidade com maior número de trabalhadores, no entanto, necessitaria criar outras possibilidades de garantia de espaços de participação, sem inviabilizar o propósito da gestão compartilhada.

Por exemplo, conheço uma unidade que optou em possuir rodas por unidade de produção e por equipes de Saúde da Família, e um colegiado gestor por representação, o qual pode ser ampliado, em algumas situações, para outros membros da unidade, dependendo do tema a ser discutido. Entendeu-se a necessidade de outros dispositivos de problematização e decisões coletivas.

Outra unidade ainda foi além: uma iniciativa singular que cria a ‗roda com a comunidade‘, ou seja, pensar a democratização não apenas entre os trabalhadores, mas em diálogo com a população.

A roda que eu mais me identifique, que é com a comunidade, então somos todos do PSF junto com a comunidade, então talvez essa eu acho que é bom porque a comunidade ela participa gerindo também as coisas do posto, dizendo o que ela gostaria de ser tratada, como ela gostaria que o atendimento se realizasse, como ela gostaria de ser recebida pelo SAME, como ela gostaria de esperar até chegar dela, então essa eu acho a roda das mais construtiva que é uma vez por mês.

Trata-se de uma experiência importante que precisa ser incorporada em outros serviços/comunidades e que assume o desafio de fortalecer o vinculo com a comunidade, aproximação entre o saber técnico e popular e distribuição do poder, mas com uma exigência muito maior.

Recentemente estive em um desses encontros e saltou-me o conflito instituído entre população e trabalhadores, salutar, porém, para a formação de novos padrões de relações. A disputa e a negociação quando em espaços coletivos permite tanto a democratização da saúde como a formação de compromissos (CAMPOS, 2007). Esta experiência está sendo sistematizada pela coordenadora/aluna em sua monografia da Especialização em Saúde da Família e Comunidade. Por enquanto, nesta análise, ficarei com as rodas como espaços vividos por gestores e trabalhadores.